Lugares preparados.
Exercícios para guardar o vazio

The object itself has not become less important.
It has merely become less self important.
Robert Morris

Vazio é o que é capaz de ser ocupado por um ente,
mas que não está ocupado.
Sextus Empiricus

Alguns exercícios – materiais e espirituais, a um tempo – para guardar o vazio:

1.
Esvaziar: subtrair.
Ao conversar com Fernanda Fragateiro sobre os projectos que neste livro são reunidos , o que imediatamente me impressionou na descrição do seu processo de trabalho foi a disponibilidade inicial diante dos espaços: olhá-los atentamente, julgá-los e, então, despojá-los de tudo o que estivesse a mais. O primeiro gesto não foi acrescentar, mas experimentar o espaço (olhá-lo, senti-lo, conhecê-lo, pensá-lo), para poder julgar o desnecessário – e retirá-lo. Verbos como limpar, tirar, desobstruír, eliminar, abrir, desentaipar, surgiam no discurso da artista como gestos essenciais. Não os considerava como apenas preparatórios para colocar a peça, mas já parte da obra. Um esvaziamento essencial, sem a utopia da pureza imaculada, porque o vazio absoluto, como nos ensinou Cage sobre o silêncio, não existe. Depois vinham outros verbos-acções: pintar (de branco, sempre branco, tornando o espaço mais abstracto), iluminar, intervencionar, acrescentar, construir… O primeiro gesto é, inequívocamente, desfazer, inoperar, desproduzir. Um movimento de subtração só reconhecível por quem conhecia o espaço anteriormente e pode percepcionar a diferença, o que já não está lá. Mas o que não está aí, o ausente, é o que permite, agora, ver o que está. Assim, o que não aparece, o inaparente, é fundamental, ainda que irreconhecível. O inaparente é o que permite a aparição, como o vazio é o que possibilita que um espaço possa ser ocupado, mas que não o esteja.

2.
Exercícios elementares.
A artista propõe-se exercer um múnus relacional: pôr em contacto, em confronto, potenciar relações entre elementos. Também a relação é inaparente, não aparece, é da ordem do invísivel: é para essa inaparência que estas intervenções apontam. O sentido da obra é criado pelo conjunto de relações estabelecidas, não pelo objecto-escultura em si. Exige-nos um exercício subtil, o de uma visão intuitiva e intelectual: pôr em relação o que esta diante dos olhos e que não se revela de forma imediata. Como um piano preparado, estas estruturas arquitectónicas em que Fernanda Fragateiro intervém, foram preparadas para um concerto que o espectador faz tocar, ou não. Como sonotas para igrejas preparadas: o espaço está intervencionado, preparado, como as cordas de um piano para uma obra de Cage – ou de Satie, antes dele – , mas é preciso escutá-lo, fazê-lo tocar, para perceber a diferença em relação ao som habitual: ao espaço anterior, aos movimentos do seu corpo, dos afectos e do pensamento. É preciso estar disponível e ser exigentemente activo.

