JOSÉ DE GUIMARÃES

Como conceito central desta exposição, a noção de DIORAMA reúne muitos dos temas culturais presentes no trabalho de José de Guimarães. No contexto da obra vasta e prolífica do artista em pintura, desenho, grafismo, escultura e arte pública, esta mostra apresenta uma preocupação fundamental que marca presença na obra produzida ao longo da sua carreira: a fusão do trabalho artístico com o material etnográfico da sua colecção de arte extra-europeia.

Imersivo, este complexo de instalações-dispositivos exibido na Ermida é ambíguo, pluriforme e extraordinário na sua natureza híbrida. O público perde-se entre objectos que simultaneamente nos mostram e são mostrados, entre o dispositivo museológico, o objecto exposto no seu interior e o acto artístico que em si gera novos objectos culturais.

Desde o início da sua carreira, a fusão de linguagens extra-europeias com linguagens europeias tem sido uma preocupação premente para José de Guimarães, manifestada através de diversos meios artísticos. Nesta exposição somos confrontados com sistemas de apresentação museológicos que não só representam as caixas de transporte das peças, mas também albergam, emolduram e mutam os objectos exibidos através da intervenção artística performativa. Integram uma escultura fúnebre do Namibe, Angola, datada do início do século XX, uma escultura de um crocodilo do Burkina Faso, uma estátua fetichista do Congo e uma máscara da Costa do Marfim, que não só representam um vislumbre das vastas colecções Africanas de José de Guimarães, mas também falam sobre a contribuição multifacetada do artista enquanto criador de arte e grande coleccionador de arte vernacular não-europeia.

Este princípio caracteriza o seu trabalho, assim como a natureza do museu que fundou em 2012 – Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) – que acolhe parte das suas colecções pessoais de arte Africana, Chinesa e pré-Colombiana e a arte contemporânea que inspiram. Ao abrir o arquivo ‘etnográfico’ a associações com uma visão universalista, o programa museológico deste centro, assim como o próprio trabalho do artista, provocam a constituição de um novo significado.

 

DIORAMA

Como o próprio artista indica, a relação de diorama com as instalações de grande escala aqui apresentadas, e com o seu trabalho de forma geral, é paradigmática – quebrando as fronteiras entre disciplinas e os limites de territórios geográficos e temporais. A função histórica dos primeiros dioramas foi de provocar espanto, mas também transportar imagens de um ambiente para outro, suplantar as limitações do tempo e do espaço, fundindo contextos.

Enquanto protótipo de museu, um diorama é primeiro um contentor – resultante de processos de acumulação, de colecção. Acomoda e encena um micro universo com a sua própria genealogia. O diorama pode ser visto como um proto museu – uma cápsula para o arquivo e colecção de fragmentos, provas e fantasmas de tempos e lugares que são testemunhas de uma identidade cultural ainda misteriosa. Porém, podemos também pensar o diorama não apenas como um receptáculo, mas também como um gerador de significado. A sua natureza híbrida, que fusa e cria um todo a partir de fragmentos, gera uma nova configuração. Correspondentemente, no trabalho de José de Guimarães, as caixas de transporte que acolhem objectos museológicos e funcionam como janelas para outra realidade cultural, não são tanto um dispositivo para reproduzir uma realidade, mas sim um espaço para a criação, onde a informação cultural é transformada e mutada num ser novo e ampliado.

O diorama (no seu sentido histórico), com as suas amplas paisagens e encenação de ambientes distantes, representa a ilusão, a ambivalência entre o material e o animado, entre o artificial e o natural. Ao mesmo tempo, os primeiros dioramas podem ser ligados a uma falta de rigor científico, onde os limites entre ciência e espectáculo são fluidos.

No caso das instalações de José de Guimarães, a fusão entre inputs etnológicos e artísticos vai para além desta ambiguidade, enquanto a teatralidade e as intenções pedagógicas dos dioramas clássicos são ultrapassadas por uma ironia pós-moderna e pós-conceptual.

