Erosão

Esta mostra surge no âmbito do ciclo de exposições de Arte Contemporânea – coproduzidas pelo Projecto Travessa da Ermida, em Belém, e pelo Convento Cristo, em Tomar – que visa levar a Arte Contemporânea a este emblemático monumento da história de Portugal.

“Erosão” tem como  elemento transversal e fundamental no contexto deste projecto, o facto  de todas as peças ou foram, ou são construídas com base no mesmo principio de reaproveitamento. Lógica processual que tem acompanhado o trabalho do autor nos últimos anos. Uma constante referencia ao aparentemente obsoleto, a esse recurso de obsolescência, em cujas matérias envolvidas na maioria perecíveis, de origem industrial ou abandonadas, perderam a sua função primordial.

É este o sentido do título do projecto de exposição,  uma erosão física mas  sobretudo uma erosão de função e de como, essa  “fragilidade” ou abandono gera um processo criativo. De como esse processo elabora ainda uma estrutura de sentido que, para referir apenas um aspecto, entra em conflito com  a qualidade das matérias nobres do Convento de Cristo.

//Entrevista a Rui Horta Pereira conduzida por Catarina da Ponte a propósito de “Erosão”  a 7 de Julho de 2015

 “Recolho o que encontro, não vou necessariamente ao encontro, mas necessito das matérias. Sou um escultor com a necessidade da matéria”. A presente mostra exibe um núcleo de produções escultóricas produzidas por Rui Horta Pereira nos últimos cinco anos (2010-2015). Todas partilham o princípio da erosão, do desgaste da sua função primordial, e do reaproveitamento.

 O título desta exposição “Erosão (projeto de agregação contínua) ” dá a entender que o núcleo de obras que apresentas não começa nem termina aqui. Trata-se de um trabalho ‘work in progress’ ?

Diria que é um trabalho sempre em progresso, no qual existem várias etapas, sendo uma delas a da formalização e expressão pública. Tal como acontece no processo de erosão, no qual estão implicados vários aspetos, uns previsíveis outros nem tanto, que a dado momento atingem, por exemplo, pontos de colapso. Esta exposição é um claro exemplo disso mesmo, de continuidade e de duração, e de reação e adaptação a um espaço distinto, o que implica, necessariamente, uma reflexão sobre as questões que as instalações podem suscitar. Este aspeto pode nunca estar fechado o que, do meu ponto de vista é bom sinal.

Podes falar-nos sobre este corpo de trabalho que agrupas em “Erosão”?

Estas peças abarcam um espectro temporal da minha criação escultórica de cinco anos. Foram concebidas em contextos distintos, mas ao pensar na exposição do Convento refleti sobre o modo e o sentido de as agrupar, um conceito que pudesse determinar e justificar a presença do conjunto naquele espaço, que lhes conferisse uma linha narrativa comum. Existe em todas elas um aspeto que defini como a perda ou desgaste da sua função primeira – daí serem matérias obsoletas – quer sejam madeiras cordas ou cacos. Uma espécie de erosão de sentido, mas que é também física.

Lido, maioritariamente, com material orgânico de base, que uma vez abandonado seria a seu tempo absorvido pela natureza, no entanto, o tempo em que isto acontece é distinto. É distinto para as cordas e para o território ocupado pelos eucaliptos de onde provem a peça “estacas”. Esta regeneração e capacidade natural de transformações implicam diretamente connosco e, coloca-nos diretamente implicados na mesma. Esta reflexão é o fio narrativo da exposição, que não está só alocada ao processo, ao fazer, mas também à razão de fazer assim!

As sete instalações que apresentas nesta mostra seguem uma lógica processual de reaproveitamento de materiais que tem caracterizado a tua produção artística, como acabaste de referir. De que forma estas peças dialogam com a nobreza dos materiais utilizados no Convento de Cristo?

O processo pelo qual se escolhem as matérias, ou melhor, os materiais, não apresenta qualquer apetência específica. Tudo acontece naturalmente, atendendo muito mais a constrangimentos de carácter prático do género: como transportar, armazenar, cortar, prender ou pagar.

Usoo estritamente o necessário, limito os meus recursos ao que a rua fornece. É uma forma de equilibrar a minha vontade criadora com a minha preocupação ambiental. Gostaria de ter um gigante armazém para organizar tudo o que sobra de todo o lado, por categorias, devidamente catalogado para fornecer a criadores capazes e competentes, no mais breve espaço de tempo, ou melhor, sem tempo a intermediar, – que o tempo provoca desgaste-, tudo aquilo que é necessário para cobrir as suas necessidades básicas… de criação! Este era o meu sonho!

