Les Voisins

A intervenção Les Voisinsde Ricardo Jacinto, apresentada na Culturgest do Porto em 2008 e na Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Lisboa, em 2009, foi inicialmente pensada e projectada em 2006 para um palacete urbano oitocentista em Paris, a antiga casa de Calouste Sarkis Gulbenkian que alberga hoje o Centro Cultural Gulbenkian. Integrava então um projecto de exposições programadas para aquele espaço – 51 avenue d’Iéna -, que recebera já as intervenções de Gabriela Albergaria e Leonor Antunes. O projecto pretendia

trabalhar esse lugar-contexto específico, histórico, de múltiplos usos e memórias, localizado numa arquitectura monumental, fortemente regulada por um programa arquitectónico que racionaliza e hierarquiza a distribuição dos espaços e a circulação entre estes.

Les Voisins inscreve-se num conjunto de práticas artísticas site-specificcuja noção de lugar, mais do que fenomenológica (a sua relação com as condições materiais do lugar, historicamente ligada ao minimalismo), deve ser entendida enquanto “lugar funcional” ou “discursivo” 1, gerador e potenciador de uma rede de relações temporais, espaciais e sociais. Nesse sentido, convive com a mobilidade (ou o nomadismo), a impermanência e a transitoriedade.

Ainda que Les Voisins incorpore coordenadas espaciais, e que estas surjam alteradas na Culturgest do Porto e na Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Lisboa, o seu deslocamento não interfere na estrutura discursiva nuclear da instalação, ampliando sim as suas possibilidades funcionais, relacionais e ficcionais. De realçar, no entanto, uma característica comum a estes três espaços públicos: são todos espaços urbanos, não museológicos e com vivências históricas marcantes.

Qualquer destes espaços arquitectónicos foi edificado tendo em conta uma funcionalidade específica e especializada que os define, originalmente, como lugares de sociabilização regulada: palacete privado para receber e encenar uma colecção de arte privada, agência bancária e casa forte e lugar de culto religioso2. São igualmente espaços de trocas, estejam estas associadas aos valores culturais e artísticos, aos económicos ou aos espirituais.

Les Voisins parte, na sua géne-se, de uma ideia de fractura. Uma fractura que, no palacete parisiense, era organizada espacialmente, remetendo-nos para um lugar de coabitações. Uma fractura gerada pela duplicação quase simétrica de circuitos diferenciados, internos à casa: um circuito público e um privado/doméstico, espaços de distintas socializações, distintos modos de habitar eme de habitar com… Para esta estrutura contentora, um espaço simbólico de valor, Ricardo Jacinto propôs simultaneamente um dentro e um fora. Projectou para a casa a partir de uma possível exterioridade ou alteridade: os vizinhos.

Vizinhos é um outrofamiliar ainda que estranho, próximo mas apartado por muros que deixam passar fragmentos de vivências (narrativas). Um outro que ganha corpo em sons eruptivos, descontí-nuos, desfasados, (in)desejáveis. Ainda que a condição primeira de vizinhança seja a partilha de um espaço comum, esse outro constitui-se em nós, sobretudo, como um acontecimento sonoro. Avizinhança apresenta-se assim como uma comunidade de ouvintes reunidos no lugar virtual dos sons e das sensações sem retorno, do aleatório, das associações livres. Mas servizinho é uma condição cambiante e reversiva: ser em si mesmo o vizinho de um outro… multiplicável.

O outro surge como o lugar central de toda a construção de Les Voisins, atravessando e adensando-se em cada um dos objectos e intervenções que constituem a instalação. Atravessa igualmente as condições de produção, apresentação e recepção da obra, declinando-se nas questões de autoria e colaboração artística, na exposição enquanto dispositivo relacional e na implicação do espectador enquanto observador participante.

