Vicente

Lá vem o corvo Vicente
que tem muito para contar
Sempre que o Corvo Vicente ouve repisar, e com muita frequência, diga-se, a sua história atribulada, tenta desesperadamente esboçar o gesto inglório de quem tem mais qualquer coisa a acrescentar, nem que seja uma simples correcção. Mandado calar no seu grasnar incómodo, vê-se afastado como indesejado pela guia turística atarefada ou pelo auto-arvorado olisipólogo, muito cientes a contar a bela história da lenda milagrosa de São Vicente, o santo padroeiro da cidade de Lisboa.
Repetem eles, em ritmo ora monocórdico, ora mais entusiasmado, consoante a disposição momentânea, que em 1173, uns anos após a conquista de 1147 de Lisboa aos mouros por Afonso Henriques – esquecendo por fervor nacionalista que as operações militares estiveram sobretudo a cargo dos participantes na Segunda Cruzada, mas adiante… –, certo dia a neblina matinal ao diluir-se dos lados da barra deixou entrever uma barca à deriva, solitária na imensidão oceânica, que, vagarosamente, como que impelida por brisa divina, se dirigia sem tergiversações à entrada do Tejo e, com aparente facilidade, subia vagarosa o rio em direcção à cidade.
Milagre! gritou-se a plenos pulmões, em especial ao desvendar-se com espanto que a barca transportava tão-somente um corpo, por certo santificado, guardado ciosamente na sua integridade por dois corvos atentos, colocados um à popa e o outro à proa da estranha embarcação. Milagre! repetia-se, em especial quando se percebeu que os despojos pertenciam a São Vicente, o santo mediterrânico, mais propriamente valenciano, que suportara escondido nas brenhas agrestes do cabo que dele tomou o nome a passagem demorada dos tempos nefastos em que o crescente Infiel dominara por estas bandas. Santo Deus! Cidade abençoada. Apesar de um texto de época sugerir a contribuição de mão humana nesta linda história, protagonizada pela comunidade cristã de Lisboa (os ditos moçárabes), a verdade é que tudo isso se diluiu na repetição secular das narrativas e a mão de Deus surge como a única protagonista, que deste modo aparatoso concedia a Lisboa a auréola de cidade escolhida pelos seus insondáveis desígnios.
Assim, sem grande esforço nem especiais buscas ou empenhamento, Lisboa passava a dispor dos despojos sagrados de um santificado mártir da Igreja, logo passeado em solene procissão de vários dias pelas ruas apinhadas da cidade, até à sua deposição final no altar-mor da Sé recentemente inaugurada, e logo declarado também, sem oposições, nem discussões, como único padroeiro de Lisboa, destronando assim os pobres São Crispim e São Crispiniano, os escolhidos como patronos pelos cruzados invasores de má memória.

Além da aura do padroeiro, esta chegada abençoada de 1173 veio fornecer à cidade a sua insígnia, pois essa insólita aparição de uma barca flutuante protegida tão-só por dois corvos se torna desde logo o símbolo da cidade, passando a figurar a sua representação em todos os selos oficiais do município lisboeta. Ou seja, São Vicente é não só o padroeiro que se evoca nas horas difíceis ou nas alegrias, e se adora na capela-mor da Sé, como se transforma também no referente da própria cidade, através das peripécias que tinham envolvido a sua chegada inesperada e bendita. O matrimónio entre a cidade e o seu santo era materializado naquele escudo singelo de uma barca transportando um corpo inerte, acompanhada de duas aves solícitas, no caso dois corvos, como os interpretaram os habitantes da cidade.
E essa identificação foi muito matutina, pois poucos anos depois destes miríficos acontecimentos, mais propriamente em 1233, um selo do município aposto num documento já representa inequivocamente a barca e os corvos, o brasão orgulhoso da cidade. Ou seja, essa identificação foi tão espontânea que, quase se diria, poderia eventualmente sugerir-se que simplesmente dava natural continuidade a qualquer reminiscência vinda de muito mais longe.