Em resumo, recolho o que encontro não vou necessariamente ao encontro, mas necessito das matérias. Sou um escultor com a necessidade da matéria.

O convento conjuga várias épocas e múltiplas matérias, cuja escolha recaiu não só na qualidade e durabilidade inerente, como em todo o tratamento ao longo das épocas, que denota uma mestria de requinte e detalhe. Mas o confronto existe dentro do próprio, quer de estilos quer na distinção entre espaços por exemplo, entre as celas onde está a peça “ Estacas” e as salas onde estão o “ Tapete” ou “Tempo”.

Seja pela intensidade do espaço ou pelo seu despojamento, estas diferenças permitem uma ginástica de instalação única, um desafio. Todas as peças que instalei estão de outra forma, por comparação com a primeira instalação que conheceram, adaptadas digamos assim. Esta versatilidade e elasticidade deriva do espaço para as peças e o contrário também (julgo eu), isto é, permite uma dinâmica que não estava necessariamente prevista e que me agrada particularmente. No caso das instalações, a envolvência do Convento elimina o “grosseiro” das matérias que utilizo e dissimula-o porque a perceção do espectador nunca está apenas focada no objeto mas no todo que o envolve e organiza, o diálogo pode acontecer ou não, e esse é sempre um bom ponto de discussão.

 Queres destacar alguma das obras apresentadas?

Gostava de reforçar apenas um aspeto que referi na resposta anterior que se relaciona com a instalação. Em rigor nenhuma destas peças foi alguma vez instalada como se apresentam agora, para exemplificar, é a primeira vez que “Molde (de obelisco)” se apresenta na totalidade ou que os tijolos de “Muro” se apresentam como muro ou murete ou, ainda, que a peça  “ Tapete” se apresenta num formato semi-suspenso.

Ajuda, e é isto que quero destacar, o facto de as peças serem, na sua essência, de construção, modular. Essa característica interna permite-lhes uma manipulação diversa que também se traduz nos caminhos que a interpretação pode calcorrear, mesmo não tendo qualquer referência sobre uma apresentação anterior. Trata-se também de uma característica, em certa medida, oposta a alguma tradição escultórica, que se pode entender como uma mais valia ou como uma fragilidade,  mas isso deixo em suspenso.

O ‘modus operandi’ que caracteriza o teu processo criativo passa por uma recoleção quase permanente de matérias obsoletas. Consideras-te um recoletor compulsivo?

Recolector e reciclador compulsivo, sim! Sei por experiência, que as ações que concretizam os objetos, as esculturas, as instalações, não estão dependentes exclusivamente da matéria encontrada, dessa “aparição”. Sou eu quem apanho, preparo, executo, imagino e realizo as peças.

Nem a teoria do ciclo de erosão – ideia subjacente a todo o projeto – serve por si só para explicar certos estados da “degradação” da matéria ou da formação dos leitos dos rios e por essa razão, se conjuga com outra teoria, a acíclica… Tudo flui portanto, mas partindo do tratamento direto, do contacto com o que existe disponível, sejam madeiras, ferros ou garrafas, cerâmicas ou cordas.

Qualquer despojo pode quando manipulado, encerrar em si uma intensidade e uma produção de sentido que anteriormente não continha. Nunca se livrará da sua memória nunca se livrará da sua função primeira mesmo sendo já outra coisa e, essa mediação é o meu trabalho.

Nós, entramos no ciclo, recuperamos e transformamos, produzimos indícios, ideias, objetos com fins obscuros!, ou que ilustram um compromisso cívico, a limpeza da rua, do bairro da praia do átrio… ou como ideia de progresso e evolução civilizacional.

 Preocupas-te, verdadeiramente, com os recursos desperdiçados e com ecologia?

Como acredito que o trabalho artístico não está isolado da vida e considero que todos os fatores, todos as questões que preocupam os artistas devem de alguma forma estar implicadas com as suas ações, seria estranho afirmar que não. Defendo, e não é de agora, que o artista deve comprometer-se ao nível ético e não apenas ao nível estético.

No meu caso, se tenho a possibilidade de gerir um recurso que é remanescente não vejo qualquer razão para despender energia ou usar um outro qualquer.