Les Voisins propõe um conjunto de objectos escultóricos e sonoros, projectados para ocupar e activar um espaço arquitectónico, e uma performance que aconteceu num único momento da sua apresentação pública, a inauguração da exposição. Em Paris, o projecto colaborativo Cacto composto por  Ricardo Jacinto (violoncelo) e Nuno Torres (saxofone) dá corpo a este momento performativo. Na apresentação de Les Voisins no Porto, a performance inclui a colaboração de Nuno Morão e, em Lisboa, na Ermida, esta colaboração estende-se a Pedro Magalhães (espanta espíritos), Travassos (objectos), Shiori Usui (voz). Ainauguração é aqui um espaço de encontro com o público, ritualizado na figura da performance, um momento profundamente laboratorial, enunciando mais radicalmente a abertura do projecto à participação de uma rede alargada de autorias e colaborações, vividas sob o signo da criação e produção de acções e de sons.

Os objectos escultóricos e sonoros – medusa, projéctil, espanta espíritos,atacadorese, mais tarde, Muro e Escudos (na Culturgest do Porto) – são simultaneamente figuras de mediação com o espaço e figuras de mediação com o outro, colocando o espectador no lugar de uma acção. Os objectos  duplicam tanto o percurso narrativo do espaço, quanto o seu potencial cénico. São igualmente fragmentos de uma construção ficcional, organizada originalmente em torno da peça medusa e da metáfora fundadora do mito de Medusa: a interdição do olhar3. Medusa define um campo de relações entre um eu e o outro em tensão, relações perigosas, um lugar de impossibilidades. Mas é também uma metáfora da imagem e do seu poder, ou do poder mediador da imagem: do espelho e da representação enquanto duplo desactivado. Medusa está ausente na apresentação de Les Voisins na Ermida, não deixando de produzir, mesmo na sua ausência, sentido. Essa figura feminina do espanto (da máscara), do desencontro e do grito que é Medusa, é substituída pela voz feminina de Shiori Usui, cujo registo caminhará para o canto, numa segunda fase da performance, criador de um espaço de diálogo mais apaziguado e consonante, e por isso mesmo, instaurador de um campo de possibilidades.

Les Voisins engendra um território que vai de uma peça à outra, que investe cada um dos seus intervalos, incorpora o espaço que ocupa, determinando um lugar de relações onde o tempo linear é suspenso. Cada objecto-intervenção anuncia e medeia o seguinte, sem ordem preestabelecida, gerindo duplas expectativas (e diálogos): formais e ficcionais. Sem um princípio ou um fim, a instalação obriga a constantes idas e voltas entre cada objecto, sendo aqui o espaço, com os seus fluxos pré-regulados, indutor de um possível sentido narrativo. Les Voisins é um complexo jogo de pistas, um enigma activado pelo espectador. Dispositivo espacial, visual e sonoro, produz ficção porque se estrutura enquanto lugar- acontecimento, um contínuo presente accionado pelo espectador.

Retrospectivamente, podemos alargar esta leitura, encontrando um contínuo ficcional que percorre agora, não cada um dos objectos da instalação, mas cada uma das diferentes apresentações públicas de Les Voisins, contituindo-se no seu todo, nesta trilogia, como um corpo orgânico sujeito a diferentes estados dos humores humanos, em que o outro e a relação com o outro se declina em atmosferas de sedução e de tensão contida, de crispação, de explosão e confronto aberto e, finalmente, de encontro e consonância.

“Figuras de espanto” 4: medusa, projéctil, espanta espíritos, atacadores e ensaio. Exercício sobre uma primeira apresentação em Paris e alguns apontamentos sobre as apresentações no Porto e em Lisboa.

