Woodpecker – ou o canto das árvores.

Um dia caminhava por estradas de terra e parei junto a um eucaliptal. Lembrei-me de uma história velha e ouvida não me lembro bem onde, nem por que voz. Contava que as árvores falavam e que era preciso saber ouvi-las. No entanto, nem a todos era dado esse dom. Para ouvir uma árvore seria preciso primeiro acreditar nela: aceitar o que ela nos oferece e o que nos pede. Saber senti-la como um ser vivo com o qual estamos em relação sensível permanente. Só assim poderíamos ouvir as árvores e prolongar a nossa língua, pois a língua humana é mais eloquente e rica quando se deixa tocar pela metamorfose vegetal, animal e mineral. Entraríamos então num domínio linguístico que só nos é vedado quando nos agarramos às convenções dos significados das palavras e nos esquecemos da existência da dinâmica sensível e sensual que as sustentam. Isto porque as palavras, tanto as faladas como as escritas, trazem e dirigem-se sempre a corpos:
Se nós não somos, para o dizer concretamente, mentes imateriais simplesmente hospedadas em corpos terrenos, mas sim seres corporais e materiais, então é a significação sensual e gestual da palavra falada – a ressonância corporal directa – que torna a comunicação verbal possível. É esta potência expressiva – a influência sonora das palavras faladas no corpo senciente – que suporta todos os significados abstractos e convencionais que atribuímos a essas palavras. Apesar de nos podermos esquecer da dimensão gestual e somática da linguagem, reprimindo-a a favor de definições estritas e de precisões abstractas de terminologias especializadas, esta dimensão mantém-se subtilmente operativa no nosso falar e no nosso escrever – isto se as nossas palavras têm qualquer significação. O significado, como dissemos, mantém-se enraizado na vida sensorial do corpo e não pode ser completamente cortado do solo da experiência directa, perceptual sem murchar e morrer.
Existe então uma potência linguística na experiência sensível, assim como uma ressonância sensível das palavras. É ela que faz com que a palavra seja essencialmente verbo e que aja sobre nós de um modo que a psicóloga infantil Françoise Dolto tão bem soube compreender , dizendo que se deve sempre dizer a verdade às crianças, mesmo que bebés, para não lhes tolher os corpos e o desenvolvimento integral.
Voltar ao corpo, ao ínfimo das sensações, é experimentar então o estado prévio à linguagem. A potência expressiva que, por exemplo, Artaud viu no teatro balinês : um estado sensível passível de ser configurado em música, gestos corporais, movimentos e palavras. Era para tocar este estado de potência de figuração de linguagens que Artaud preparava o seu teatro, os seus actores, os seus espectadores. Ele afastava o texto da sua proeminência na cena teatral para profanar, que é o mesmo que dizer tocar, o seu substrato sensível, a zona onde nos apercebemos que ela é simplesmente um dos modos de navegação num terreno bem mais vasto. Como que a expressar o sentir quando se entra neste terreno, Artaud escreveu, ainda a propósito do teatro balinês, aludindo a árvores, vibrações, rotações magnéticas, numa frase vertiginosa que convoca num mesmo espaço sensorial a experiência humana, o vegetal, o animal e o mineral:
Os guerreiros entram na floresta mental com rolamentos de medo; uma imensa emoção, uma rotação volumosa, magnética, toma conta deles, onde se sente que se precipitam meteoritos animais ou minerais.
David Abram, já citado, indica-nos de uma forma mais suave este pulsar de vida comum:
(…) não é o corpo humano sozinho mas sim a totalidade do mundo sensível que nos providencia a estrutura profunda da linguagem. Enquanto nós mesmos lidamos e nos movemos no interior da linguagem, também, em última análise, o fazem os outros animais e as coisas animadas do mundo; se nós não reparamos na presença destes neste campo de expressão, é somente porque a linguagem se esqueceu das suas profundidades expressivas. “A linguagem é uma vida, é a nossa vida e a vida das coisas…” É tão verdade que nós falamos, quanto o é que as coisas, e o mundo animado, falam dentro de nós (…)
