Voyeur

Ao oferecer aos materiais do quotidiano a forma e escala diferente do seu sentido inicial, Claes Oldenburg celebrava o poder do objecto comum àquilo que a Pop Art entendia como a transfiguração do lugar-comum. Nos anos 1960, Claes iniciava um género de escultura pública invulgar – aquela a que o seu nome é usualmente associado: as obras grandes, desmedidas, fora da escala humana, feitas às vezes de materiais moles, de carácter fake. Retiradas de estructuras reconhecidas do consumo, i.e. latas, comidas, electrodomésticos, utilitários, etc… as obra de Claes conjugam  o fetichismo dos gadgtes e dos aparatos sócio-estéticos do sistema capitalista. Desde a sua primeira obra fora da medida, o Colossal Monumental Drawing, de 1965, o artista perseguia a lógica baudrillardiana de que o simulacro não é o que oculta a verdade. É a verdade que a oculta, que não há verdade e o que o simulacro é que é o verdadeiro na nossa sociedade. O artista passa a figurar das personalidades a que mais transcende ao quotidiano. Juntamente como Andy Warhol, James Rosenquist e Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg tornam-se um dos mais profícuos artífices da Pop Art norteamericana. 

Numa declaração bastante crítica, o artista responde aos críticos sobre o seu ideal de arte: “I am for an art that is political-erotical-mystical that does something other than on its ass in a museum… I am for an art that takes its form from the lines of life itself, that twists and extends and accumulates and spits and drips, and is heavy and coarse and blunt and sweet and stupid as life itself”. A sua resposta, ácida e crítica, põe-se em rota de colisão ao pensamento formalista alimentado pela estética moldada pelas ideias de Clement Greenberg. Era a sua resposta à Rosalind Krauss, por esta tê-lo excluído do livro Passages in Modern Sculpture (1977), pois como defensora do formalismo greenbergiano, Krauss baniu por completo o artista, nem sequer citando-o naquele que é considerado a bíblia da escultura norte-americana. Krauss incluiu artistas minimalistas e pós-minimalistas, apesar de condenar o teatral de muitas experiências de artistas daquela geração, mas excluiu por completo as obras de Claes Oldenburg na sua exegese. Defendido por Lucy Lippard e recuperado pelos artistas posteriores a sua geração, a obra de Claes Oldenburg veio a interessar exactamente aos artistas oriundos da Califórnia, como Paul McCarthy e Mike Kelley, e alguns em Nova York como Robert Gober, John Baldessari e Charles Rey. Não se entende mesmo a recusa a escultura mole por parte de Rosalind Krauss pois a autora inclui a obra de Robert Morris que, em certos aspectos, comungam dos mesmos materiais. 

Mesmo um historiador de clássica formação como Giulio Carlo Argan defende as acções transformadoras do artista. Argan afirma que entre os expoentes da Pop Art dos Estados Unidos, “Claes transforma o “objecto” de uso comum, o objecto do mass media, por meio de uma espécie de metamorfose; deste modo, não o apresenta como documento, como testemunho da civilização do consumo, mas realizando-o inicialmente em papelão, e depois em papier maché, em gesso pintado, dá inicio à assunção hiperbólica do próprio objecto, que assume proporções gigantescas, transformando-se numa versão fantasmagórica, suave, sem ângulos, que toda a sua agressividade e parece querer se reconciliar, agora “termo” e “materno”, com o homem. E eis o interruptor macio de 1966, a Máquina de escrever mole, o WC mole… …Seguiam-se os objectos “duros” (dos alimentos aos cigarros, aos sorvetes de gesso, à pilha eléctrica, ao batom, à mesa de passar roupa), realizados numa escala gigantesca, que se propõem com novos “monumentos” aos novos heróis da civilização contemporânea, a serem colocados no centro de grandes praças, próximos aos arranha-céus de nossas cidades”

Para Arthur Danto a Pop Arte é a verdadeira pós-modernidade da arte, onde Jeff Koons e Matthew Barney são os exemplares de artistas que melhor entenderam a questão do simulacro. Sendo Claes Oldenburg e Andy Warhol os progenitores intelectuais destes. O genius loci em Warhol, Oldenburg, Koons e Barney aparecem nas apropriações do grand guignol que é a sociedade norte-americana: o desporto, o glamour, o cinema, o desperdício, o dinheiro, o sexo, a comida – estes formam a imagerie símbolo da americanização, ou daquilo que é veículado como tal. Estes artistas lutam pelo lugar ideal usando o pastiche, a ironia, o camp, como reflexão. Dissecado por Susan Sontag, o camp é o filho bastardo do kitsch europeu e, como tal, explica-se na obra destes artistas, pois neste contexto o simulacro é uma arma poderosa de valorização da cultura norte-americana. 