 

         Medusa. Nove câmaras de vigilância são colocadas ao longo de uma das colunas ornamentais de um pórtico de dupla colunata, localizada num espaço de entrada e de passagem ou acesso a outras áreas do edifício. Captam, em tempo real e ininterruptamente, essa zona de passagem, para onde as câmaras apontam. Captam igualmente o público no seu movimento de entrada e
atravessamento do espaço. Ainda que para o observador não seja completamente perceptível a captura da sua imagem pelas câmaras, a familiaridade com este sistema de vigilância, cada vez mais frequente em lugares públicos, cria naquele uma consciência redobrada da sua presença no espaço, um espaço controlado e vigiado, que exacerba a identidade funcional do visitante. Quem olha é aqui simultaneamente olhado.

         Projéctil. No grande hall central, perto de medusa e visível a partir desta, duas placas de vidro laminado e temperado estão encostadas a uma das paredes fenestradas. De grandes dimensões (238 x 300 cm e 230 x 107 cm), duplicam os muros como se de uma segunda pele se tratasse. Superfícies reflexivas, captam e espelham, num espaço de simultaneidade, da rua e da arquitectura (exterior e interior), o que lhes é próximo, reafirmando a sua condição de zona de contacto.

A maior das placas, estilhaçada pela força de um projéctil, guarda na sua superfície as marcas de uma acção: um impacto violento. Uma acção, um gesto que é corporalizado no objecto. Fragmentada, a superfície desta placa de vidro ganha valores de opacidade, matéria e textura. Embora o efeito, não calculado porque imprevisível, seja uma superfície de grande qualidade plástica, deixando passar a luz através dos muitos fragmentos, concêntricos ao ponto de impacto do projéctil, esta é também uma superfície cortante, à beira do colapso iminente. Após o impacto do projéctil, a placa de vidro inicia um prolongado movimento de estilhaçamento. Os seus inúmeros fragmentos movem-se, emitindo um som de estilhaço demorado que se vai esbatendo. Na sua superfície forma-se uma paisagem mineral instável, onde se vêm juntar os reflexos evanescentes de motivos arquitectónicos e elementos da rua, estabelecendo um diálogo com as imagens fragmentadas que as nove câmaras de medusaproduzem.

Disposto em volta das duas placas de vidro – o espelho intacto e o espelho fracturado -, um corrimão construído com tubos metálicos, habitualmente usados para a construção de andaimes, impede o público de se aproximar, reforçando assim quer o seu potencial de risco (a de uma proximidade perigosa), quer a leitura de projéctil enquanto peça escultórica. A distância que o corrimão impõe ao espectador cria, entre este e as placas de vidro, um espaço vazio regulado, porque intransponível e interdito.

         Projéctil acontece assim por entre repetidos ritos de passagem: do exterior para o interior, da superfície espelhada para a matéria-objecto, da luz para a paisagem, da unidade para o fragmento, de uma latência para o gesto, do silêncio para o som  (que será silêncio novamente). Mas é sempre ausência do corpo. O corpo é aqui o do performer, Ricardo Jacinto, que lança o objecto contundente, acção que antecede a apresentação pública da instalação. O corpo ausente é, aliás, um tema recorrente em toda a instalação, um corpo duplicado ou prolongado na imagem e no som, na escultura e nos objectos, pelos dispositivos tecnológicos. As peças chamam a si qualidades do orgânico, sejam elas relativas aos órgãos (o olho), sejam elas relativas ao organismo (movimento,instabilidade, mutabilidade). Este corpo ausente ressurge, encenado, nas máscaras (atacadores) e na performance(ensaio).