 Problematizas o facto da utilização de materiais “grosseiros” retirar algum conteúdo estético às obras?

Dou enfâse ao facto de qualquer matéria ser válida, mas nem toda a manipulação lhe serve. A matéria é um elemento ao mesmo tempo essencial e insuficiente. Essencial pois sem ela não chego a nenhum resultado, e insuficiente porque, só por si, sem ação, nunca se poderá constituir como um estímulo válido.

Nessa ação está muitas vezes implicada esta grosseira forma de, verbalizar e valorizar todos os aspetos práticos inerentes ao meu trabalho e com isto esvaziá-los de mistério, de conteúdo estético. Uma tradução certamente seca que aniquila a beleza ou o maravilhamento, essas coisas agradáveis que depois se compram para as coleções. E é este o tom que me dá a mim que pensar, que me inquieta e que fala na primeira pessoa e não num plural, perigoso! Tudo isto é minha responsabilidade! Um texto, por exemplo, nunca consegue, pelo menos na totalidade, nenhuma destas duas coisas, uma, a de conferir expressão e interesse a um objeto quando ele não tem, segunda extorquir-lhe e esmagar com valores e motivações técnicas, as ambições poéticas e estéticas. É um ensaio difícil, e tenho algumas dúvidas que exista um meio-termo.

A clareza formal que me preocupa parece, por vezes, remeter para segundo plano qualquer intensão, isto verifica-se tanto no meu trabalho de escultura, como no meu trabalho de desenho ( que não está aqui representado). A intensidade da experiência assume-se como mais importante do que por vezes o próprio resultado, se valorizas um aspeto é natural que o outro possa ficar algo esmagado.

Apesar da construção de peças como “Tapete (Água e um pouco de areia fina)” ou “Molde (para obelisco), serem  feitas com matérias mundanas, reconhecemos-lhe, de imediato, uma forma familiar. É esta dialética – entre material, forma e conceito – que te interessa explorar na relação da obra com o espectador?

Considero que o reconhecimento permite a aproximação, abre caminho a uma hipotética e mais atenta análise. Para dar uma referência sobre as duas peças que indicas: No caso do “Molde( de Obelisco)”, ele não existe, é uma metáfora do esvaziamento da inexistência de feitos notáveis ou celebração, no caso poderia ser cheio com qualquer matéria. Uma cofragem uma possibilidade que o espectador poderia completar, não existe o objeto em concreto mas as indicações são precisas para nos levarem a pensar no que ele é ou poderia ser, serve-se de uma estratégia de indício relativamente simplificada.

O “Tapete”, por seu lado, apresenta uma forte composição cromática. No caso desta montagem, que está até no chão, diria que a relação privilegiada do espectador é, neste caso, aquela que lhe permite ter uma perceção geral em que as múltiplas texturas e cores vibram com mais intensidade, nesta relação está implicado de forma talvez ainda mais evidente a importância da escala. Assim, aquilo que poderia até ser uma pintura revela no detalhe vestígios do mar que não me preocupei minimamente eliminar e que denunciam a sua origem a proveniência. Este jogo cria uma plataforma de entendimento, cuja eficácia se manifesta pela atitude do espectador. O reconhecimento só por si não é suficiente, é necessário através da matéria, esclarecer o que está em causa, tudo seria diferente se eu tivesse comprado todas as cordas, ao invés de as ter recolhido em zona protegida durante quatro anos.

Algumas das peças que aqui apresentas já foram exibidas noutros contextos expositivos e, em alguns casos, como em “Muro de tijolos” ou “Tudo aquilo que cair da mesa para o chão”, com formas ligeiramente diferentes. É possível vermos estas esculturas transformadas noutras em exposições futuras?

Nada as livra é um facto!… acho que cada vez me preocupo menos com a perenidade das minhas criações, prefiro um processo dinâmico. É uma questão de clareza, há trabalhos que realizo, cuja intensidade permanece independente de terem dez ou quinze anos ou um mês, esse caminho vou desenvolvendo. A par disto, há um desaparecimento formal do qual fica uma substância empírica, uma motivação e dinâmica que estou sempre a perseguir

Convento de Cristo,Ermida Fora de Portas

Erosão

  • Rui Horta Pereira
  • 27 Jul 2015 - 22 Set 2015
  • Localização:Convento de Cristo, Tomar

  

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