Como um chão que se pisa…

As pinturas de Rui Macedo tendem para a invisibilidade. Esta constatação é tanto mais estranha quanto dificilmente haverá prática oficinal de pintura mais elaborada ou mais sofisticada que a da pintura de Rui Macedo.

Entre o que é o real exterior e o que é a pintura Rui Macedo tende a introduzir não uma lente de aproximação, não um filtro de interpretação, não um espelho de reflexão, mas uma fina película que reinterpreta o inframince duchampiano.  As pinturas não reproduzem (invertendo) o real, não o analisam segundo parâmetros universais, nem o escrutinam para além das capacidades visuais do olho humano; surgem, antes, como resultado de um mecanismo de fixação de imagens numa película, operação que não separa, antes cola, o real interior da pintura à realidade que lhe é exterior. Ainda assim existem duas superfícies, a da pintura e a do real. A pintura amplia a volumetria do real de modo a poder substituí-lo; o real, entrando em contacto com a pintura, reduz a sua espessura e densidade de modo a poder confundir-se com ela.

Esta pintura diz-nos mais dos fenómenos e especulações teóricas em torno da mimésis, do modelo, da cópia, do mito modernista da originalidade ou da prática post-moderna da citação, do pastiche e da colagem que muitos tratados de estética.

Regressemos ao tema da invisibilidade. Esta pintura joga no terreno de uma cegueira metafórica: ficamos cegos vendo, cegos face ao que possa ser a diferença entre o real e o seu simulacro, não conseguindo distingir (ou distinguindo com dificuldade e/ou distinguindo tardiamente) o que é da pintura e o que é do real.  Não se trata mimar um processo fotográfico porque a imagem que se apresenta não se separa do real onde foi capt(ur)ada ou onde será colocada. Não se trata de camuflagem ou mimetismo porque nestes há uma operação de ilusionismo, nem de cópia pois na cópia há uma operação de submissão ao modelo, trata-se de uma operação de substituição ou de transferência em que apresentando-se a pintura como o real e sendo reconhecida como tal coloca em perigoso desequilíbrio o significado e o sentido do que, de facto, é do real e o que é da arte.

O artista diferencia-se dos muitos outros que, trabalhando a ilusão da imagem hiper-realista, mantêm com ela uma relação de distanciamento intelectual e operativo: situando-a em planos deslocados dos do espectador, desfasados do tempo e do espaço de quem consome as imagens, por exemplo. Ora, Rui Macedo exerce o seu ofício numa relação directa, de decalque, com o real que lhe é exterior — nesse sentido persegue o mito dos geógrafos de Borges que oferecem ao rei um mapa do reino à escala 1/1. 

A coincidência perfeita entre a representação e o real é, sabemo-lo, efémera mas o(s) instante(s) durante os quais essa ilusão funciona devem ser valorizados como um absoluto no tempo-espaço porque bastam esses segundos de hesitação entre o verdadeiro e o falso para tudo pôr em causa. Se as portas, os lambris de azulejo, os muros, os caixotes, as pinturas de pinturas… não nos surgem imediatamente como representações de portas, de lambris, de muros, de caixotes, de pinturas… é porque, por instantes, são a presença mesmo dessas realidades num determinado espaço-tempo concreto. Quando nos apercebermos do nosso engano, quando finalmente distinguimos o que é pintura em suporte autónomo e parede ou muro ou chão ou objecto real, já é tarde porque já teremos posto em causa os estatutos da verdade e da realidade, da fantasia e da ilusão.

Nesta exposição, como nas anteriores, Rui Macedo não cria um espaço, não ilude nenhuma realidade, cola-se ao espaço existente — as obras, sendo pensadas de novo como obras in situ, reforçam a narrativa e a interpretação dos espaços onde se inscrevem, acrescentam realidade à realidade.

Não se trata, porém, de simples operações de adição ou de multiplicação de elementos que surjam sobrepostos a uma realidade anterior. Nunca saberemos se Rui Macedo não descobriu simplesmente, graças a um agudo sentido de observação, o já existente, o que o olhar vulgar do espectador não alcança e que ele encontra. Nunca saberemos se Rui Macedo não possui um dom visionário antecipando ou desvelando o que já lá está / o que já lá esteve / o que devia lá estar, assim abrindo caminho a um guião de infinitas possibilidades narrativas, literárias, teatrais e cinematográficas, assim aumentando o espectro disciplinar de intervenção da sua obra. A que salas ou corredores conduzem aquelas portas cerradas? Quem deixou cair este lápis no chão? Que pintura é aquela virada para a parede? Porque deixaram um vidro encostado ao lambril de azulejos? Porque estão deformados os desenhos azuis-brancos e alguns azulejos se encontram fora do alinhamento ortogonal exigido? Personagens e acções passam a habitar o exterior onde as obras se inserem e onde nós mesmos existimos e a acompanhar todo o esforço de interpretação.

Entretanto, percorremos já a pequena capela onde o artista entrou para nos dar a ver o possível (nele nunca se trata de mostrar o impossível) que a realidade esconde. A banalidade do chão de mosaicos que recobre a capela-mor intriga-nos por não coincidir com a linguagem global do espaço e é extraordinário perceber, subitamente, que o que pisamos é uma enorme pintura horizontal. Passando do tecto ou da parede ao solo, a pintura, oferecendo-se agora como um chão que se pisa inadvertidamente, assume o estatuto de objecto ordinário — ou seja, a pintura de Rui Macedo reforça o lugar extraordinário que, pelas suas qualidades de fabrico e complexidade de conceitos, há muito vinha ocupando.

João Pinharanda

Lacunas, Fissuras e outros Fingimentos

  • Rui Macedo
  • 4 Dezembro 2021 - 15 Janeiro 2022
  • Pintura
  • Curadoria:João Pinharanda
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição

  

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