         Espanta espíritos. Suspenso sob o tecto abobadado, acompanhando a escadaria nobre no palacete parisiense, um objecto-escultura semelhante a um espanta espíritos de grandes dimensões propaga pelo edifício, ao toque das mãos de quem passa, um som denso e prolongado. Com cerca de quatro metros de altura, esta escultura performativa é composta por vinte e quatro tubos de alumínio e um batente de madeira que, agitado, produz, nas palavras de Ricardo Jacinto, “uma nuvem de tons cromáticos extremamente dissonantes, com um timbre semelhante a sinos”. Asua localização é central ao conjunto arquitectónico, permitindo que os sons preencham, de maneira quase simétrica, os espaços entre as diferentes intervenções. Objecto escultórico, oespantaespíritos é também um instrumento musical de percussão, semelhante a um sino tubular que o público pode identificar como tal. Com uma forma sedutora e generosa, esta é uma peça charneira no dispositivo relacional que a exposição funda com o público, sobretudo em Paris. Apela à sua participação, não contém interditos, é lúdica. A sua grande dimensão e os seus sons metálicos e dissonantes sugerem, no entanto, uma atmosfera carregada e saturada.

Relacionando-se formalmente com um objecto que nos é familiar, vindo directamente de uma referência à casa e à domesticidade, o espanta espíritos é um artefacto que mantém o exterior, no que este representa de perigoso conquanto invisível (efantasmagórico), lá fora. Mais tarde, em Lisboa, este objecto será activado por um dos performances que tem o rosto ocultado por uma das máscaras (atacadores), que pontua e marca assim as passagens entre diferentes momentos da performance musical,ritualizando a passagem do tempo. Ricardo Jacinto parte desta quase evidente familiaridade do objecto para gerar estranheza, problematizando a recepção da peça, duplicando-lhe os sentidos em direcções opostas e ambivalentes. A escala do objecto e a sua natureza híbrida, as suas referências a diferentes objectos identificáveis – lustre, espanta espíritos, instrumento musical – e, finalmente, a sua apresentação num contexto diferenciado do que lhes é habitual concorrem para a criação dessa sensação de estranheza. Na Ermida, espaço historicamente ligado ao culto católico, um culto do livro e da palavra, o espanta- espíritos é, por oposição, um objecto de crenças e rituais pagãos, um objecto de mediação com o mundo não visível, primitivo, plural.

         Medusa. Os cabos de alimentação das nove câmaras de vigilância de medusa, mise à nu, são incorporados na peça. Formam uma corrente, desenham no espaço negras que conduzem o olhar e convidam o corpo a uma deambulação. O fluxo dos cabos é um dispositivo queantecipa e age sobre o comportamento do utilizador do espaço. O cabo negro é aqui um elemento descodificador do percurso a seguir, assegurando a não interrupção da integridade formal da peça assim como do fluxo ficcional da instalação.

Os cabos percorrem um trajecto que é já, nos edifícios de Paris e do Porto, um espaço de passagem. Em Paris, investem uma escadaria nobre que dá acesso ao primeiro andar da casa, o caminho natural de muitos dos visitantes da Biblioteca do Centro cultural. No Porto, tomam o caminho para a cave, onde se encontra o cofre-forte, espaço fortemente obscurecido e labiríntico. Introduz assim uma disrupção, algo perturbadora, pela marcação inesperada de um trajecto, ora reconhecível e natural , ora proibido, criando no espectador a sensação de uma iminência, de algo que o aguarda num outro lugar da casa que não é imediatamente perceptí-vel ou descodificável.

Na outra extremidade dos cabos encontramos um monitor que mostra as imagens captadas por cada uma das nove câmaras que emitem, em simultâneo, em nove quadrículas que dividem o ecrã. No monitor surge uma nova imagem compósita de um espaço já percorrido, agora distorcido, em desagregação. Os motivos arquitectónicos, fragmentados e reconstruídos, formam uma nova paisagem que lembra um cenário de ruína, alimentando uma certa ambiguidade sobre o tempo real das imagens. A câmara é aqui um olho especializado. Conduz uma atenção continuada sobre os elementos arquitectónicos que são transportados e duplicados na imagem, que os subverte e recombina. Estamos sempre num outro lugar, seja ele o da imagem ou o do lugar físico onde essa imagem se dá a ver.

