LAVA – imagens que queimam caminho  

Breves notas sobre os desenhos de João Jacinto 

 

começas por procurar uma passagem por onde esses corpos possam passar, por onde possas ir ao seu encontro. Há, tu sabes, várias maneiras de começar. Vais pela casa apagando as luzes domésticas; só deixas ficar algumas luzes de presença, vagas. Avanças, então, tacteando a noite do espírito, as sombras das suas planícies. Ou então nem sequer te moves, apenas esperas, activamente quieto.  

Manuel Gusmão 

 

Uma árvore, um corpo e um quarto. Não necessariamente por esta ordem. Procuramos uma passagem, como nos indica Manuel Gusmão, por onde os nossos próprios corpos possam passar, por onde possamos ir ao seu encontro. Podemos optar, não pelo movimento, nessa demanda, mas precisamente pela quietude, pela imobilidade, esperando que esta árvore, este corpo e este quarto se abeirem de nós, espectadores, e se nos revelem, na sombra. Continua Gusmão: “O poliedro do olhar dispõe um caleidoscópio que, imobilizado embora, reunisse os fragmentos de mundos diferentíssimos – de mundos a distâncias e velocidades incomparáveis. De tão diferentes velocidades vem a diferença das formas. Até teres de te perguntar se formam um mundo esses mundos ou como se desenham as fronteiras? Não se desenham. É a montagem e a diferença entre os desenhos quem sugere essa ideia de fronteiras que aparecem intensas e intransponíveis; como se a cada desenho fechasses os olhos e os reabrisses para o próximo e ao mesmo tempo esse movimento a espaços te impusesse ver não o desenho, mas o múltiplo.” A proximidade parece advir daqui: do olhar, entre a abertura e o fechamento e do que resulta dos diferentes batimentos. De quem olha e de quem é olhado. Parece ser esta a passagem: a que se forma no caminho que vai de uma coisa a outra – entre a contração e o relaxamento, o visível e o invisível, a visão e o toque, o sagrado e o profano, a imagem e a carne (via sensação). 

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 “A palavra ver é ainda uma recusa do olhar” Nas elaborações sobre a obra de Bataille, Georges Didi-Huberman salienta esta frase que, em conjunto com os outros artigos, se revela como uma possível ideia-síntese: esta de ver para além do visível, de ler para além do legível. Os quatro primeiros textos reunidos sob a égide do Visible, visuel, figurable: La couler de’ecume, ou le paradoxe d’Apelle, La couler de chair, ou le paradoxe de Tertulien, Un sang d’images e Puissances de la figure: exégèse et visualité dans l’art chrétien, perscrutam o visível e o visual, a imitação e a encarnação, os seus paradoxos, mitos e imagens (antiguidade clássica e cristã). Ora, o milagre cristão torna a imagem presente (“a imagem presentifica”, já o dissera Jacques Aumont), exaltando um corpo investido de glória que reanima aquele que o observa, através de uma impressão na carne, uma marca, um estigma. E o estigma transforma o sujeito em rasto, em vestígio do divino: uma sua ferida viva. Este estigma estabelece outra imitação que não a do espelho da visibilidade pagã: a imitação das chagas de Cristo é um ato de encarnação, não de mimesis. 

O estigma é uma imagem, porém gerada na carne. Ao contrário de uma imitação procedente do processo reflexivo (jogo de espelhos), ele transpõe a imagem pela imagem, na imagem, digamos. A recorrência iconográfica do estigma, particularmente nos séculos XIV e XV, demarca uma nova relacão entre imitação e encarnação (resultante do entre-corte entre a luminosidade e o sangramento), de natureza hibridizada, metamórfica: a pintura encarnada (pois tornada carne) – a sua superfície torna-se pele, dilacerada em rasgo escarlate, a figura definida pela orla luminosa, sangrando em cor. Ora, as chagas correspondem a uma persona, ao próprio sujeito divino. O sangue figural (não figurativo) também procede como sintoma, como irrupção e encarnação, não como imitação, mas como acontecimento, como uma espécie de happening único, singular: o “enigma da substância figural”. O sangue de Cristo não brota do seu corpo, mas surpreendentemente da sua imagem. Trata-se de um sangue de imagem, não menos eficiente por isso: sangue-figural, sintomático, portanto, tornando-se visível por uma intervenção não visível. Ora, nos desenhos de João Jacinto este sangue é pigmento negro. Este sangue é lava: uma espécie de erupção/ejaculação da própria imagem. Aumont refere ainda que o figural não é um dado fechado da (e na) imagem: ele pertence, de forma particular, a cada espectador. Ou seja, ele abre a imagem a cada um dos seus espectadores (ou amantes), torna-a acontecimento, discreto (ou não), íntimo, personalizado e intransmissível. Apenas incumbe ao espectador desejá-lo. O olhar devora, conclui-se. As imagens abrem e fecham tal qual os nossos corpos, tal qual as nossas pálpebras, abrem e fecham em busca de um olhar, pulsando conforme as emoções, abrindo e fechando entre a contração e o relaxamento da sístole e da diástole. Deleuze, por sua vez, pressente, a urgência em expor (mais do que repetir formas), sem a mediação e distância implícitas na representação, um conjunto de forças que admite/possibilita o efeito choque que identificamos nos desenhos de João Jacinto: imagens que queimam caminho em direção ao seu espectador. Um certo excedente do visível fixa-se na tela, ou na folha de papel, mesmo antes do pintor começar a agir, cimentado em clichés ou imagens já feitas que, na produção das formas do visível, atravancam a passagem das forças diretoras da sensação. Sob a aparência de cada cliché (ou imagem feita), como que fantasmaticamente justaposta, insiste uma sensação que batalha por emergir, uma força invisível em estado de tensão. Diante de um desenho de João Jacinto a figura não é um espectro/visão que assombre uma qualquer esfera imaginária, mas a verificação de uma “pura presença” (sensação).  