A fala das árvores não é então história de fábula. Voltemos à floresta de Eucaliptos. Como conseguiria eu reconhecer a fala das árvores se nunca a tinha ouvido? Seria como Índio que, por falta de hábito, não consegue ver o barco que dá à costa? Não ouvindo nada mais do que o que eu identificava como sendo o som do vento que as permeava, aproximei-me das árvores e colei o meu ouvido ao tronco de um eucalipto. Para além da crosta da árvore abriu-se uma paisagem. Algum tempo depois a mão com a qual acolhia a árvore, como se para melhor a acomodar ao meu ouvido, começou a vibrar. A ressonância fibrosa daquele tronco propagava-se na pele e transformava o toque. Ser tocado pelo som não era uma metáfora e mergulhar a mão na fibra do tronco, bem para além dos limites dos meus dedos, também não. Já não sabia o que era som e o que era toque: estas duas modalidades do sentir mergulhavam e misturavam-se num ritmo comum e da audição passava para a experiência háptica.
É esta experiência háptica que me parece estar na base da instalação Woodpecker [o pica-pau], de Gonçalo Barreiros. Ela convida-nos a viver um pouco desse espaço sensível que inunda toda a linguagem convencional e que liga num mesmo terreno de trocas e de coordenações tanto o ser humano, como tudo o que emerge como existência no ambiente que o envolve e ao qual ele se encontra intimamente ligado. Entrando no espaço de uma ermida agora destituída da sua função original e por isso aberta à exploração de outras configurações sensíveis da experiência de religação, o nosso corpo é mergulhado num espaço sonoro antes de chegarmos ao objecto que Barreiros colocou no interior da sala: um pedaço de um tronco de árvore. As raízes estão ainda enunciadas no resto de uma oliveira que quase poderia ter nascido ali, no chão liso da ermida. Este tronco de árvore não representa nada. Ele mostra-se enquanto forma anímica, em relação com os nossos corpos, outras formas anímicas, potências expressivas como ele.
Não sei se terá séculos esta árvore: olhando para ela, vemos que muito tempo já passou por ela. É como um monumento, daqueles que nos lembram tanto a força da vida que emerge como a constância da morte que nos submerge. Há como que uma pele dura, elefantina, que se descobre na continuidade de lascas, de camadas porosas, de tonalidades múltiplas de castanho e de cinzento. Há zonas sólidas e zonas frágeis já prestes a desfazerem, prontas para a decomposição. O tronco desmancha-se e propaga-se em som, um material que Gonçalo Barreiros tem vindo a usar em algumas das suas peças, máquinas de som e de humor trágico. Parece-me haver no seu trabalho uma certa violência cruel, daquela que só a infância parece ser capaz quando monta e desmonta, muda de sítio, explora funções e ligações inesperadas naquilo que lhe vai parar às mãos. As suas formas escultóricas estão à beira da figuração, o que é o mesmo que dizer, à beira da dissolução: como o sorriso meio sarcástico que é baloiço ou barco (Salesman, 2007) ou as galinhas de plástico que apitam ao serem esmagadas por uma prensa especialmente construída para tal, como nos mostra o filme “É preciso que a vida inspire confiança” . A dor de um boneco pode provocar-nos mais incómodo do que a de uma pessoa devido à sua impossibilidade de defesa. No entanto, pela forma lúdica para a qual somos convidados a provocá-la, dificilmente a evitamos. Mas não são galinhas de plástico nem são esmagadas. São máquinas de cadência sonora.
A matéria de Woodpecker, desta árvore-animal, parece querer atingir a qualidade vibratória, transmutar-se para o estado musical. Uma árvore morre e dança assim: desmancha-se, desfaz-se e propaga-se. O som que ouvimos e no qual fomos mergulhados logo no início é o som do impacto leve e prolongado desta dança; uma frequência, um estremecimento contínuo que é também o som da fricção que provoca a erosão lenta da matéria. No entanto é preciso não esquecer que o som, tido como a mais etérea das experiências sensoriais, não é antagónico à matéria, e mesmo a toda uma mecânica concreta. E tal como as fábulas nos dizem algo da experiência concreta, também o que a arte nos põe em cena não é só imaginário distanciado da existência real. Tudo isto nos relembra o filósofo pragmatista americano John Dewey, apelando ao mesmo tempo para o reconhecimento das potencialidades cognitivas da experiência artística e lembrando que tanto a arte como a natureza são feitas de regularidade e de necessidade, de espontaneidade e de novidade, e que uma e outra se iluminam mutuamente:
Ela [a experiência artística] irradia a luz que nunca antes esteve sobre a terra e sobre o mar, mas que se torna a partir daquele momento uma iluminação constante dos objectos. A música, na sua ocorrência imediata, é a mais variada e etérea das artes, mas nas suas condições e estrutura, ela é a mais mecânica. Estas coisas são lugares comuns ; mas enquanto elas não forem correntemente empregues pela sua significação evidente em relação à natureza da teoria da natureza, não há razão para pedir desculpa pela sua citação.