3.
Silenciar.
Entre os exercícios iniciais da artista perante o espaço existente está o “eliminar o ruído”, expressão que traduz a sua acção artística de depuração espacial numa metáfora sonora ou do campo da linguagem – e aí, no campo linguístico, encontramos uma pista para a compreensão destas suas três propostas. Os elementos que a artista acrescenta, a que chamamos habitualmente “esculturas”, não existem isolados: o sentido produz-se nas relações que eles criam com outros elementos. Na tensão que originam. O que desfaz e o que faz, o que retira e o que acrescenta, são facilitadores de relação. A “escultura” está no espaço como a palavra na frase, e essa frase está ainda inscrita num discurso composto por várias frases: o sentido não existe na palavra isolada, nem mesmo na frase única, mas no discurso, no texto completo, na obra. A execução exacta e a colocação cuidada do elemento no espaço, corresponde à justeza e exactidão da palavra no poema. E se cada frase é uma proposta de relação distinta com a palavra, o conjunto de frases corresponde aos múltiplos relacionamentos possíveis com o objecto: o espaço e as suas características arquitectónicas, o serem ou terem sido lugares de culto, a religião a que estão ligados, a sua história, a luz, o corpo do observador e o seu ponto de vista… É isso a obra: é ela que aponta o sentido. Silenciar, eliminar o ruído, é um exercício ainda mais necessário na exposição realizada na Ermida porque ela é para escutar: dentro da Ermida ouvimos o som único de cada um dos cerca de 3000 mosaicos cerâmicos a ser colocado no seu lugar – formando um novo chão, mas incompleto, ali surgindo como um achado arqueológico ficcional. Dupla memória: o som do processo de realização da obra e a memória ficcionada de uma descoberta histórica de um espaço anteriormente ali existente. O carácter distinto de cada elemento – que as diferentes matizes de branco já indicam – é, pelo som da sua colocação, revelado. E aquilo que fica habitualmente vedado nos trabalhos desta artista, o processo da sua realização, torna-se parte integrante da exposição. Deste modo, o próprio tempo, e não apenas o espaço, torna-se uma categoria essencial imanente à obra: o som é a memória do tempo em que a obra estava a ser construída, mas é, agora que a vemos e escutamos, a medida da nossa fruição e parte da sua reconfiguração. O som torna-se mais um elemento para relacionar com os outros no processo de percepção. Robert Morris, em Box with the sound of its own making, de 1961, apresentou precisamnete o processo de realização do objecto, como modo de destruição da aura romântica da obra de arte, desmistificando-a e desviando-a de um sentido puramente plástico: de dentro de um cubo de madeira colocado em cima de um plinto, chega-nos o som gravado durante a sua fabricação. Nesse gesto transformou os sons de trabalho em sons musicais, tornou-os dignos de atenção, valorizando-os – conta-se que Cage escutou atentamente, sentado diante do cubo, as três horas e meia que dura a gravação. A Ermida é o cubo de Fernanda Fragateiro, onde entramos, e aí dentro, a estranheza do som, em vez de desmistificar remetendo apenas para a sua construção material, acrescenta uma tensão musical misteriosa que transforma a percepção do espaço.

4.
A simplicidade e a recusa da autosuficiência.
A estética minimalista dos anos 60 rejeitou o expressionismo psicologista mais fácil, intimista, da mesma maneira que recusou o espectacular, a aparência complexa, o monumental. Recusou o que não permite relações porque autosuficiente, porque vale por si, porque se fecha em si. A obra, deste modo, não é apenas o objecto acrescentado, mas a experiência que ele possibilita em relação com outros elementos: “o objecto é apenas um dos termos da nova estética”, escreveu Robert Morris em 1966. Também nestas três intervenções, em vez de uma complexidade aparente, os elementos destas obras são simples, austeros, rigorosos. A artista aplica uma redução no seu gesto de acrescentar, estabelecendo relações internas simples entre os elementos da escultura, para intensificar as relações externas e a experiência que possibilitam nesses intervalos. Interessam-lhe as variações que o objecto cria no espaço da experiência, e as que o espaço cria nele: as condições de luminosidade, a presença de outros corpos, os ângulos de visão diferentes, o confronto com outros elementos ou símbolos pré-existente, a história e as ficções que se criam, o tempo e o som. Esculpir as relações: não internas ou autoreferenciais do objecto, fechadas em si, mas entre esse objecto acrescentado ao espaço e os elementos exteriores .

5.
Esculpir-se a si mesmo.
A simplicidade necessária para que a proposta relacional da obra de Morris se cumpra, e a forma como ele via a estética minimalista, conduziu-o a afirmar que esta estética é “mais reflexiva, porque a consciência de si próprio [do observador] existindo no mesmo espaço da obra é mais forte do que em obras anteriores com as suas muitas relações internas”. Também destas três obras de Fernanda Fragateiro podemos afirmar que, recusando uma complexidade de aparência, usando figuras geométricas simples e repetidas, materiais industriais ou manufacturados por outros, neutros ou com as marcas da sua fabricação, tornam-se reflexivas: não nos deixam perdidos no exterior, fazem-nos regressar a nós. Não somos espectadores de algo, mas de nós mesmos. Possibilitam a autoconsciência, na medida em que nos percebemos como parte dos termos da relação que a obra exige: o observador é um ser incarnado e sabe-se como tal, como corpo. Uma co-presença no espaço da obra: consciência de si em relação, capaz de relação. A posição de cada um – no espaço e no tempo –organiza e condiciona a sua perspectiva sobre a realidade. A posição, o ponto de vista que marca a nossa identidade, não é um a priori. O lugar onde nos situamos condiciona o quem que somos. Faz-nos ver – ou tocar – de forma particular. Emoldura-nos, na mesma medida em que a obra de Fernanda emoldura o espaço de forma nova: indica, dá a ver, a sentir, a experimentar. Também por isso, a exigência é maior: somos nós próprios os produtores da complexidade. Não assistimos a um espectáculo que nos é exterior, ou a rituais que nos são estranhos: fazemos parte deles. Praticamos os exercícios, não assistimos à sua prática. É uma resposta possível à crítica de Nietzsche à poética aristotélica, por esta se ter centrado na experiência do espectador e não do actor e do criador, sintoma de decadência de uma cultura.