Enquanto dispositivo artístico, o diorama tem permanecido constantemente presente na arte contemporânea, realidade demonstrada numa exposição retrospectiva no Palais de Tokyo de Paris, em 2017. Do Étant donnés de Marcel Duchamp (1946-1966) às caixas de luz de Jeff Wall, às imagens imersivas de Hiroshi Sugimoto que reforçam o poder de ilusão da imagem, a arte contemporânea tem criado uma afirmação clara contra as políticas de apresentação autoritárias e hierárquicas dos museus. Os dioramas na arte contemporânea denunciam a relação de poder e a perpetua incompreensão entre público e ‘objecto’ enjaulado, herdado dos dispositivos de visionamento do século XIX.

 

DIORAMA COMO MUSEU

Seguindo a mesma linha de pensamento, o princípio de diorama aplicado na arte de José de Guimarães transforma-se numa provocação de lugares comuns transportada e reforçada pela disciplina da museologia. Para José de Guimarães, dioramas não são apenas proto museus, mas anti museus. As suas instalações confrontam-nos com um ponto de (dis)conjuntura de vários paradigmas museológicos. Podemos entender estas instalações como um exemplo tardio do Quarto de Maravilhas, modelo museológico renascentista, na medida em que José de Guimarães, enquanto colecionador, cria o seu próprio universo cumulativo. De acordo com escolhas subjectivas que resultam de um impulso de querer “saber”, estas colecções surgem das suas viagens e empreendimentos científicos. Ao mesmo tempo, estas instalações, que são construídas em caixas para transporte internacional, funcionam como museus portáteis: o ‘objecto de conhecimento’ pessoal e heteróclito intencionado para circular no perímetro de um mundo moderno em expansão e rápida transformação.

O ‘boîte-en-valise’ foi um modelo museológico inventado no modernismo, como uma forma alternativa para contestar o monumento/instituição pública que transportava hegemonia histórica. Este novo micro museu portátil era transformável (sendo constantemente actualizado, esvaziado e recheado de novos conteúdos). Ao contrário do museu tradicional, não tinha a pretensão de revelar ‘maravilhas universais’ e fazia parte dos movimentos em mutação e circuitos culturais do mundo moderno (sendo uma estrutura portátil). Como um diorama, era teatral e tinha uma dimensão performativa. Do ‘La Boîte-em-valise’ de Marcel Duchamp (primeira versão 1936), à ‘Scatoli Personali’ de Robert Rauschenberg (1952) e os ‘Sentimental Museums’ de Daniel Spoerri (cujo primeiro foi apresentado no Centre Pompidou em 1977), estes museus em miniatura ampliam a identidade de um objecto através de associações a objectos de outros contextos.

Estas formas híbridas estão intimamente ligadas com a emergência do ready-made e das formas incipientes de instalação artística, e começaram a questionar hierarquias entre disciplinas, entre a ‘alta cultura’ e aquilo que era entendido como arte ‘tribal’ ou colectiva, entre o produto natural versus o produto cultural. A experiência de produzir novos significados interdisciplinares com a aproximação de fontes/corpos autónomos, corroborada com a emergência da arte conceptual, formulou um novo entendimento do papel social da arte no novo espaço global.

Neste contexto podemos também olhar para a famosa “Wall” de André Breton, agora exposta no Centre Pompidou e que integrava o seu atelier no número 42 da Rue Fontaine, em Montmartre, Paris, até à sua morte em 1966. Durante as últimas décadas da sua vida, Breton adicionou progressivamente objectos etnográficos à “Wall”, relacionando-os com o trabalho de Surrealistas seus contemporâneos, criando uma nova composição — um trabalho curatorial em constante mutação. Várias influências e elementos culturais extra-europeus, com as suas histórias e identidades distintas, foram absorvidos como parte constituinte da modernidade europeia. Alicerçada em genealogias pessoais de ideais e formas, a época de Breton, marcada por estas contaminações e pela “Wall”, desenvolve novas formas de fundir a arte extra-europeia com arte contemporânea. Estas práticas foram imediatamente contestadas, por reproduzirem o olhar europeu, autoritário e colonial, sobre ‘outras’ culturas, solidificado em princípios formais para a gratificação visual. Mas ao mesmo tempo, iniciaram um novo movimento cultual, visto como emancipatório do pensamento colonial herdado, criando novos híbridos, pertencendo a uma nova era para além do mundo colonial.