Foi, no entanto, Walter Benjamin que cedo alertou para os efeitos da sociedade de consumo. Diz: “foi cedo – meados do século XIX – que a cultura começou a opor-se a esse racionalismo dos objectivos. Durante o período do Simbolismo e da Arte Nova, a consciência do facto aflorou em artistas como Oscar Wilde que, num gesto provocatório, apelidaram a Arte de desnecessária. Mas, na sociedade burguesa – e, para falar verdade, não é só um fenómeno recente – as relações entre o últil e o inútil ocupa o lugar daquilo que o lucro já não conseguiria desvirtuar. Muito do que é classificado como bem utilitário ultrapassa a imediata reprodução biológica da vida”

Baralhar citações, apropriar-se do feito, modificá-lo e devolvê-lo sob o status do reconhecido, igual mas ainda sim diferente, parece ser a vontade de João Noutel. A obra Voyeur, no ambito do Giant, The Voyeur Project, é uma assimiliação da modus operandi de Claes Oldenburg. Uma escultura em poliuretano e fibra de vidro, de profunda cor negra, em forma de binóculos, tal qual as peças de Claes, exacerbam sua dimensão, impossibilitando o seu uso, uma espécie de maximização de um readymade re-modificado. “Nesta estreita relação entre o simbolismo iconográfico da focalização, na procura da nitidez do que se pretende olhar e ver, reside a composição narrativa e a singularidade deste objecto perdido, em pleno estado de conservação, que ora vive num espaço público, de passagem ou num cenário privado, de encontro”, aponta o criador. A obra denuncia um gigante – será que ele virá? Será que existe? Como os personagens de Pirandello a espera do Gigante da Montanha, porém nunca chegam. 

Para o artista, Voyeur é também uma obra síntese da linha de trabalho que vem seguindo nos últimos anos, com uma especial atenção e intenção de materializar tridimensionalmente a componente iconográfica do universo ou construção ficcional. Na tentativa de aproximar públicos, provocando-os, colocam-se questões de focalização; ou seja, apresentam-se pistas de percepção do que no quotidiano cada um observa e constrói como sendo a (sua) realidade, a forma como a interpreta e aquilo que relativamente a ela se opta por olhar. Nessa construção recolhem-se elementos de confronto entre distância versus proximidade;  acessório versus o essencial; presença versus ausência; importância versus superficialidade, através de mecanismos de acerto do que se observa, com a nitidez subjectiva pretendida, filtrando o que interessa, percepcionando o menos óbvio, vendo o que apesar de distante, se pode tornar perto”.

 Também as suas pinturas guardam um voyeurismo tipicamente pop, como as de Rosenquist, ou mais tardiamente as Baldessari. Não é só influência, é mesmo reverência. Rosenquist trouxe para a pintura o flagrante delito do espreitar através de janelas, dos buracos, dos orifícios da arquitectura, dos espaços, como um viciado escópico – tomamos aqui emprestado o conceito lacaniano -; de Baldessari, a materização destes espaços pela(s) cor(es) que encobrem e revelam novos espaços e narrativas na pintura. João Noutel faz essa referência com nítida consciência da apropriação e, elegantemente, entrega ao espectador, voyeur, que se arrisque neste mundo citacional, recombinando Claes Oldenburg, Andy Warhol, James Rosenquist e John Baldessari em seu projecto voyeuristico. 

Paulo Reis

Notas:

[1] Rorimer, Anne, New Art in the 60th and 70th – Redefing reality, London: Thames & Hudson, 2001.

[2] Krauss, Rosalind, Caminhos da Escultura Moderna; tradução: Julio Fischet, – São Paulo: Martins Fontes, 2001

[3] Lippard, Lucy, A Pop Art; São Paulo: Edusp, 1976

[4] Argan, Giulio Carlo, Arte Moderna, tradução: Denise Bottmann e Federico Carotti; São Paulo: Companhia da Letras, 1993.

 

 

 

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