Voltar

 Voltar de vez em quando revela um território polimórfico de regressos, convocando momentos-retorno da historiografia da arte, da genealogia do lugar e a memória dos afectos. Em desafio contido à gravidade, corpos marmóreos suspendem o tempo cronométrico e desvelam a temporalidade subjectiva do regresso, do momento afectivo que suspende as convenções do ser e do estar aqui e agora, ter sido, ter estado, ser e estar sempre.

Voltar como momento

A ideia de regresso reinscreve o passado e antecipa o futuro. Voltar pressupõe um desafio ao tempo cronométrico e histórico que constrange os ciclos orgânicos, o momento como intervalo emocional e psicológico e ainda as possibilidades de uma temporalidade subjectiva. O tempo como violência e a violência do tempo são diluídas na transformação do evento em momento, ou seja, quando se desconstrói a sucessividade, as relações causa-efeito, a aritmética do sol. Se uma das mais antigas invenções do género humano – o relógio – permitiu, de formas cada vez mais sofisticadas, observar a passagem do tempo cronológico ou cronométrico, mensurável escopicamente, que ritmava a vida quotidiana da humanidade, são muitas as manifestações discursivas que desenham o tempo histórico e mnemónico, permeando temporalidades que guiam (e constrangem) pulsões e desejos. Voltar contém, assim a promessa, o arrependimento, a imaginação do querer e do crer.

 Voltar como (re)visão

 Tendo como característica congénita a reciprocidade, o olhar inscreve o acto de ver num território alargado de sociabilidade, que condiciona e é culturalmente condicionado, onde a relação com a alteridade, o conflito e os exercícios de codificação e descodificação são constantes. O olhar implica assim um voltar a ver – uma re-visão –  A arte contemporânea (pelo menos, uma parte dela) demonstra uma vocação participativa nesta cartografia maior de revisionismo ao integrar, denunciar, citar, mostrar, esconder imagens anteriores, ao convocar um passado imagético que, muitas vezes, consubstancia o presente das imagens. O gesto criativo contemporâneo, na sua forma constelar de uma inclusão quase infinita, envolve no seu campo de acção um conjunto de exercícios revisionistas que reflectem sobre o arquivo, a memória, o passado, e outras formas de anterioridade, produzindo significados pela ocupação desse lugar intersticial do antes no agora. É esta uma das valências da arte na contemporaneidade visual: a da negociação do passado como forma de produção de presente. A representação deve, portanto, ser entendida, também, pela acção que condensa na sua própria composição linguística: a de re-apresentar alguma coisa, comportando uma dimensão de anterioridade latente. Esta dimensão de anterioridade manifesta-se de diversas formas na criação artística, num tempo de urgência do visual, sendo que muitas vezes o que se situa a montante de uma obra de arte é uma outra imagem. Voltar à imagem outra.

Voltar como afecto

 Se os modernismos permitiram que a arte se transformasse numa superfície de significação autónoma, liberta de uma obrigatoriedade representativa do real, já teria sido com o romantismo que a obra de arte se tornara plataforma de intervenção na realidade. São estes momentos que antecipam o surgimento da arte enquanto território que, a partir de um posicionamento autónomo e independente de uma função de espelho, actua num domínio que extrapola o campo artístico, convocando diversas subjectividades. A natureza contém um princípio interno de mudança e movimento que permite a geração de novas entidades. A capacidade que a arte detém de imitar este princípio permite-lhe que, a partir de um exercício baseado em relações de semelhança, crie algo original. O real não se situa apenas a montante da acção de representação artística, mas a jusante, ao compor-se, também, a partir dos resultados desta acção. Voltar a um lugar ou a um momento implica uma vontade, uma predisposição, um desejo muitas vezes pré-cognitivo e de resistência ao simbólico, pelo que a criação é sempre afectiva. O afecto tem uma potência de ampliação epistemológica, contribuindo para um conhecimento expandido e  subjectivamente real.

Voltar como mundo

 As criações artísticas são simultaneamente entidades existentes no mundo e representações do mundo, porque os vários significados que incorporam são causas e efeitos de uma (e numa) supra-estrutura política, social, económica e cultural em que estão inscritos. São entidades com ontologia própria que se debruçam sobre algo e, consequentemente, detêm conteúdo semântico; programáticas, ou seja, contêm uma posição ou postura sobre aquilo de que tratam (essas posições apresentam-se através de estratégias retóricas, nomeadamente, metáforas); passíveis de exercícios interpretativos que integram a sua ontologia (a interpretação a que estão sujeitas é historicamente situada e tem, portanto, uma natureza contextual). As fricções da estética e da política tornam-se centrais nos debates mais latos da representação, que incluem já a consciência de uma diversidade cultural global e necessidade de inserção de uma dimensão subjectivo-política. Por isso, as obras de arte são, como afirma Arthur C. Danto, significados incorporados. Tal como o mundo dá voltas sobre si próprio, também a obra de arte volta constantemente a um novo lugar que significa outra vez em corpo.

 

Ana Cristina Cachola

 

Voltar de vez em quando

  • Cristina Ataíde
  • 24 Junho 2017 - 19 Agosto 2017
  • Instalação
  • Ver Publicação

  

Projecto Travessa da Ermida © 2020. Todos os direitos reservados