Na imagem-sensação, a existir parecença entre o representante e o representado, será sempre uma parecença imprevista, com origem, não no ardil mimético, mas na força, na autonomização da imagem em si. 

 

Ana Rito 

(excerto do ensaio LAVA – Imagens que queimam caminho
Breves notas sobre os desenhos de João Jacinto) 

 

Desenho nocturno, silencioso e pobre 

 

“A moderação é uma coisa fatal (…).
Nada tem mais sucesso do que o excesso.”
A woman of no importance, Oscar Wilde 

 

Em João Jacinto, a obstinação pelo excesso não é o excessu enquanto presença, a redundância do que sobra, mas o excedere enquanto ausência, a incompletude do que falta. 

Há uma libido Jungiana de que advém o seu desenho. Emana da sedução por temas e motivos destacados do acaso ou do hábito, sacralizados pela compulsão da visualidade e da escopia. Desenhar é um ritual de transe ou delírio dedicado ao êxtase da imortalização do que não é dado ao olhar.  

Desenhar é outrar. A adoração ritualística é abandono do eu. É confissão, inescapabilidade à sombra que excede o eu. Rasgo no eu real que desvenda o eu quimérico. O desenho é lugar rasgado do eu-outro, utopia de desejos e temores. Ruína e alvor, violência e volúpia. Torna-se espaço estranho ao olhar. É, segundo Foucault, uma heterotopia, espelho que presentifica a ausência que a imagem não devolve. 

Desenhar é duvidar. É penetrar a ausência. A dúvida é o excesso fundamental no desenho de João Jacinto. “E só agora penso: / porque é que nunca olho quando passo defronte de mim mesmo? / para não ver quão pouca luz tenho dentro? (…)”, Herberto Helder. O excesso da dúvida acontece no recolhimento, na escuridão que não reflecte. O desenho de João Jacinto é nocturno. Só a noite transgride o olhar e rasga o dia que cega o eu, onde é possível ver a luz do eu-outro. 

A ausência não é inacabamento, o non finito que perdura desde da Vinci ou Michelangelo. A literalidade dos intervalos do traço ou da mancha, a que guia a imaginação a completar o vazio formal. Pelo contrário, o formalismo é total e equilibrado. Acontece no momento em que a obra o decide, o instante incerto que resolve uma insatisfação estética, em que a harmonia revela-se. Quando nada sobra ou falta, e o desenho declara-se terminado. E, na completude, incompleto. 

A incompletude é o impensado. Croce diz “arte é visão ou intuição”. Distingue o acontecimento da arte no campo da idealidade, no sentido intuído. Situa-o além da sensorialidade e conhecimento, de prazer ou dor, de juízo moral. Em João Jacinto, a recusa da fisicalidade da arte é castigo da matéria, é o chicote que estala no corpo do desenho. É riscar, raspar, arrastar, impregnar, pisar. Esta recusa é herdeira de Orfeu, salva o que ama ao renunciá-lo. E escapa-se. O desenho de João Jacinto acontece fundamentalmente no observador, aquele cujo olhar contemplativo o fixa no interior do desenho, e, duvidando, sem o destruir, ao desvelar. 

