Dupla face: o desenho parasitário

No trabalho de Rita Ferreira a pintura e o desenho constituem-se como um modo de fazer emergir dos suportes que regularmente utiliza, a tela e o papel, signos ou formas que lhe são próximas e outros elementos, por vezes abstractos, que parecem ser anteriores à linguagem da significação. Esses elementos vêem construído um vocabulário próprio que singulariza o trabalho da artista que não persegue um processo estilístico ou formal. Antes pelo contrário, esses elementos são a estrutura de uma acção corporal que em diversas obras expressa esse movimento do corpo que desenha, de um modo concentrado numa escala mais reduzida ou em planos de grande dimensão sobre papel. Os signos, ou as figuras, constroem a composição numa acção compulsiva em que a serialidade assume uma determinação operativa do espaço e do lugar do corpo que nele se inscreve. A obra “Parasita” é um desenho concebido especificamente para o espaço da Ermida de Belém na esteira das suas obras mais recentes, actualmente em exposição na Bienal Ano Zero, em Coimbra. Este desenho, a óleo sobre papel, concentra duas características do trabalho de Rita Ferreira, a serialidade e a acumulação, propondo-nos uma imagem expressionista, vincada pelo contorno negro das formas que se expande no fundo da folha afirmando o gesto rápido do desenho numa construção modelada pelos gomos, ou folhas do que parece ser uma planta.

Contudo, a pintura de Rita Ferreira é sempre um acto transformador, e nesta obra este procedimento é visível ao nível da escala e da côr. O desenho toma como referente uma pequena planta oriunda da África do Sul e denominada Hyobanche Sanguinea, uma espécie resistente, parasitária e de côr sanguínea, ou seja, de tonalidade avermelhada.

Deste modo, o parasitismo que esta obra manifesta reside na sua situação espacial, suspensa sob o tecto da Ermida e simultaneamente erguendo-se perante o espectador. Numa acepção literal à leitura do título da obra, este organismo visual alimenta-se do trânsito do espectador no espaço da exposição e confronta-o com a escala e a transmutação cromática numa tonalidade verde que em nada remete para a planta que lhe serviu de modelo. Acresce ainda o facto de estarmos perante dois desenhos, um que nos enfrenta e um outro no verso, como se houvesse uma contaminação entre as duas faces. Ou como se se tratasse de uma folha de um livro, entre uma página e a que lhe sucede.

Rita Ferreira desenha num procedimento de desafio e compreensão do espaço expositivo e tem em atenção a história do lugar, a Ermida, a localização do altar e o lugar da contemplação. Ao invés, esse espaço é-nos concedido para transitar entre as duas faces da obra, entre dois desenhos inseparáveis, num jogo com memória visual, perante uma pintuta que nos ultrapassa constantemente, como um organismo porventura parasitário e perene, mas acima de tudo como um intruso transitório sem frente nem verso que denota o gesto que se multiplica sem ceder à repetição.

João Silvério

Parasita

  • Rita Ferreira
  • 7 Dezembro 2019 - 11 Janeiro 2020
  • Pintura em óleo sobre papel. 360cm x 250cm
  • Curadoria:João Silvério

  

Projecto Travessa da Ermida © 2020. Todos os direitos reservados