As associações entre materiais etnográficos e artísticos têm sido assiduamente revistas pela análise pós-colonial, maioritariamente em relação à ambiguidade no que toca às classificações culturais e políticas que criaram. Desta forma, a arte conceptual contribuiu também para a emergência de uma pluralidade de soluções museológicas críticas, que começaram a ser desenvolvidas com a avant-garde e suscitaram uma análise mais especializada da relação objecto-contexto.

As obras de José de Guimarães aqui apresentadas podem ser vistas como se situando nesta genealogia cultural. Emergem desta consciência pós-moderna e pós-conceptual e estão profundamente ligadas com a nossa forma contemporânea de experienciar e atravessar o espaço geográfico e cultural. Os objectos culturais que integram esta exposição não ‘documentam’ ou sustentam uma realidade alternativa. Ao contrário da forma clássica de apresentação museológica ou às abordagens modernistas aqui delineadas (responsáveis por uma narrativa única e mestre), estas instalações não impõem um significado aos objectos expostos, à semelhança da própria arte conceptual que se abre a uma multiplicidade de experiências de visionamento.

A obra e conhecimento enciclopédico de José de Guimarães possibilitam que objectos autónomos desenvolvam um significado cultural independente dos seus ‘proprietários’ (como a justaposição entre arte etnográfica e contemporânea abre múltiplas narrativas históricas que ultrapassam uma leitura predeterminada). Através da sua agência e da vastidão da sua obra, torna-se óbvio que a arte conceptual é aqui investida como uma ferramenta para comentar não as qualidades estéticas dos apelidados ‘objectos etnográficos’, mas uma história global de apropriações culturais, e o papel e poder da arte neste contexto para agir como uma ferramenta crítica, subversiva e rejuvenescedora.

Marta Jecu

um espaço dentro da linha 

Na exposição “Dioramas”, José de Guimarães reúne objectos etnológicos combinados com caixas de transporte de obras de arte apropriadas e intervencionadas, de sentido deslocado da sua faceta meramente funcional para uma interpretação artística da noção de Diorama que dá título à exposição, no seu conjunto criando uma atmosfera mágica e contemplativa numa festa extática de assombro e cor.

Se, por um lado, estão ausentes os domínios artísticos da pintura e da escultura que ocupam posição central e substancial na produção artística de José de Guimarães, por outro lado, encontra-se a presença das suas energias vitais, das suas forças motoras, convidando a visitar o mundo do artista, a ir além desta exposição, a receber e absorver essas energia e força, a do imaginário da viagem e da simbiose cultural como possibilidade de uma ideia de mundo universal.

 

uma irresistibilidade a perturbar

Em 1968, José de Guimarães declara a arte perturbadora. A arte que “existe na imaginação, nunca na realidade contemporânea”; a que “é invenção, é o irreal no presente”, que “é a realidade do sonho”, que “é vida para fora de nós”[1].

Neste impulso intencional pressente-se, é proclamada, uma incoercibilidade perante o limite aquém do qual resta a “pequenez da auto-suficiência”, e que compele o artista a exaltar, permanentemente deformando, e nunca conformando[2]. A pequenez, esta que esquiva-se em evasões, que investe em artimanhas, que abafa a irreverência e o inconformismo nas dobras e desdobras do manto superficial do quotidiano, esta que inibe o ir além[3].

Não. Esta arte perturbadora é a que provoca, a que arrebata face ao desassossego do desconhecido, à imprevisibilidade do incerto. A que oferece, e que vive de, uma variação catártica e purgativa, na, e pela, emoção sentida. É a arte que enfeitiça e alvoroça. É a que subverte e deslinda, que obscurece e clarifica, que contamina e purifica. É implacável e intransigente, é invencível. É a que infiltra-se nos interstícios corpóreos e entronca nas profundidades do âmago; é a da incandescência das dúvidas da razão, a que deposita as certezas da especulação. É a que eleva a realidade no arrepio do mistério e no espanto da revelação, esta de que José de Guimarães se encarrega.