Este jogo de espelhos é literalmente reforçado e replicado na cave do edifício da Culturgest, através de um dispositivo espacial de origem. Na antiga casa-forte, envolvida por um corredor exterior, estão colocados espelhos a quarenta e cinco graus em cada uma das esquinas para efeitos de vigilância dessa área, outrora crítica, do edifício. Estes reflectem continuamente a totalidade do espaço, duplicando-o e criando, à imagem do labirinto, um efeito de desorientação espacial.

A câmara é também um olho subjectivo, dá visibilidade (consciência) à nossa passagem no espaço. Mas as imagens produzem sempre um duplo, são sempre a ausência do corpo. Produzem sempre uma falha: o espaço-tempo do sujeito filmado nunca é o mesmo que o do sujeito face às imagens. Existe um lapso de tempo inultrapassável entre a captação da imagem e a sua reprodução no monitor.

Inultrapassável é ainda o tempo da nossa deslocação no espaço, pelo que nos vemos sempre num outro. Passamos incessantemente de observadores (o sujeito da observação) a observados (o objecto de observação), de vigilantes a vigiados.

Junto a este monitor, encontra-se um segundo mais pequeno, cujo cabo segue um percurso diferente, incitando o espectador a percorrer um espaço assinalado, uma experiência deceptiva uma vez que este o conduzirá a uma porta para lá da qual não lhe é permitido passar. O espectador é assim colocado face a um interdito e a uma impossibilidade: a de progredir no espaço e a de satisfazer a sua curiosidade. Para lá da porta, o espaço é-lhe irremediavelmente desconhecido. De volta ao monitor mais pequeno, vemos uma imagem gráfica de perigo, fixa: um homem em fuga inclinado sob uma nuvem de fumo que a décima câmara capta a partir de um painel de segurança da casa. Algo acontece num outro espaço do edifício, um fora ao qual o observador não pode aceder e do qual não tem informação. Como um aviso, a sensação de perigo adensa-se, um estado de tensão que percorre Les Voisins e que, intencionalmente, não se resolve. Em Paris, ambos os monitores estão colocados verticalmente num armário metálico recuperado dos anos oitenta, um conjunto que lembra as “máquinas antropomórficas” (ou os corpos-máquinas) de Nam June Paik, permitindo a visualização simultânea dos diferentes registos das imagens, abrindo um campo de diálogo entre estas.

         Atacadores. Num espaço contíguo aos monitores de medusa, no primeiro andar do palacete (Paris) ou no cofre-forte da agência bancária (Porto), duas máscaras feitas com atacadores pretos (atacadores de sapatos) jazem numa vitrina. Pensadas originalmente enquanto objectos para uso dos dois performers no momento da realização da performance ensaio, as máscaras são aqui uma rede que oculta a cabeça e,

consequentemente, a identidade. Ricardo Jacinto tinha já conceptualizado esta vontade de ocultação (da identidade e do autor), ao propor para o convite da exposição em Paris uma intervenção sobre uma fotografia de Daniel Malhão, na qual vemos dois músicos (Ricardo Jacinto e Nuno Torres) dando um concerto no ambiente informal de um atelier. No convite, a cabeça dos músicos é recortada, ficando no seu lugar um vazio. O recorte das cabeças junta-se a um efeito de origem da própria fotografia, o seu tom esverdeado, que dificultava já a identificação dos músicos na imagem. Acriatividade artística afirma-se aqui como um lugar de autorias plurais, de colaboração, um lugar de trocas, num quadro que não é nem o de uma galeria de exposições ou museu, nem o de uma sala de espectáculos, mas o de um espaço informal onde as relações (dos autores entre eles e dos autores com os seus públicos) não são reguladas e normalizadas. Curiosamente, o corte das cabeças confere ao convite a aparência de uma máscara, que não seria mais para uso dos performers mas, talvez, um convite ao seu uso pelo espectador. Como se a ocultação do autor abrisse espaço para a afirmação de um observador-actor (ou actuante).