Essa identificação entre a cidade e a sua simbologia, mantida com fervor ao longo dos séculos, terá uma das suas mais significativas representações no desenho que Francisco de Holanda colocou no frontispício do seu manuscrito Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, datado de 1571. Espírito culto e viajado, amigo de Miguel Ângelo e um dos corifeus em Portugal da divulgação dos valores artísticos do Renascimento, Holanda, ao longo das páginas do seu escrito, queixa-se ao rei de que Lisboa não dispõe dos monumentos condignos com a sua situação inequívoca ao tempo, de capital dos mares.
É neste sentido que o retrato engendrado da cidade por Holanda, apresenta uma moçoila bem nutrida e de braço forte, ostentando nas mãos a barca de São Vicente com seus corvos e, sobre a cabeça, não falta a indispensável coroa, sinal inequívoco do estatuto que o autor lhe quer conferir: Rainha dos Mares. Um pequeno detalhe isola esta representação mítica de Lisboa feita por Francisco de Holanda. Ao contrário do habitual, os dois corvos não se dispõem um à popa e outro à proa da barca santificada, mas um deles, como que impelido por um súbito afago, poisa docemente sobre o ombro da cidade. Dir-se-á que é uma flor de estilo, um bonito que o autor se permite para animar a imagem e fugir à vulgaridade. Mas, se a leitura mais atenta não engana, o que Holanda nos diz com este detalhe aparentemente de somenos importância, é que a simbiose entre a cidade e a sua simbologia já é tão intrincada, que ela própria se transformou na barca à deriva, destinada a levar os portugueses a partir de Lisboa a todas as partes do mundo. O século XVI é dos mais marcados pela glorificação dos mitos identificadores de cada comunidade, ou não fosse ele o período que assiste ao fortalecimento da ideia de nação, autónoma e bem diferenciada, destinada a marcar indelevelmente os tempos futuros.

Holanda vai mesmo mais longe nesta sua glorificação de Lisboa. Na sua obra-prima, o De Aetatibus Mundi Imagines, conjunto único de imagens por ele pensadas para contar as Idades do Mundo, desde a criação, o autor, a dado passo, ao narrar imageticamente a evolução das civilizações, coloca em rodapé uma série de representações em círculo (ditos tondos por aportuguesamento do termo italiano), em que esclarece alguns pormenores ou faz ressaltar detalhes que de outro modo passariam em branco. Ora é exactamente um desses tondos, colocados no seio da civilização grega, que de imediato interessa, pois ele reforça de forma explícita a tradição vinda dos tempos romanos de que Lisboa fora uma fundação de Ulisses, o marinheiro perdido nos mares após a conquista de Tróia, segundo o texto da Odisseia, de Homero. E o desenho esboçado não podia ser mais explícito, pois representa, tudo devidamente legendado: em fundo a cidade de Tróia de onde ele partiu, depois uma vastidão de mar e montanhas e, por fim, a barca de “Ulisis” aportando a uma cidade que ele designa por “Ulisipo”. Não é com certeza por acaso a forma como ele grafa o termo “Ulisis” nem a cidade de “Ulisipo”, acentuando as semelhanças e dando força à tese então muito em voga, em especial no ensinamento de André de Resende, de que o apelativo de Lisboa provém foneticamente dessa pretensa fundação ulissiana.

E o carácter glorificador da aura lisboeta enfatizado por Holanda vai mesmo mais longe, pois insere aquilo em que acredita, ou seja, a fundação de Lisboa pelo herói da Odisseia, como complemento das páginas dedicadas à civilização grega mais antiga, precedendo portanto o desenho idêntico que dedica à fundação de Roma. Isto é, o fervor de Holanda é tão forte e a sua profissão de fé nos pergaminhos lisboetas tão acrisolada, que não hesita em deixar subentender, pela seriação nada ocasional das suas imagens, que a fundação de Lisboa precede a fundação também mítica da própria Roma. Curioso, muito curioso mesmo.