É a arte que, diante da fronteira, persuade a disposição para atravessar. E, neste aspecto, é, tão simplesmente, a arte que se forma na acção de passar, a da viagem, seja esta de eu para outro, de cá para lá, de antes para depois, do real para o irreal, do que (nunca) foi para o que (nunca chegou a) deixou de ser, ou de quantas outras sejam as proposições que confrontam-se em antinomia e, no confronto, que encontram-se.

Se a invocação do manifesto de José de Guimarães é imperativa à abordagem da sua obra artística, não deixa de ser curioso que a exposição “Dioramas” comece por introduzir, por condição museográfica, uma fronteira entre a estreiteza da realidade e uma estranheza de ordem outra e maior, a do rasgo da imaginação, do sonho e da arte. E, entre elas, um estado natural de passar.

 

um estado natural de passar

Quando não o detém como destino, por intenção ou em circunstâncias que se escapam, a vida em viagem ensaia o acidente de um regresso, concreto ou metafórico. É José ele-próprio quem, ainda antes do primeiro adeus, parece alimentar a nostalgia odisseica de uma origem, declarando-se de Guimarães. Não obstante, é soberana a natureza de José de Guimarães, que desvia o rumo, seduzido por um cantar misterioso, como que por uma imprescindibilidade fundamental, uma liminaridade inerente. Em Pessoa encontra-se o encómio desta inquietude[4]:

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

Em José de Guimarães está naturalizado este estado, como temperamento e condição, que é o do fascínio do passar (passar v.; t. ind., intr. Deslocar-se num espaço, cruzando-se com alguém ou com alguma coisa; t.d., t.ind. Transpor. ~ a fronteira. ~ a meta. ~ além do Bojador; t.d. e ind. Fazer mudar ou mudar de lugar; t. ind. Ter o seu curso; t. ind. Ir a um lugar ou fazer escala nele, por pouco tempo; t. ind. Sofrer um processo, uma evolução. ~ por uma metamorfose; t. ind. Ultrapassar, ir além de; t.d., t.ind. Experimentar, ter como vivência; t. ind. Mudar de estado ou condição, etc.[5]). José de Guimarães é, naturalmente, viajante.

Por mais aliciante que seja o andar no mundo e correr países, o que a imaginação arrisca adivinhar nos acidentes da incerteza, a antecipação da partida acarreta o abandono do familiar e o confronto com o incompreensível. O olhar de José é de Guimarães; uma raiz biográfica, sujeita ao lugar e à data. Sendo-o, não o é também, não o é apenas. Contrassenso algum reside na exaltação nominal da origem de José, o viajante. Aos seus ombros, o desapego é um levíssimo fardo. Este olhar contesta a linha de horizonte, e desafia os dois atributos essenciais que constroem vida e História. Conserva-os, mas dessamarra-se da linha cartográfica que demarca o espaço e da linha cronológica que mede o tempo.

Para lá da origem pessoal, de Guimarães é metáfora de algum algures de onde partir para encontrar o que está além. Simboliza as escalas temporárias do passar em espaços e tempos outros que, de uma forma ou outra, afastam-se daquela mas a ela parecem permanecer fixadas; pois a nostalgia, se sentida, sê-lo-á, não necessariamente por um regresso, mas pelo ardor da viagem enquanto eterno destino ela-mesma, criando distorções espaciais e anacronias temporais. José é de Guimarães porque, naturalmente, vive em passagem.

A idiossincasia deste olhar posto sobre os quatro cantos do mundo entre a terra e o céu, entre a realidade e o sonho, que é modo de vida como reverberação de um estado de espírito, oferece a matéria-prima para a materialização da obra de arte.