6.
Acabar com as ilusões: o desengano.
A literalidade das obras, o carácter simples e repetitivo dos elementos, a sua severidade e ascetismo imagético, são uma forma de recusa da ilusão. Sem distracções, imagens imediatas ou de aparência consoladora. Sem enganos. O controlo por parte da artista é, para isso, fundamental. As imagens são sempre rarefeitas. Os gestos são mínimos, para que as consequências sejam enormes. Até os títulos são parte deste jogo de renúncia: Pensar é destruir, Não ver ou Expectativa de uma paisagem de acontecimentos. Eles introduzem uma dimensão poética e discursiva que se torna essencial para a artista e se desvia da indicação literal dos materiais usados ou do “sem título”. O título é mais um elemento a acrescentar ao todo de relações que constituiem as obras. Permitem interferências com os outros elementos materiais – porque as palavras do título são também matéria inerente à obra. Desse modo, percebemos melhor que o que vemos nunca é apenas o que vemos – a tautologia minimal é destruída – porque o olhar vê através de muitos filtros, de muitas vozes, influências; está marcado por muitos desejos e preconceitos. Os olhos escutam, escreveu Paul Claudel. Mas mesmo nos títulos mais poéticos, fica indicada uma negação, ausência ou destruição: a expectativa é ainda um não-ser, um esperar que implica um vazio; o pensar seria a destruição da experiência em Alberto Caeiro, para quem era imprescindível não-pensar, antes sentir; ou a indicação de ainda não-vermos ou de não o podermos fazer em absoluto. Os títulos, tal como os gestos ou exercícios artísticos que antes analisámos, indicam também uma estética do não. Uma via negativa – que não é uma vontade de negação, pelo contrário, é inequívocamente afirmativa e positiva. Não é tanto a recusa da acção, quanto uma acção de recusa. A livre recusa de elementos complexos ou ruído que impossibilite a relação. A escolha positiva de prescindir do que está a mais, do que enche, do que não permite que o espaço espaçoso exista (e Jean-Luc Nancy ensinou que o espaço verdadeiramente espaçoso é o corpo). Fernanda Fragateiro procura permanentemente um esvaziamento produtivo: um vazio que permite receber um corpo, produzir ou reconhecer pensamento, sensações, emoções, experiências. O vazio é espaço criativo de nascimento, de possibilidade de encontro, de fecundidade. Início.

7.
Exercitar a atenção.
O exercício espiritual e material supremo, forma de oração do corpo e do espírito – manifestação da sua unidade -, é a atenção. No início destes exercícios apontámos a atenção dada ao espaço: aqui, o que desfazer? Aqui, o que fazer? O que é o aqui? O seu primeiro gesto foi, como atrás escrevemos, dar atenção ao que ali já existia, e esse é também o seu propósito final: criar condições para capacitar a atenção. Pratica-la como o atleta pratica e se exercita continuamente. Askesis, a palavra grega que está na origem de ascetismo, era usada quer para o exercício físico, quer espiritual, e sem o sentido que o ascetismo veio a tomar no cristianismo: eram exercícios de sabedoria prática quotidianos com o objectivo de formar um homem mais livre e senhor de si. A atenção, nesse sentido, tal como a oração, radica numa hospitalidade e não numa imposição do nosso conhecimento, certezas ou desejos. É abertura, despojamento, desprendimento, acolhimento. Um sair de si. Exercitação do olhar até que o sentido se construa à nossa frente, numa assimilação demorada de evidências ou suspeições. A atenção é a antítese da pressa. Como numa habituação dos olhos à luz ou à escuridão, precisamos de tempo. Sem querer possuir, perceber ou imediatamente controlar a situação. Não interpretar imediatamente, mas olhar, olhar até que as relações inaparentes apareçam, se formem diante de nós – ou dentro -, se reconheçam. Suportando a dificuldade do vazio, o desconforto de estar perdido ou a ausência de resposta às perguntas. Prestar atenção é um exercicio de perseverança: apesar de não se sentirem as recompensas imediatas, sejam o consolo emocional ou cognitivo. Neste contexto de espaços sagrados, atrevo-me a referir um axioma da teologia negativa e que os místicos repetiram: se compreendes, então não é Deus.