Curiosa é, também, a reacção do Corvo Vicente, meio agachado no canto escondido para onde o remeteram, perante a evocação sonora da palavra Ulisses e da referência à Odisseia. Esperta um olhar interessado, grasna entredentes e, por fim, dispõe-se a transmitir-nos de forma original as suas próprias queixas e considerações. Em primeiro lugar, deixa entender que há em toda esta história uma grande confusão, pois os corvos que terão acompanhado São Vicente desde o Algarve não eram os parentes dele, mas sim os ditos corvos marinhos, uma espécie feiosa e sem pedigree que se acoita nas falésias altas da costa algarvia e se alimenta de peixe, parente talvez da vulgar gaivota. Mas, como em Lisboa tais animais sem história não eram conhecidos, eis que se substituíram essas aves desengraçadas pelos verdadeiros corvos, esses sim animais nobres e altivos, mais apropriados a emparelharem com santos e milagres. Apesar das recriminações de mau agoiro, e dos eventuais conúbios espúrios com a bruxaria, o corvo negro, de bico curvo e aguçado, faz parte daquele universo restrito dos bicharocos que o humano ou preza, ou teme, ou respeita. Dito isto, Vicente espanejou a asa.
O que lhe interessava, no entanto, não era a precisão sem grande relevo sobre a estirpe dos corvos milagreiros, mas sim a tal alusão a Ulisses, e ao mito fundador da cidade que os romanos haviam construído. Munido de um livro, lançando em redor o olhar desdenhoso de quem olha para uma gentinha que precisa dos estrangeiros para saber qualquer coisa sobre si mesma, desdobra-se uma página de um texto de Sylvie Deswarte, já publicado há alguns anos em francês, em que essa notável investigadora do universo cultural português, em especial do século XVI – e muito particularmente de Francisco de Holanda –, dá à estampa duas representações em vasos gregos da mitologia de Ulisses.
Faz-se silêncio, e nem Vicente, o corvo, grasna. As estampas são bem diversas, reportando-se a primeira ao episódio da Odisseia em que o herói, atado ao mastro, resiste ao cântico encantatório de umas aves meio antropomórficas, colocadas, duas delas, nem por acaso, à popa e à proa da nave, que mantém a sua rota. O segundo desenho é muito menos cuidado no traço, mesmo algo grosso, tornando-se a afinidade com as representações vicentinas bem mais evidente, com a figura humana ao centro, de pé, e as duas aves, mal estilizadas, pairando de um lado e outro como sombras negras protectoras.
Exibidas as imagens que ansiava mostrar, Vicente, o corvo, dá à asa e desaparece no céu de Lisboa, planando para os lados de Belém. Mas as duas imagens ficam a fervilhar sozinhas, causando a estranha sensação de não se saber o que dizer, ou sequer o que se pensar. Teriam os romanos, em especial depois de Solino, no século III, identificado com Lisboa a mítica cidade que Estrabão, dois séculos antes, afirmara categoricamente que Ulisses fundara, importando para Lisboa estas representações gregas do herói lendário, que, como tudo o indica, eram bastante comuns? Teriam elas permanecido em Lisboa, guardadas como tesouro, e reaparecido de novo quando se tornou necessário? Seria por isso que tão facilmente se tornam o emblema da cidade, como atrás se notou? Ou, ao fim e ao cabo, trata-se somente de uma feliz coincidência, sem qualquer relação filial entre estas duas representações separadas por séculos, mas tão incomodamente idênticas?
Ou, colocando o tema noutro nível simbólico, não será a lenda de São Vicente, engendrada no século XII, quando Lisboa se enquadra de vez no universo católico romano, mais do que uma simples sacralização da lenda pagã de Ulisses, bem conhecida ao tempo, pois o próprio cruzado conquistador em 1147 a ela se refere sem hesitações nem dúvidas na sua célebre carta? A verdade é que ambos, Ulisses e Vicente, chegam por mar, e ambos procedem do Mediterrâneo, então ainda o centro do mundo.