 

escavar e peneirar

Se o laço pessoal à historicidade nacional guardado pelas muralhas afonsinas de Guimarães manifesta-se na evocação de D. Sebastião, de Camões e dos Descobrimentos enquanto portais para este legado cultural, não-menos aquele vínculo notabiliza-se no desprendimento do euro-centrismo ocidental, no revisionismo reaccionário da aventura além-mares espoletado pelo ocaso do imperialismo que antecede o Abril revolucionário, e pela apreensão da autoridade, autonomia e vitalidade das culturas olhadas como periféricas, as excluídas, as excêntricas, que o colonialismo não conseguiu extinguir. Profundamente marcante e transformador nesta viagem, na evasão da realidade rumo à plenitude do sonho, é a mareação do mesmo curso dos viajantes antepassados que lançaram-se ao mar e abriram mundos em África, nas Américas, no Extremo Oriente e até ao sol nascente, contudo uma viagem de redescoberta. É um outro olhar, alargado, no qual o transpor, o ir além, é resistência, insurreição até, perante uma tradição de invisibilidades e inaudibilidades.

Esta vivência conflui com uma existência ocidental e urbana, no hemisfério cultural do velho continente, repartida entre Lisboa e Paris, e estendida a outras metrópoles, observadora consciente do dinamismo expansivo do mundo moderno – recorda-se, a propósito, ainda que em domínio artístico afastado das artes plásticas, que, pelas mesmas alturas do manifesto de José de Guimarães, Jacques Tati apresentava o paradoxo da Vida Moderna –, a informação, a comunicação, a circulação, a compressão do espaço e a aceleração do tempo; enfim, a hiper-realidade e o avanço das complexidades de um mundo global contemporâneo que parece, por vezes, não olhar para trás.

Nestes caminhos de andadeiro permanente, é indelével ainda um outro rasto de pegada cedo fixado por Guimarães. As jornadas arqueológicas aos campos de pesquisa, às estantes da biblioteca ou ao acervo da sociedade local, o desenterrar cuidado de achados na terra, nas páginas e nas vitrines, a recolha minunciosa de de vestígios que são pistas, encontrados nos objectos, nas palavras, nas imagens, são acompanhadas pela ancestralidade de uma paisagem natural de onde traz a memória de inscrições, de signos e sinais, que, pacientes e impassíveis, ecoam vozes e tangem segredos.

Moldada pela vida, de uma penada só, a viagem de José de Guimarães faz dialogar e contrapõe a distância da História, a que partiu de Guimarães rumo ao mundo e que, por isso, pode ser outra a que se assemelhe, e a proximidade do milieu. Ou desvia a História, desfaz-lhe a grandeza canónica da longue-durée, rumo aos pedaços que dela recolhe, as histórias e estórias do milieu.

É a de um escavador. É o infiltrar-se nas brechas, o olhar através do véu, o alcançar o fundo do trivial, do vernacular, do folclórico, do fabulizado, do supersticioso, do monumental, do religioso. As que enredam memórias e tecem comunidades. É o embrenhar-se nas culturas conforme se lhe apresentam, com que convive e o afectam, as mais próximas e as mais remotas, as de hoje e as de ontem. É o mergulhar na experiência das sensações e no imaginário dos mistérios, na materialidade de cada um dos objectos e na imaterialidade de cada uma das relações, no íntimo e no colectivo, movido pela necessidade da interrogação do cientista cultural que examina cada fragmento espacial e temporal do mundo, pela curiosidade do explorador etnográfico em entender as escalas de valores e ideiais, de hábitos e comportamentos, de artes e tecnologias, de mitologias e rituais.

E é a de um peneirador. É o sacudir os torrões, o esmerilhar os grãos, o olhar através do espectro das multiplicidades e reter na malha uma ordem natural e imanente, aquela mais subterrânea por entre a diferença, quase incognoscível, porém iniludível. A que desemaranha e modela uma plasticidade cultural enquanto essência do ser-humano. É uma intenção sustentada em proposições ontológicas, num existencialismo pristino que antecede, numa ideia de uma universalidade que sintetiza a existência humana. É uma acção vertical, que ascende e converge no original e infinito. Ou que descende, que formula um depósito e sedimento, o rizoma clástico do qual, sem hierarquia e em igualdade, enfim desponta a diversidade combinatória das fragmentações culturais.

