There are always places along the way

O trabalho de Sandra Baía tem uma incontornável relação com o espaço e o corpo por via da escultura. Uma disciplina, ou uma metodologia, ancorada em relações de fisicalidade, próprias do que é escultórico e tridimensional. Acresce a esta confirmação do trabalho de escultor um vocabulário de materiais inscrito na transição destes para uma dimensão imagética e simbólica presente nos títulos das suas obras. A linguagem, a palavra, é deste modo também um material dúctil que a artista trabalha e que nomeia um outro plano da obra. Vejamos por exemplo uma escultura recente, de 2017, intitulada “Simplicity Isn’t Simple”. Trata-se de um paralelepípedo construído em alumínio polido, assente no plano do chão e cuja forma está alterada, como se tivesse sido sujeita a uma pequena torção ou a um impacto físico. A forma do paralelepípedo é quase regular, e deste modo é uma forma simples, como o título pode indiciar. Mas este indício, esta aparente tautologia estabelece um jogo linguístico com o espectador no sentido em que aquilo que o título nos diz não é exactamente uma descrição do objecto, mas a sua condição enquanto objecto que se põe perante nós e nos confronta na sua verdade aparente e transformada. Além disso, a superfície polida da obra acentua a torção do material reflector, criando uma alteração morfológica e visual tão cara à representação na pintura e também muito presente na escultura contemporânea.

Uma outra obra, “Entalada”, de 2018, uma esfera igualmente polida e reflectora (construída numa matéria plástica e insuflável), foi instalada entre dois edifícios junto ao seu topo, encimando o edificado como algo imutável, entalado e estático. A nomeação, de novo a linguagem no seu título, é paradoxal, dado que esta escultura se convertia num ecrã que reflectia a paisagem e transformava o espaço e o lugar, reconfigurando-os visualmente e contrariando o termo “entalada” pela expansão da imagem em movimento sobre a sua superfície.

As duas obras aqui referidas têm uma ligação com a escultura intitulada “Is There a Place Before Arriving”, instalada provisoriamente num espaço público da cidade de Lisboa, conhecido como o Terreiro das Missas.

A estrutura, construída com materiais industriais característicos do trabalho de Sandra Baía, é como um contentor, uma caixa, um andaime, ou uma moldura para a frase que lhe dá o título, escrita em néon. E esta estrutura com uma escala monumental apresenta-nos um duplo sentido. O primeiro rememora a mesa celebratória, como um altar, que na época da pesca do bacalhau era utilizada para abençoar os navios da frota bacalhoeira que partiam para os mares da Terra Nova. O outro sentido que podemos atribuir a esta instalação é a sua condição transitória, como uma estrutura móvel e temporária, como algo em construção, em devir. Como vimos anteriormente, a palavra exerce aqui uma função simbólica e, neste caso em particular, contraditória com o lugar e a sua memória na cidade, junto do rio, próximo das demandas marítimas de outros tempos, mas inexoravelmente ligada ao imaginário de alguém que parte, e do mesmo modo a alguém que chega. Aos lugares que traçam o caminho até chegar a um determinado sítio sem, contudo, perder a memória desse itinerário, mas confrontando-nos com a impossibilidade de o resgatar. “Is There a Place Before Arriving” é a forma poética de sinalizar esse lugar anterior e plural, como um anúncio à condição pré-existente do caminho, numa proposição que se constrói na medida concreta da sua progressão, geométrica e matemática, mas como uma dobra de um mapa do qual só vemos a dobra seguinte.

Enquanto escultura, revemos uma atitude construtivista, como um projecto que se propõe a um lugar que recupera outros lugares na incandescência da palavra, como um farol à beira-rio. A condição projectual está plasmada nos desenhos preparatórios. Estes, enquanto desenhos, são desde logo a expressão autónoma do pensamento que o desenho, ainda liberto na mão que o riscou, é a raiz constituiva do contentor da palavra, e assim dos lugares que a obra convoca, mas dos quais apenas sabemos que sedimentavam este lugar de chegada, de celebração e de reinterpretação deste espaço público que se expande no sentido do rio.

João Silvério

 

Sendo Belém uma das mais belas e monumentais freguesias do país, a intervenção artística no seu espaço deve ser exigente, criteriosa e abrangente. Exigente por se tratar de um espaço único, riquíssimo de memórias, cuja História é celebrada a cada esquina; criteriosa porque é efetivamente um dos polos culturais mais dinâmicos do país, abrangendo um vasto espectro de oferta cultural e artística, patente nos seus museus e monumentos; e, finalmente, abrangente, porque estamos num espaço de grande confluência demográfica, aonde convergem gentes dos quatro cantos do mundo, mesmo sabendo que o mundo não tem ângulos, como foi já plenamente demonstrado pelos navegadores portugueses.

O desafio lançado à artista plástica Sandra Baía, no sentido de criar algures neste espaço uma obra que pudesse catalisar e refletir sobre este lugar único, evocando as suas memórias e traços imorredouros, foi o ponto de partida.

O de chegada – se assim o poderemos artisticamente designar – ficará à vista de todos aqueles que passarem defronte desse portal místico que o tempo nos habituou a chamar de Terreiro das Missas. Ali permanecerá durante três meses a instalação Is There a Place Before Arriving, uma indómita estrutura metálica ostentando a legenda que lhe dá o nome moldada em néon.

A “pergunta”, seja qual for a sua formulação e em que língua for feita, é sempre o ponto de partida dos curiosos, dos inconformados e dos aventureiros.

A “Resposta”, essa só a poderemos obter individualmente depois de refletir sobre a razão e o sentido da Obra de Arte que nos interpela.
Ou seja, questionando-nos.

Luís Camilo Alves – Vogal da Cultura e Turismo – Junta de Freguesia de Belém

Ermida Fora de Portas

Is There a Place Before Arriving

  • Sandra Baía
  • 01 Nov 2018 - 30 Nov 2018

  

Projecto Travessa da Ermida © 2020. Todos os direitos reservados