There’s nothing wrong with going nowhere baby | But we should be going nowhere fast

Quando eu era criança gostava de comer fósforos queimados. Hoje em dia gosto do cheiro deles e ainda me lembro do terrível sabor metálico e carbonizado que me agradava. Pensava eu, então, que seria criança durante muito tempo, e talvez na verdade ainda o seja. Mas passou a juventude tal como passa uma canção, tal como evapora um perfume, tal como algo que arde até se apagar. Muitas das melhores sensações na vida são intensas e fugazes, elas vão Nowhere Fast.

A exposição que aqui apresento inscreve-se no recente movimento da Scent Art, que tem vindo a crescer e a desenvolver-se com o apoio dos coletivos Scent Art Net (Suíça) e Institute For Art and Olfaction (EUA). Sob a égide destes dois institutos, um grupo disperso e heterogéneo de artistas, pensadores, investigadores e curadores tem-se reunido com um objetivo em comum: a exploração da arte através do olfato e o cruzamento deste com outras expressões sejam elas literárias, sonoras ou visuais. Em Portugal, em 2017 apresentei a exposição Pôr o Corpo a Pensar, na Casa da Cerca Centro de Arte Contemporânea, curadoria que foi depois apresentada em Los Angeles com a inclusão de nove artistas olfativos (Anatole Lebreton, Antoine Lie, Antonio Alessandria, Antonio Gardoni, Fulvio Misitano, Lucas Gracia, Sven Pritzkoleit, Oliver Valverde e Pissara Umavijani) e a performer Ondina Pires, a partir da obra filosófica de Maria João Ceitil. Esta exposição surgiu depois da minha primeira curadoria em Scent Art, apresentada na Galeria Justino Alves, com o pintor Gabriel Garcia e uma seleção de composições olfativas de autor, assim como do project room Per Fummum, com Teresa Golçalves Lobo.

De acordo com a definição de Ashraf Osman, diretor do coletivo Scent Art Net em Zurique, “a Scent Art, ou arte olfativa “é um segmento da arte contemporânea no qual o cheiro desempenha um papel essencial. A Scent Art remonta aos inícios da arte moderna no século XX. Ela tem demonstrado, através desse século, uma surpreendente resiliência, graças à sua versatilidade de se adaptar aos ventos cambiantes dos movimentos da arte moderna.”[1] A Scent Art existe frequentemente na simbiose de sentidos, desde o olfato à visão, à audição e ao tato. É um movimento jovem e informal, avesso a formas rígidas e em constante redefinição pelo seu caráter evolutivo. Nowhere Fast é uma exposição que demonstra este sentido, congregando as linguagens da fragrância, do desenho e da escultura, com a presença também do vídeo. Tendo origem numa música, paradoxalmente é uma exposição sem som.

O ponto de partida de Nowhere Fast é a música com o mesmo nome que se tornou um ícone da pop-rock dos anos 80, após ter figurado na banda sonora do filme Streets of Fire, de 1984, realizado por Walter Hill. A música, interpretada pela banda Fire, Inc com a vocalista Laurie Sargent, e composta por Jim Steinman, foi mais tarde adaptada pela banda Meat Loaf no mesmo ano e desde então ganhou status de referência da cultura musical, tendo ofuscado grandemente o filme e até mesmo o nome da banda que a eternizou originalmente.

Nowhere Fast é um hino ao rock, num shot de energia rítmica, que convoca o corpo para a dança. É também uma música datada, que remete imediatamente ao passado recente e a uma década específica. Faz parte do imaginário coletivo. Toda a referência a um período da música e a própria letra remetem ao que é fugaz. À velocidade e ao não-destino. A uma experiência sem objetivo. “There’s nothing wrong with going nowhere baby, but we should be going nowhere fast.” Há uma alusão constante a uma busca quase desesperada pela emoção, pelo prazer, pela sensação que não leva a um final. É essa ideia que a exposição Nowhere Fast tenta explorar, fazendo alusão a uma música como começo de tudo, mas terminando sem a sua invocação concreta.

Nowhere Fast é uma expressão de busca que no youtube nos entrega um clip com uma colagem de imagens do filme Streets of Fire. Estas imagens repetem cenas de motards, de fogo, de fumo, de um concerto rock de alta energia, de cigarros, de blusões de cabedal, de um palco e de uma ideia estereotipada de um estilo de vida. A cor vermelha como sinal de perigo, de velocidade, de paixão e combustão. Quase que sentimos o cheiro do fumo e de borracha queimada.