 

des-cobrir e comunicar

Este é um olhar que não recua, portanto. É o que abre. É a viagem espiritual em que redescobrir é des-cobrir. É, eminentemente, um olhar que parte dos mundos exteriores para chegar aos universos interiores. O ir além de José de Guimarães é a sua ausência perante a presença do outro. É a interrogação da vida fora de si, que sai da vivência do eu individual, e vira-se para uma ideia existencial do eu global, que necessariamente vira-se para si. É a viagem auto-reflexiva da transformação pessoal, da metamorfose, e que, indefectível, implica e reflecte-se em quem vai, porque passar é sofrer um processo, é mudar de condição, como assinala Lévi-Strauss[6]:

“Tout en se voulant humain, l’éthnographe cherche à connaître et à juger l’homme d’un point de vue suffisamment élevé et éloigné pour l’abstraire des contingences particulières à telle société ou telle civilisation. (…) il acquiert une sorte de déracinement chronique: plus jamais il il ne se sentira chez lui nulle part, il restrera psychologiquement mutilé. (…) l’ethnographie est une des rares vocations authentiques. On peut la découvrir en soi, même sans qu’on vous l’ait enseignée.”

Esta arqueologia cultural absorve a energia mágica das designadas arte tribais e do seu destino ritualista e existencialista – depois de Gauguin, e de José de Guimarães, que o homenageia: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?” –, e a carga alegórica de aplicações artísticas em utensílios quotidianos que, por metáfora e analogia, comunicam mensagens. É uma hermenêutica do poder místico destes símbolos e signos semiópticos exercido pela eficácia com que activam a sensorialidade e o inconsciente, formas plásticas altamente sofisticadas na síntese de ideias, na transmissão de significados radicais, que entreabre a empatia com o outro, e forja uma ideia de transculturalidade, uma ideia diogenesiana de ser-se do mundo. Pois toda a criatura humana nasce e morre, semeia e colhe, cria e mata, reproduz-se e deseja, sofre e celebra, suplica e adora, pensa e imagina, expressa-se e comunica, e o que mais seja, seja o que for que é ser humano e o ser-humano.

Ao mesmo tempo, este encantamento interrogativo e contemplativo da ligação entre o espiritual e o material, entre o divino e o mundano, gera o coleccionador de arte tribal. Todavia, o coleccionismo de José de Guimarães é de estirpe diferente dos interesses ecléticos das sociedades europeias no séc. XIX pelo paraíso perdido como purga da culpa pela voragem dos ideais da vida moderna, ou dos interesses primitivistas das vanguardas artísticas do séc. XX na busca por formas visuais em civilizações “menos sofisticadas”, e que não deixam de vincar a distância antipodal entre ambas, mesmo que inconsciente ou involuntáriamente. Pelo contrário, o coleccionismo de José de Guimarães preserva a diversidade sem exaltar a diferença, não rasura dicotomias mas declina uma retórica maniqueísta de estéreotipos polares e estigmatizadores, de conflitos entre o “central” e o “periférico”, o “civilizado” e o “primitivo”, o “avançado” e o “atrasado”, o “insigne” e o “prosaico”, o “presente” e o “ausente”. Tanto mais que esta colecção de objectos etnológicos desloca-se por entre as possibilidades interpretativas da arte contemporânea.

