Elegendo a figura humana como objecto de trabalho, a pintura ocupa posição axial na obra de Camilo Alves até um momento em que, sem abandonar este domínio, a colagem sobre fotografia infiltra-se evolutivamente e toma posição igualmente dominante. Em ambos os casos, discerne-se uma subversão do estatuto e da tradição da imagem e, em particular, do retrato enquanto gesto cultural, se considerados este estatuto e esta tradição como representações idealistas ou realistas do mundo.

Segundo uma declarada intencionalidade provocatória e irónica dirigida às suas temáticas e aos seus discursos historicamente instituídos, Camilo Alves destrói o retrato. Corrompe-o com puerilidade, contrassenso, sarcasmo e insolência. Consumado em composições visuais estáticas no plano bidimensional, este gesto interventivo cria ficções, necessariamente rompendo a representação da realidade aparente.

Em óleo sobre tela, continuando uma prática habitual no seu trabalho, documenta uma encenação que sucede e é determinada pela respectiva dramaturgia, na qual o atelier é palco de um teatro no qual a personagem principal actua através do corpo segundo atitudes e gestos, e enverga um figurino e manipula adereços, os quais, integrados na imagem, traduzem a narrativa. Em colagem sobre fotografia, apropria-se e elimina o retrato pré-existente, no caso o retrato victoriano, ele próprio também caracterizado por uma essência teatral, que é manipulada através do recorte, e entrelaçada em contraste epocal com a iconografia de stickers da cultura popular e com a palavra sintetizada do punch-line, dissolvendo o complexo estratificado dos sentidos e significados anteriores destes fragmentos, e fundindo uma nova imagem que se abre na imaginação. Em ambos os casos, ainda que suspensos na imagem, insinuam-se os dissensos mordazes próprios da tradição dramatúrgica e literária, e da ficção enquanto ferramenta e recurso de crítica social e cultural. Em ambos os casos, inscritos na imagem, denunciam-se os traços não inéditos da dessacralização da obra de arte na criação da obra de arte. A fantasia e a ilusão tornam-se dispositivo discursivo, uma forma de comunicação em que a linguagem é aberta no seu sentido lato, e que convoca uma hermenêutica do que nomeiam e dizem. No caso de Camilo Alves, a pungência e reconhecimento directo da sua linguística visual adere às estratégias e à força de comunicação da Pop Art.

Paradoxalmente, ainda que encorpada pela imagem enquanto representação do irreal, a temática do enredo que é nela fixado inscreve-se numa realidade que é, de facto, contemporânea, além de herdeira de dinâmicas já manifestas em outros tempos.

Em «Mau Maria», estão em combate a exaltação da insubordinação enquanto condição da revolução e a submissão à admoestação enquanto resistência à renovação. Geralmente, a interjeição proverbial e idiomática que é tomada como título da exposição traduz descontentamento, o qual, enfatizado pela sua presença visual na exposição enquanto personagem principal da ficção, admite-se ser dirigido à mulher, perante a sua relação com os, e reacção aos, bons costumes de uma determinada moral. Enquanto um recurso mais à ironia e ao humor, a provocação linguística entre o título da exposição e a documentação da ficção encenada na pintura e nas colagens torna-se afinal a falsa aparência de uma real exaltação.

Ricardo Escarduça

Mau Maria

  • Camilo Alves
  • 9 Abril 2021 - 15 Maio 2021
  • Pintura, Fotografia e Colagem
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição

  

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