Mas é no gesto performativo e cúmplice do fazer as máscaras, tecidas (enredadas) por Ricardo Jacinto e Nuno Torres a partir da cabeça um do outro, que o sentido do fazer artístico enquanto acto solitário e individual é problematizado com mais acuidade. Os atacadoressão, neste gesto, um ritual iniciático, uma afirmação de pertença colectiva, um campo de experiência e de risco que abre um espaço relacional, um face-a-face com o outro.

O fazer das máscaras lida com o tempo e o espaço, ampliando-os, criando descontinuidades no interior do aqui e agora expositivo: o gesto é anterior à apresentação pública da peça. Esta desagregação da unidade espácio-temporal da exposição está também presente no gesto performativo da peça projéctil, também ele anterior.

A decisão de colocar as máscaras numa vitrina surge mais tarde, sendo marcada por um acaso: o encontro com um antigo dispositivo museológico do palacete parisiense. Para a instalação na Culturgest, Ricardo Jacinto desenha de raiz uma vitrina negra para as máscaras, objecto preto sobre fundo preto, iluminadas de maneira a realçar texturas e volumetrias. Neste dispositivo museológico, as máscaras ganham uma nova espessura temporal, projectam-se num tempo de memórias colectivas, noutros tempos e noutras geografias, onde o objecto máscara é central à vida comunitária e à partilha do poder. Mas a vitrina é também uma marca da história (da escrita), onde esses objectos-repositórios são as ruínas de um tempo perdido. As máscaras são instrumentos de passagem para outros lugares imaginários, outros tempos arcaicos e mitológicos, um tempo das origens que encontra eco nas narrativas individuais e colectivas (pessoais e sociais).

O tempo das origens é também o de um caos primordial que precede a linguagem (e a história) e o seu poder normalizador. Daqui decorreria a problematização da linguagem como o surgimento de uma falha-desvio no dispositivo da comunicação (ou da ligação). Amáscara seria aqui também um gesto de resistência. O tema da resistência, tornado gesto, será retomado e aprofundado na apresentação do Porto, numa das construções ficcionais mais explicita, crispada e explosiva de Les Voisins. O artista dramatiza radicalmente o acesso do visitante aos monitores de medusa e às mascaras, instalados no cofre-forte da cave, construindo um muro compacto de tijolo que impede a passagem.

No momento da inauguração, Nuno Morão abre uma passagem no muro com a ajuda de um maço, empreendendo um acto de destruição minuciosamente coreografado, exigente e físico (a destruição faz-se do outro lado do muro, não visível ao espectador). Esta prova de resistência é partilhada pelo público que fica entregue, sozinho, a mais de 20 minutos de destruição ritmada e marcada pelos sons fortes e surdos da demolição. Sendo este o gesto que dá início à performance, o seu impacto desorientador é exponencial num espectador que se encontra já face à coluna tomada de assalto pelas câmaras de medusae face ao espanta espirítos monumental. O autor da destruição nunca é visível. A invisibilidadede dos corpos dos performers é, aliás, uma constante nas três apresentações de Les Voisins. Do lado do muro face aos espectadores, encontram-se dois escudo reflectores, à escala do corpo, utilizados pelos performers Nuno Morão (o demolidor) e Nuno Torres (o activador do espanta espirítos), que os levará para fora do palco da acção (como Perseu face à Medusa ou um escudo face à máscara).  Estes escudos permanecerão na exposição da Culturgest do Porto e reaparecem na Ermida, em Lisboa, agora desactivados, apenas como vestígios materiais de outros gestos e outros momentos ficcionais da instalação.

De volta às máscaras, a sua apresentação na nova vitrina (Porto) opera também uma outra transformação na sua recepção, confirmando a sua condição de relíquia e, sobretudo, de fetiche. Arelação ao outro é agora mediada por um objecto – duplo informe do corpo que lhe deu origem (um forado corpo): o atacador. O desvio que opera faz-se também do objecto para o seu portador, remete-nos para o campo dos comportamentos que o uso da máscara induz ou produz no seu utilizador.