É nesta arqueologia cultural que o artista colhe e cria o que lhe é mais importante: um festim da forma. Surgem os Alfabetos de símbolos, conjuntos de formas específicas de estilo diferenciado, emancipados da heterogeneidade das iconografias e arquétipos culturais de que emergem. São grafismos elementares e autónomos, aproximações a partes do corpo humano, a animais, a formas da natureza, a objectos, a formas geométricas, com a sua magia própria, também eles feiticeiros e selvagens, que provêem também do oculto, do intemporal. São a forma antecedente do significado, a forma como significante, fragmentos ideográficos de um sistema protolinguístico, com a força pragmática de expressar uma ideia dispensando a síntaxe, que se concentra na instantaneidade da capacidade comunicativa mais do que nas possibilidades e ambiguidades semânticas. São os Alfabetos, que, acima de tudo e por fim, desvendam o segredo. São o código decifrador da linguística não-verbal, o poder mudo do símbolo cósmico, que outorga o entendimento e comunicação com o desconhecido, que é longínquo e ancestral na terra ou etéreo e insondável no céu. A viagem de José de Guimarães é a da contínua descoberta desta comunicação.

 

um espaço dentro da linha

A aplicação das formas ideográficas dos Alfabetos, que se desdobram e geram outras mais, umas dentro das outras e outras encadeadas numas, torna-se ela-mesma ritual na feitura da obra que se entreliga numa cadeia de ciclos sucessivos ao sabor da vida em viagem, dos temas e motivos conforme surgem, transferidas para inúmeros suportes da pintura e da gravura.

Nesta transferência, José de Guimarães avulta a forma ideográfica, eleva-a de tal modo que a torna, cada uma delas, em cada uma das suas aplicações a que infinitamente se adapta, um ente único cuja singularidade é equivalente à sua indeterminação. E dá à obra de arte o encanto da voz que canta e seduz, que desvia o viajante, no ir que não regressa, no ir que transforma.

A génese é primitivista, procede do fascínio pelo repertório imagético e temático tribal. São formas informais e excêntricas, reminescências cubistas de silhuetas perfiladas e despojadas de relevo, desenhadas no impulso e fulgor do gesto intuitivo, com afinidades ao sintetismo e ao naif  na simplificação do traço e da cor, intumescidas e enfunadas, umas azedas e brutas e outras joviais e pueris, delimitadas pelo traço sobre o contorno, pelas cores saturadas e possantes – as das tradições minhotas, Guimarães ainda; que se misturam com as cores de outras regiões do mundo, ou nelas encontram a sua irmã –, aplicadas arbitrariamente sem corresponder ao real, e que as solificam, as graduam em matizes suaves, as pontilham, ou as deixam esvaziadas, pujantes na sua força expressiva, crua e emocional, sem abandonar, nem deixar de comunicar, a origem de que nascem.

Estas formas são distribuídas no plano bidimensional em organizações compactas e exuberantes, plenas de ritmos e movimentos na alegria da forma e da cor, que acentuam a fragmentação e a imprescindibilidade de cada elemento no todo da composição. Engatam-se numa trama de encontros e cumplicidades que se assenhora do fundo, num enredo de sobreposições e adjacências (seriam collages, não fora a ausência de materiais pré-existentes; mas, não serão os Alfabetos recursos pré-existentes à pintura, que José de Guimarães manipula?…). Remetendo tenuamente para a influência cubista, estas composições desestruturam as relações e o nexo hierárquico das escalas e proporções que esclareçam alguma ilusão de perspectiva e da profundidade, independente de referência mimética da realidade. São representações de um mundo interior – “a imagem da introspecção, jamais a introspecção da imagem”[7] –, celebrações dos instintos e da sensações mais primárias, campos visuais surreais e emotivos, ambientes oníricos e expressionistas, que, na força fragmentada, no seu reconhecimento directo, sublinham a força de comunicação da pop, da obra de arte que fala.

Estes confrontos e encontros são notáveis celebrações de uma duplicidade que mestiça artes e culturas, em festa e voz uníssona. Não representa nenhuma delas, e tão pouco as re-presenta; dir-se-á, “neo-presenta-as”. José de Guimarães magnificamente amalgama uma multiplicidade de fragmentos e referência artísticas, e faz eclodir um novo “novo” na tensão entre a consciência do real e o impulso do inconsciente, do sonho e da imaginação. Este processo traz a propósito as cadeias de operações – interrogação, análise, avaliação, eliminação, acumulação, deformação, suplementação, síntese – associadas aos estudos neuro-cognitivos da criatividade, apontadas, entre outros, por Sternberg, Lubart e Goodman[8] [9]; e que Goodman resume ao referir-se à construção criativa de mundos interiores[10]:

“Much by no means all world-making consists of taking apart and putting together, often conjointly”.