Liliana Coutinho

Notas:

[1] If we are not, in truth, immaterial minds merely housed in earthly bodies, but are from the first material, corporeal beings, then it is the sensuous, gestural significance of spoken sounds – he directly bodily resonance – that makes verbal communication possible at all. It is this expressive potency – the soundful influence of spoken words upon the sensing body – that supports all the more abstract and conventional meanings that we assign to those words. Although we may be oblivious to the gestural, somatic dimension of language, having repressed it in favor of strict dictionary definitions and the abstract precision of specialized terminologies, this dimension remains subtly operative in all our speaking and writing – if, that is, our words have any significance whatsoever. For meaning, as we have said, remains rooted in the sensory life of the body – It cannot be completely cut off from the soil of direct, perceptual experience without withering and dying.” Abram, David, “The flesh of language”, The spell of sensuous, New York : Vintage Books, 1996, p. 79-80

[2] Ver por exemplo, Dolto, Françoise, Tout est langage, Paris : Gallimard, 2002.

[3] «Les guerriers entrent dans la forêt mentale avec des roulements de peur ; un immense tressaillement, une volumineuse rotation comme magnétique s’empare d’eux, où l’on sent que se précipitent des météores animaux ou minéraux» Artaud, Antonin, « Sur le théâtre balinais » (1931), Artaud, Antonin, « Le théâtre et son double », Œuvres complètes – Tome IV,  Paris : Gallimard, 1964, p.81.

[4] (…) it is not the human body alone but rather the whole of the sensuous world that provides the deep structure of language. As we ourselves dwell and move within language, so, ultimately, do the other animals and animate things of the world; if we do not notice them there, it is only because language has forgotten its expressive depths. “Language is a life, is our life and the life or the things…” It is no more true that we speak than that the things, and the animate world itself, speak within us […], Abram, David, “The flesh of language”, The spell of sensuous, New York : Vintage Books, 1996, p. 79-80

[5] Baseado na obra de Gonçalo Barreiros e realizado por Cíntia Gil e Maria Joana.

[6] «It radiates the light that never was on land and sea but that is henceforth an abiding illumination of objects. Music in its immediate occurrence is the most varied and ethereal of the arts, but in its conditions and structure the most mechanical. These things are commonplaces; but until they are commonly employed in their evidential significance for a theory of nature’s nature, there is no cause to apologize for their citation.» Dewey, John, Experience and nature, George Allen & Unwin, LTD, London, 1929, p. 360.

Woodpecker

  • Gonçalo Barreiros
  • 14 Janeiro 2012 - 11 Março 2012
  • Escultura, instalação
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