Uma composição olfativa tem vários elementos em comum com uma composição musical. Um deles é a sua duração no tempo e a sua perceção no espaço. São criações que não se “agarram” na sua manifestação e possuem um período limitado de apreensão por parte do espetador. Se este não “agarrar” a música ou o perfume enquanto eles se manifestam, pode não ter uma segunda oportunidade. Assim, tanto a música como o perfume vão rapidamente a lado nenhum, deixando uma memória e um conjunto de emoções, significados e representações. Eles vão “Nowhere Fast”.

Nesta exposição da Ermida, reúno o trabalho olfativo de Sven Pritzkoleit com o desenho de Teresa Gonçalves Lobo e a escultura de Thomas Mendonça. O perfume criado por Sven sob minha direção criativa é evocativo do cheiro de fósforos queimados como alusão ao meu passado, mas também ao cheiro de uma energia que dura segundos apenas. É uma obra de chamas, de fumo, de carvão, de corpos quentes em movimento e de blusões de cabedal. Mais do que um simples perfume, esta peça foi criada de acordo com a metodologia e conceito de uma obra que não se destina a adornar um corpo, embora esta dimensão seja também possível. O corpo é invocado mesmo que o líquido não se aplique sobre a pele. A fragrância, perturbadora e intensa na sua dimensão sulfurosa e carnal, ilustra tanto as imagens do clip como as sensações que a música provoca em mim, assim como a referência ao tempo que passa. É uma versão olfativa e subjetiva da euforia do rock e pelo medium em si, uma alusão ao caráter fugaz de uma sensação, da vida. Um cheiro permanece durante um período limitado de tempo e esvanece-se sem deixar rastro. O perfume é em si uma obra efémera, como o lume. Até mesmo uma chama deixa atrás de si o vestígio, o carvão, a cinza…

O carvão é a matéria a partir da qual Teresa Gonçalves Lobo risca e quase fere o papel, num processo enérgico que é muito orgânico e que se aproxima da action painting. De facto, cada desenho é um registo de uma performance íntima e secreta, que se deixa adivinhar com a folha como palco, através das marcas assumidas das suas mãos, das suas pernas, dos seus braços. Do corpo todo explodindo de tensão. De um corpo que também ele desaparecerá. É uma linguagem do desaparecimento, esta que eu proponho. E da marca da presença. É um modo de sugerir a expressão já gasta carpe diem… Nos desenhos de Teresa, a energia do corpo está testemunhada no papel, e podemos intuir a mesma nos fragmentos de força que são deixados no lugar do desenho que parece crepitar. O carvão, esse, é simbólico, resultante de uma combustão, mas é também um material que a artista usa com frequência. Aliada aos traços pretos daquilo que ardeu, está a energia pulsante do vermelho, cor que Teresa usa com parcimónia nas suas obras, mas que tem um significado e uma vibração de extrema intensidade quando o faz. Vida e morte num traço, sangue e fogo. Elementos passageiros mas marcantes. Teresa Gonçalves Lobo usa o vermelho como sinal de calor, paixão, intensidade e até raiva. Mas, essencialmente, de vida. Energia.

A escultura de Thomas Mendonça, ela própria feita com cinzas, sugere também algo vivo e em movimento, uma forma orgânica, a partir da qual o visitante pode ter a experiência do cheiro que é o centro do projeto. Propõe-se aqui uma relação com a escultura que não é já aquela que é visual e por definição, distante. O visitante é obrigado e deixar-se literalmente penetrar pelas moléculas que a peça vai evaporando ao longo do tempo. É uma relação de contacto, de proximidade e de interação direta com a escultura. Thomas sugere frequentemente nas suas peças de cerâmica a presença indeterminada de algo pulsante de vida, com uma energia peculiar que ora nos intimida ora nos atrai. É isso que ele faz nesta peça que está entre a vida e a sua destruição, o movimento e as cinzas. O desejo e a finitude.

Vida e morte, fogo e cinzas, energia e vazio e a transitoriedade destes elementos em velocidade são eixos em torno dos quais gira Nowhere Fast.

Miguel Matos

[1]                Ashraf Osman. 2018. Scent Art Net. [ONLINE] Available at: https://scentart.net/scentart/. [Accessed 8 February 2018].

Nowhere Fast

  • Sven Pritzkoleit, Teresa Gonçalves Lobo, Thomas Mendonça
  • 5 Maio 2018 - 20 Junho 2018
  • Obra olfactiva, desenho e escultura
  • Curadoria:Miguel Matos

  

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