Esta nova ficcionalizaçãodo objecto sugere um possível alargamento da questão do poder sobre o outro ao campo dos comportamentos sexuais (o encontro com o outro na esfera do privado), insinuado na encenação das máscaras enquanto fetiche precioso e proibido, porque inacessível, mas também enquanto objecto de desejo e de prazer. Ao integrar o nome do material que lhe dá origem, os ataca-dores, as máscaras recuperam um sentido que advém da própria palavra e da sua ressonância, remetendo para uma situação de agressão e, sobretudo, para a figura de um agressor. A máscara é assim um dispositivo de comunicação-mediação autoritário, um instrumento de controlo sobre o outro, como o é também o disposi-tivo de vigilância de medusa. Por um lado, os monitores de medusamostram ininterruptamente as imagens dos outros, espiados por voyeurs involuntários; por outro, as máscaras dão-se a ver, fechadas no seu mostruário, mas abertas às ficções do espectador.

 

Ensaio. Entra pelas janelas do primeiro andar da casa parisiense, vindo de um outro espaço da casa, de origem não imediatamente perceptível, um som de um dueto improvisado de violoncelo e saxofone. O som parece ter origem num espaço vizinho, um exterior próximo mas inacessível. Lado a lado, Ricardo Jacinto e Nuno Torres empreendem, na cozinha da casa em Paris, longe dos olhares, um demorado e improvisado ensaio, num único momento da apresentação pública de Les Voisins: a inauguração. O exercício da escrita de Les Voisins é também ele um desvio porque, para quem o experiencia, ensaioé antes de mais o lugar de uma ausência – a do corpo dos performers – ou a presença do seu duplo sonoro. Uma ausência encenada, uma vez

que é só com a própria presença dos autores no espaço, ainda que distante e não visível, que a performance acontece. Esta ausência esvazia ensaioda sua percepção enquanto espectáculo: uma relação construída a partir de um objecto fechado (texto, guião, partitura, coreogra-fia…), no interior de um espaço regulado, definindo papéis fixos para quem dá a ver e a ouvir e para quem vê e ouve. Esta ausência será mitigada na performance da Ermida. Os corpos dos performers, invisíveis ao longo de toda a performance, escondidos por detrás do vidros estilhaçado (projéctil), são desvelados no fim da actuação. Os artistas vêm então para o espaço do espectador, do outro lado do espelho fracturado, dando-se a ver, agradecendo a presença do público, gesto que marca o fim de uma tensão que se instalara em Paris e que explodira no Porto. Num gesto último e significante, a performance da Ermida recebe ainda,e pela primeira vez, a colaboração de Travassos, que no terraço, lá fora, raspa e arrasta objectos sobre esta superfície, transformando literalmente o espaço arquitectónico numa imensa e única caixa de ressonância, verdadeiro instrumento de percussão habitável.

Finalmente, ensaio é um exercício sobre as condições da comunicação, sobre as suas possibilidades, materializada na figura da improvisação. Esta propõe um espaço de permanente negociação entre os músicos, entre os instrumentos musicais (e mais tarde a voz), que se constrói entre as hesitações, na falha e na ruptura (nos vazios), nos desvios e erros (sem texto), na tentativa e repetição. Recomeçar sempre e mais uma vez, na procura de ligação com o outro, face ao outro.

O som é aqui um dispositivo central, um lugar de trocas e um gerador de relações no interior do processo criativo. Abre um espaço de colaboração com criadores oriundos de outros campos artísticos e de saber: um fora do mundo da arte. Estar fora é também uma das condições para o conjunto das colaborações, uma vez que cada um dos autores-performers que integram o projecto fazem-no no contexto de uma prática que não lhes é habitual. Em Les Voisins, a criação artística acontece num contexto de relações sociais alargadas, em situações de colaboração artística múltiplas.

