As far as I can see
Rui Calçada Bastos é um nómada. Assim, viagem, deslocação, precariedade e ausência de sentido de pertença são questões cruciais no seu trabalho.
De certa forma, estes aspectos também encontram eco na sua linguagem visual. De facto, é a notável coerência das qualidades formais e visuais e do conteúdo e tema que tornam o trabalho de Rui Calçada Bastos tão convincente. Técnicas como reflexão, duplicação ou justaposição de imagens constituem variações de um tema central que perpassa nos seus vídeos, fotografias e instalações – tanto no sentido real como no metafórico. As suas obras abordam as questões do eu e do outro, do interior e do exterior, do aqui e do ali. O artista muda constantemente de posição, numa tentativa perpétua de encontrar auto-segurança ou ancoragem, mas parecendo nunca o conseguir. De facto, persiste na sua obra um sentimento subjacente de existência entre refúgios fixos.
A abordagem de Calçada Bastos aos lugares e ás coisas passadas e presentes é delicado e cuidadoso. O artista ronda em torno de si próprio e do que o rodeia, como se tudo pudesse desaparecer de um momento para o outro, como se um olhar directo na direcção de um lugar ou pessoa os pudesse transformar numa fata morgana. As pessoas surgem mostradas a partir detrás, como se o artista não quisesse aproximar-se demasiado. No entanto, é precisamente este aspecto que cria uma atmosfera de intimidade, mas também de exclusão melancólica.
Talvez um dos trabalhos que melhor ilustrem este aspecto seja o vídeo a preto e branco The Mirror Suitcase Man. A sua estética de filme negro cria um efeito nostálgico, o mesmo se passando com o restolhar rítmico da banda sonora, que apenas algumas das palavras do locutor conseguem atravessar. Nem o protagonista nem a cidade, através da qual deambula como um flâneur, se movem directamente no sentido do nosso campo de visão. Ao invés, tudo surge duplicado; a câmara mostra o lugar que o Mirror Suitcase Man atravessa e, ao mesmo tempo, revela um fragmento do lugar em frente, reflectido na mala espelhada que o protagonista leva consigo. Do próprio homem raramente vemos mais do que a mão que leva a mala. É quase como se o homem sem nome fosse somente um veículo, como se não estivesse deveras presente, como se estivesse nenhures. E o olhar do espectador fica também condenado a permanecer eternamente “entre”. A cidade, quase invisível, surge como um reflexo mental ou projectado, não como uma pitoresca paisagem.
A visão do mundo de Calçada Bastos é poética, por vezes mesmo semelhante ao estado de sonho. Atravessa-a uma tranquila consciência da futilidade da maior parte dos gestos. Assim, mesmo quando uma dimensão de humor é captada numa cena ou momento, não existe nisso sarcasmo ou amargura. O artista descobre e regista pedaços e fragmentos – seja da cidade, seja dos pertences de alguém – que se tornam parte de uma arqueologia, numa tentativa sísifiana de desvelar um história precária. Isto torna-se tão absurdamente intrigante que não conseguimos evitar participar na busca. E isto é o que, precisamente, tornará tão aprazível a experiência deste livro.

Sabrina Van Der Ley

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