Tão afectas a duplicidades, a des-cobrir a outra face, e às ambiguidades de um espaço interior, imaginado entre faces, é curioso que a forma e a composição na pintura e trabalho gráfico de José de Guimarães dêem a ver uma face, e dêem-se a ver em uma face. Mantendo as estratégias compositivas e cromáticas, a escultura de José de Guimarães dá outras faces à forma ideográfica, numa escala íntima e humana, em madeira manuseada ou no seu papel artesanado, e numa escala pública e colossal, e, até mesmo, em antítese à massa da matéria escultórica, abre asas e voa pelos céus levada no vento. Privilegiando a esbelteza, a escultura com-funde-se na pintura, dando a ver-se em duas faces dominantes. Na subtileza da espessura, dão a ver o diferente e o comum, tanto a oposição na simetria da forma como a aliança na unidade da cor.

Dir-se-ia que, através das linhas do espaço e do tempo, José de Guimarães anda sobre a linha, em habilidade no arame tal como os (seus) equilibristas, e que, desembaraçando-lhe os filamentos, a sua arte abre um espaço dentro da linha. Será um terceiro espaço, entre dois domínios, em constante tensão e transmutação, um buraco na agulha que alarga o olhar, que desorganiza o escorrer da História, a interrompe com a sinuosidade de um by-pass, tão virtual quão real, atento ao mundo global contemporâneo, este que, por sua vez, descende de outros mundos globalizados. Um mundo que é, e sempre foi, do eu e do outro, ou, no fundo, de nenhum. Que permite pensar este mundo de um modo pós-colonial, indo ao encontro dos novos processos de construção de identidade do colonizador e do colonizado que Homi K. Bhabba propõe como um espaço-tempo in-between, uma “anomalia” porosa da fronteira como dispositivo de convivialidade, de negociação, de contaminação, de hibridação[11].

Este espaço dentro da linha é o que é aberto pela arte que faz sonhar e que perturba, que não discursa nem narra, mas comunica através da força simbólica da emoção expressiva, a que José de Guimarães manifestou em 1968, e que faz lembrar a sua tese recorrentemente afirmada: “se a arte contemporânea não serve para curar o mundo, não serve para nada”.

Ricardo Escarduça

 

[1] “Arte Perturbadora! Manifesto aos pintores inconformistas”, José de Guimarães; excertos e referências; reprodução consultada em Le Nomadisme Tranculturel, Pierre Restany; Collection Les Irréguliers, Éditions De la Diférence, Paris, 2006.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] “Viajar! Perder países!”, Poesias; Fernando Pessoa; Ática, Lisboa, 1942 (1995).

[5] Dicionário da Língua Portuguesa; Aldina C.F. Rocha da Vaza e Emília Maria M. Amor; Texto Editora, Amadora, 2018.

[6] Tristes Tropiques; Claude Lévi-Strauss; Terre Humaine – Poche, Paris, 1984 (2015).

[7] “Arte Perturbadora! Manifesto aos pintores inconformistas”, José de Guimarães; excertos e referências; reprodução consultada em Le Nomadisme Tranculturel, Pierre Restany; Collection Les Irréguliers, Éditions De la Diférence, Paris, 2006.

[8] The Concept of Creativity: Prospects and Paradigms; Robert J. Sternberg, e Todd I. Lubart; Handbook of Creativity (ed. Robert J. Sternberg); Cambridge University Press; Cambridge, 2009.

[9] Words, Works, Worlds; Nelson Goodman; Erkenntnis 9-1, 1975.

[10] Ibid.

[11] The Location of Culture; Homi K. Bhabba; Routledge Classics – Taylor and Francis Group, London, 1994 (2004).

Dioramas

  • José de Guimarães
  • 27 Novembro 2020 - 9 Janeiro 2021
  • Instalação
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição
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