8.
Olhar o chão.
Com excepção da intervenção feita em Silves, onde cria uma cortina que se suspende do tecto e estende para o chão, com elementos de aço polido – através da qual nos chega a luz de um pórtico manuelino que mandou desentaipar – a verticalidade é, nestes projectos, aparentemente rejeitada: o chão é o lugar de eleição. Ele é, como diz a artista, “o mínimo espaço arquitectónico”, e aquele que é possível de transportar mais facilmente – a estrutura modular que usa repetidamente remete para este interesse. O chão é, também, o que menos olhamos: é para aí que ela aponta, para o que não vemos. Faz-nos baixar o olhar. Mas, quer nos espelhos, em Alcobaça – que invertem o lugar e dão a ver o alto, criando desvios por inclinações inesperadas nessa superfície -, quer na claridade com que os mosaicos em terracota branca vidrada de Meknés transformam o chão, percebemos o afastamento das obras de Carl Andre – a sua proximidade residirá, antes, no princípio de ser menos importante alterar os materiais, quanto o modo como o espaço é alterado com os materiais.
Na topologia simbólica religiosa, o chão é o lugar do humano, o alto é o lugar do divino. Nesse sentido, Fernanda Fragateiro aponta não o êxtase, mas a frágil condição humana e os seus paradoxos – que são também a especificidade do cristianismo. Criando também situações paradoxais, a artista faz-nos olhar para baixo e ali dá-nos a ver o alto, como um abismo na sua inversão; ou faz a luz surgir do chão, uma clareira de luz lunar sem haver entradas que a permitam.

8.
Meditar sobre o túmulo vazio.
Os espaços que estas obras – estes exercícios para guardar o vazio – reconfiguram, são ou foram espaços sagrados do cristianismo, de rituais e de oração. E o cristianismo tem no seu núcleo central uma relação iniludível com o vazio. No evangelho de João surge de forma clara a indicação de um espaço vazio ser criador, após a morte de Cristo: “Pedro saiu, então, com o outro discípulo e dirigiram-se ao sepulcro. Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. Inclinando-se, viu os panos de linho por terra, mas não entrou. Então chega Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro; vê os panos de linho por terra e o sudário que cobrira a cabeça de Jesus. O sudário não estava com os panos de linho no chão, mas enrolado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: e viu e acreditou.” (João 20, 3-8)
A descrição do vazio é feita, nesta narrativa, pela relação entre objectos que se tornam vestígios de uma ausência: os panos de linho e o sudário – de que nos são dadas indicações da sua posição e relaçao espacial, numa frase criada para esse efeito, sublinhando a importância do espaço neste relato, e uma forma de sublinhar o que não está entre o que está. Esses vestígios, abandonados no chão e num lugar à parte que não é designado, são sinais do que já lá não está, de um corpo ausente que se retirou . Os corpos dos discípulos, e até as suas personalidades, são descritos na relação com o sepulcro aberto e o espaço nele esvaziado: a descrição da corrida que fazem até ao lugar e a afirmação de chegada em tempos distintos; o modo como o que chega primeiro vê o interior esvaziado, mas não entra logo – sem nos ser dito, no entanto, porquê; como Pedro entra sem titubiar, mas é do outro discípulo, não nomeado, que o texto diz: e viu e acreditou. O que viu ele? Nada. Viu o nada. O vazio existente entre os panos é o motivo da sua fé: viu o vazio e acreditou. Não acreditou no que está lá, mas precisamente no que não está e que só se revela no modo de ausência: o corpo ressuscitado.
Aquilo que não aparece, o invisível, é o que organiza de forma tantas vezes inconsciente o modo de aparição do visível, o como e que coisas parecem. O inaparente é o que a atenção pode e deve tornar manifesto, como nos dão a experimentar estes dispositivos que Fernanda Fragateiro nos propõe: eles são consequência e causa de exercícios que nos ajudam a tomar consciência de que ver, tal como ver-nos, é difícil e resultado de muitas relações. Exercícios, materiais e espirituais, estéticos e éticos, para guardar o vazio pelo seu potencial criador, verdadeiramente plástico, porque formador não apenas da obra, do espaço e dos elementos que o constituem, mas do sujeito, do seu ponto de vista, do seu corpo, da consciência de si. O vazio que estas obras salvaguardam – criam – é o permanente lugar/tempo da origem de um si sempre nascente, sempre por vir.

Paulo Pires do Vale

Pensar é destruir

  • Fernanda Fragateiro
  • 26 Janeiro 2013 - 24 Março 2013
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