Indiferente aos obstáculos arquitectónicos, o som propaga-se pelo espaço, enchendo-o, dando-lhe densidade, atmosfera, tempo. Envolve medusa, projéctil, espanta espíritos, atacadores, muroe escudos. Por entre os objectos ecoa o diálogo repetitivo dos performers, fazendo coincidir, na simultaneidade, acto visual e percepção sonora. Ao fluxo das imagens junta-se o fluxo dos sons. Talvez o som seja uma resposta possível ao fluxo excessivo das imagens – o mundo no espelho, desvitalizado. Um excesso comunicacional que gera falha, interrompendo a relação do sujeito com o mundo.

Rita Fabiana

 

NOTAS

1] Ver James Meyer, “The Functional Site, or  the Transformation of Site-Specificity”, in Erika Suderburg, Space, Site, Intervention: Situating Installation Art,  Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000, pp. 23-27; Miwon Kwon, One Place after Another: Site Specific Art and Location Identity, Cambridge, Ma: MITPress, 2002, p. 24.

2] A Culturgest do Porto funciona no edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos nessa cidade, um conjunto arquitectónico modernista da década de 1930. Ocupa os espaços que correspondem à antiga agência e casa-forte da CGD, desactivadas, e que se situam respectivamente no rés-do-chão e na cave do edifício. De planta ortogonal e dominado por uma cúpula de vidro, o edifício encontra-se estruturado em três pisos, um dos quais, o último, é ocupado pelos escritórios e por isso vedado ao público. Adisposição dos edifícios em Paris e no Porto, ainda que distinta, apresentam certas semelhanças arquitectónicas, como a sua marcada monumentalidade, a riqueza da ornamentação interior ou a existência de circuitos internos diferenciados, um público e outro privado. Ambos os edifícios têm histórias e usos anteriores à sua actual função de espaços com programação cultural. A Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Belém, é ela também um espaço arquitectónico histórico, setecentista, um lugar de culto religioso,  mas que é hoje sede do projecto Travessa da Ermida – espaço cultural que é responsável pela programação regular e continuada de exposições. Sendo o espaço – a sua disposição arquitectónica, as suas histórias e os seus usos no tempo – uma das variáveis na estruturação de sentido de Les Voisins, a sua apresentação na Culturgest do Porto e na Ermida em Lisboa gera transformações. Como em outros trabalhos de Ricardo Jacinto, Les Voisins foi, na sua forma final de apresentação pública em Paris, a primeira das apresentações, ela mesma uma das muitas variáveis possíveis. Les Voisins é uma rede complexa de relações com o espaço, de relações dos objectos entre si e com o espectador, afirmada num processo que se manteve aberto durante toda a sua fase de concepção e produção.

3] Medusa, deusa primitiva e mortal, é um monstro híbrido – humano e animal, feminino e masculino, carrasco e vítima, fascinante e repelente – cujo olhar petrifica quem a olha. Decapitada por Perseu, que recorre ao artifício do reflexo num “escudo polido” (espelho), Medusa torna-se máscara: “Amáscara de Medusa é a face humana feminina, vista de frente, a boca bem aberta. É a face da morte no grito de terror. Amáscara com face humana grita para não se juntar à cabeça vazia, à cabeça abandonada pelo olhar, imóvel, descarnada, silenciosa das cabeças sem rosto. As cabeças sem rosto são os mortos”. Cf. Pascal Quignard, “Petit traité sur Meduse”, in Le nom sur le bout de la langue, Paris: Gallimard, 1993, pp. 80-81.

4] Expressão usada por Ricardo Jacinto nas muitas conversas havidas durante o processo de trabalho conducente à instalação de Les Voisins em Paris.

Les Voisins

  • Ricardo Jacinto
  • 18 Julho 2009 - 30 Agosto 2009
  • Instalação

  

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