A noite no desenho de João Jacinto é uma inquietude que avança sobre o espectador. É euforia e fobia. É desejo e perigo. O espectador é o homem transfigurado em noite que Hegel descreve em Fenomenologia do Espírito: “O homem é esta noite, este nada vazio, que tudo contém na sua simplicidade – uma riqueza de imensas e diversas representações, de imagens, em que de imediato não pensa ou que apenas são em presença. Esta noite, o interior da natureza que aqui existe – puro Eu –, nas suas fantasmagóricas representações é noite em todo o redor”. No desenho nocturno de João Jacinto, o eu está dentro do desenho, diante da excedência fantasmagórica do eu-outro. No seu modo próprio de operar a transgressão escópica, que esvazia e excede, o desenho é tragédia auto-reflexiva, converte o eu em sujeito e objecto concomitantes. 

 

“A transgressão não é a negação do interdito, 
mas ultrapassa-o e completa-o.”
L’érotisme, Georges Bataille 

 

Esta exposição provém da eleição de um dos temas recorrentes no desenho de João Jacinto: a pornografia, o erotismo, os prazeres da carne, consumando a excedência da sacralidade da outrora capela. A antinomia entre carne e alma percorre a doutrina cristã. O excesso é a transgressão do dualismo histórico, realizada pelo erotismo e a sexualidade. Semelhante excesso encontra-se na revelação escatológica do Cântico dos Cânticos, na exaltação bíblica do ardor sexual enquanto instinto humano elementar. 

O título adoptado para esta exposição reflecte a excedência. A história da água maldita é violada pela história das poções mágicas. A diabolização medieval da água, estigmatizada causadora de males físicos e morais, é ilustrada pela expressão “Nenhum banho em mil anos” de Michelet no ensaio La sorcière, consignando a geografia dos usos da água a espaços de libertinagem. 

A história da libertinagem ocorre na história do livre-pensamento. A Renascença e o Iluminismo não erguem os olhos ao céu, antes pensam o eu, em quem procuram o eu-outro. O libertino é Pacheco a passear-se pela Braga dos cardeais, golpeando os puritanismos ou, segundo Pocinho, “aquilo que não se quer que os outros façam, quando não somos nós a fazê-lo”. A história da libertinagem é marcada pelo carácter filosófico da tradição lírica de Sade, Bocage e outros provocadores dos costumes e valores subordinados. Desnudam-se vergonhas e indecências sigilosas, libertam-se expressões e concepções reprimidas. Nas artes plásticas, o corpo nú, e as suas matizes de sensualidade, desde as manifestações mitológicas e religiosas à secularização modernista, encontra o seu excesso no papiro erótico de Turim, nas relíquias de Pompeia e Herculano, na arte Shunga, nas imagens renascentintas I Modi, e na arte erótica que prolifera depois do século XVIII. 

O excesso da libertinagem é iluminista. É auto-reflexivo, excede a explicitude. Como refere Bataille, a transgressão libertina fecunda o questionamento do eu, cuja plenitude floresce na possibilidade do eu-outro. Desabrocha as liberdades dos universos interiores na excedência dos anátemas do mundo exterior. 

O desenho de um corpo de mulher que João Jacinto apresenta suscita a interrogação. Voluntária ou vítima? Prazer ou violação? A interrogação é susceptível de ser ampliada. Erotismo, pornografia, ou nenhum? A explicitude é ausente. Se este desenho encena algo, qual o enredo de que é fragmento, quem é a personagem, em que espaço actua? A dúvida está transposta na composição. Em João Jacinto, o desenho é concubino e homeostático, dispersa-se entre a força exuberante da figura e os acontecimentos turbulentos no espaço, e é capturado por ambos. Na relação de escalas e na intensidade matérica, quem penetra e quem engole? 

 

“Passar a limpo a Matéria
Repor no seu lugar as cousas que os homens desarrumaram Por não perceberem para que serviam
Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade, As cortinas nas janelas da Sensação
E os capachos às portas da Percepção Varrer os quartos da observação
E limpar o pó das ideas simples Eis a minha vida, verso a verso”.
Poemas Inconjuntos, Alberto Caeiro 

  

Desenho a desenho, o corpo, a árvore, a sala. Temas históricos, que estes desenhos limpam, no avesso da representação. Heidegger refere que “Nunca na obra nada advém da matéria”. No desenho de João Jacinto, em que tanto é paradoxalmente matéria, regressa-se ao silêncio, na medida em que o sentido do pensamento e das ideias é invertido, da sedimentação estável para o advento instável e transitório. Neste sentido, o desenho de João Jacinto é um permanente indício de um futuro. 

O excesso do indício é a evidência da pobreza, o homem que é “este nada vazio”. O desenho de João Jacinto nada garante. E, como a noite silenciosa, tudo permite, “Porque a pobreza é uma grande luz que vem de dentro”, Rilke 

 

Ricardo Escarduça 

Limpar a seco

  • João Jacinto
  • 23 Outubro 2021 - 27 Novembro 2021
  • Desenho
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição
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