Esvoaçante, o Corvo Vicente continua por aí. Esperemos com atenção e interesse para ver que outro tipo de questões, mais antigas ou mais modernas, ainda terá para deixar cair do bico adunco, para, divertido, nos confrontar a inteligência e a ousadia. Vamos ver.

José Sarmento de Matos

//COMPONENTES

Ermida Nossa Sra. da Conceição
Exposição
núcleo expositivo de Arte Contemporânea, epicentro das intervenções. Expande-se para outras localizações físicas ou simbólicas (acções de comunicação, interacção social e institucional, para lá da área de intervenção da Ermida de n.a Sr.a da Conceição).
Artistas: Simeon Lockhart Nelson, João Ribeiro + Nuno Maya & Carole Purnelle

Espaço Público
Arte urbana
Circuito de intervenções artísticas, cuja diversidade, enfoque temático
e articulação, dão a ver diferentes espaços e contextos, de acordo com o modelo da situação. É complementado por visitas guiadas, acções performativas ou percursos psico-geográ cos inspirados na deriva situacionista para fomentar o contexto informal e directo com a arte.
Artistas:Jana Matejkova, André Banha *

Edição
Livro
Acção alia-se à história, o design ao livro de arte, para produzir um objecto sinestésico. Entre a escrita experimental e o ensaio pluridisciplinar,oportunidade para testar os limites do design gráfico editorial.
Designer:Jorge Silva
Autores:José Sarmento de Matos, Nelson Guerreiro, Luís Oliveira e Silva, Pedro Gadanho, Mário Caeiro, Simeon Lockhart Nelson, João Ribeiro + Nuno Maya & Carole Purnelle, Jana Matejkova, André Banha
Autores:José Sarmento de Matos, Mário Caeiro
Editores: Ermida Na Sra da Conceição – Mercador do Tempo Lda.

Oficina de joalharia Alexandra Corte-Real
Coleção Talismã

Desde sempre o homem recorre a amuletos como elemento de protecção e poder. Os talismãs apelam ao oculto, ao sobrenatural e à magia. É a vontade de segurança que conduz a jóia – adorno de metal ou pedra – da função de protecção à de atracção, complementar. É uma sobreposição singular em que aquele desejo primordial se dá a conhecer com o brilho da sedução. Talismã para Vicente. Matriz da pena do corvo, em titânio, azul brilhante. Gesto de cuidado e carinho, que estabelece uma ligação emocional com quem a usar e convida ao afastamento do consumo imediato. Que um golpe de asa proteja dos abutres o corpo do mártir Vicente, hoje padroeiro de Lisboa.
Autora:Alexandra Corte-Real

Enoteca
Conversa solta discursos cruzados
Un Mot au bistrot, conversas circunstanciais com especialistas e outros conhecedores menos formais da cidade, à volta de uma prova de vinhos.
Coordenação: Sarmento de Matos


Visitas Guiadas
Passeios psicogeográficos

Proposta de experiências urbanas, explicitando o lugar ‘Travessa da Ermida’ como efémera micro-centralidade e centro informal de difusão cultural de experiência da cidade.
Coordenação:Nélson Guerreiro
Convidados: José Sarmento de Matos, José Luís de Matos, Margarida Pinheiro, Tatiana Leal, João Abel

Vicente,Vicente 2011

Ressonâncias de um mito luminoso

  • Simeon Lockhart Nelson (Ermida), Jana Matejkova, João Ribeiro, André Banha (Travessa), Nuno Maya & Carole Purnelle (vídeo promocional), Alexandra Corte-Real (jóias)
  • 10 Set 2011 - 25 Out 2011
  • Escultura, instalação, intervenção urbana, joalharia

  

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