Sobre a escultura construída para a Ermida de Belém: O espaço percorrido e apropriado

Há uns anos atrás, elaborei uma breve nota sobre uma obra escultórica, muito singular tanto no trabalho de António Bolota como na escultura contemporânea, que aqui transcrevo:
– Em 2008, o edifício conhecido na cena artística de Lisboa por “Avenida 211” apresentou uma exposição colectiva de artistas aí residentes. A exposição ocupava o quarto piso na sua totalidade. Por entre as várias peças que localizavam cada sala, individualizando cada um dos autores, uma outra obra percorria todas as divisões do espaço, intersectando-o, trespassando-o, mas conferindo-lhe uma unidade que, não se sobrepondo à arquitectura nativa, a instituía como um outro espaço de exposição que integrava uma construção escultórica. Essa obra, de António Bolota, é um dos momentos mais desafiantes da escultura contemporânea. O tecto onde foi instalada transformou-se numa sequência de galerias que reposicionou o olhar e a geografia orgânica do corpo de quem a observou.

A escultura sem título que Bolota concebeu para o espaço da Ermida de Belém recupera alguns dos tópicos que anteriormente refiro, tais como a intersecção do espaço, o reposicionamento do olhar do espectador, uma certa paridade com a arquitectura nativa, ou seja, pré-existente, e um percurso. Na folha de sala desta exposição, o autor coloca o seu nome, a designação da obra (sem título), a data desta e um pequeno texto descritivo onde enumera todos os materiais de diferentes proveniências envolvidos na construção dos elos prismáticos que constituem a escultura, bem como de vários elementos pertencentes ao espaço de exposição, como por exemplo, entre os mais visíveis enquanto volumes tridimensionais, a “porta e janela de madeira com ferragens em ferro e puxadores de latão oxidado, escada de madeira pintada e projectores de iluminação.” Estamos neste ponto perante uma questão que o artista nos propõe, a qual joga também com a linguagem e significação dos termos usados para definir tecnicamente uma obra de arte, num duplo movimento de instalação/intersecção no espaço e de apropriação desse mesmo espaço agregado pela assunção do vocabulário dos materiais. A questão que António Bolota nos coloca ultrapassa o nível da percepção, física e visual, residindo na interpretação da obra de arte enquanto totalidade que reifica o acto escultórico no espaço e no tempo. Naquele espaço que é transformado, distendido pela diagonal dos elos prismáticos revestidos a estuque veneziano (material de toque macio, natural, utilizado nos interiores de uma casa habitável) e pela temporalidade histórica daquele lugar, ocorre uma acção que se revela como um pensamento e uma reflexão sobre a história da representação que não separa o objecto manufacturado da única possibilidade de lhe atribuir um contexto, de lhe outorgar uma condição, por vezes contraditória, na unidade dos artefactos construídos, independentemente da cronologia que os agrega.
Recupero aqui uma outra questão, posta por José Marmeleira (1) num texto publicado na revista Contemporânea sobre a exposição do artista na Galeria Quadrum, intitulada Assentamento: “Nas exposições de arte contemporânea, há uma pergunta que se escuta, sem que ninguém a enuncie: onde está a escultura? Antes que o desaparecimento (que decorre de uma condição de invisibilidade ontológica) seja declarado, surgirão explicações, respostas ou teses provisórias. Estará algures entre a instalação e os ambientes, entre os objetos produzidos ou apropriados e o espaço da arquitectura.”
Esta obra é um momento de reflexão sobre a natureza da escultura que não fica refém das condições do espaço porque as integra enquanto pensamento da obra a realizar. A Ermida terá sido sempre assim, e assim será na transitoriedade deste projecto que
produz uma suspensão temporal. Daqui a nada a memória irá ocupar-nos, num percurso que apropriou aquele espaço complexo, diagonal, histórico, geométrico e tão próximo de nós como uma casa, estucada, caiada e pontuada por cantarias e portadas.
Sem título, um lugar como escultura.

João Silvério

(1) https://contemporanea.pt/edicoes/03-04-2019/antonio-bolota- assentamento?fbclid=IwAR3m7snczNB95fsUpvx34I2vyqoijjZVhrW4DUWWx7hDnIyiQ9ZXVGKIOsk

 

Aço, gesso cartonado, fita de papel, bites de esquinas,
estuque sintético, lã de rocha, estuque veneziano, azulejos,
revestimento de paredes, pedra de lioz, pedra vermelha de
negrais, lajedo de pedra vidraço, porta e janela de madeira
com ferragens em ferro e puxadores de latão oxidado,
escada de madeira pintada e projectores de iluminação.

António Bolota

S/ título, 2020

  • António Bolota
  • 23 Janeiro 2020 - 7 Março 2020
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