Inhale, Exhale (self breathing kit)

“As ondas quebravam-se, espalhando as águas com suavidade ao longo da praia. Uma a seguir à outra, enrolavam-se e caíam; devido à energia com que o faziam, as gotas eram obrigadas a recuar. As ondas apresentavam uma coloração azul profunda excepto no que respeitava a um ponto luminoso em forma de diamante situado na crista, que se encrespava de forma semelhante à que acompanha os movimentos dos músculos dos cavalos. As ondas quebravam; recuavam e voltavam a quebrar, emitindo um som semelhante ao que é provocado pelo bater das patas de um animal de grande porte.” Virgina Woolf, As Ondas

Certas vezes, encontra-se uma fronteira ao longo da qual dois elementos se unem ou separam, de que resultam consequências monumentais. Quando duas energias opostas se encontram, como o líquido e o gás ou o calor e frio, estas não se misturam como se suporia. Cada uma preserva a sua individualidade. Quando uma adquire supremacia, a outra recua, criando novos fenómenos nesse processo. A inspiração de Paulo Arraiano para muitos dos seus trabalhos é o mar dos Açores e as linhas de fractura onde placas tectónicas se encontram/separam. Os movimentos destas placas consiste numa força que molda materiais e traços do nosso planeta.

Sob as suturas irruptivas da ferida aberta jaz uma espécie de têmpera forjadora de materiais que, borbulhando até à superfície, transportam importantes elementos. Poderá este lugar onde calor e água se encontram ser o berço de vida? Esta acção que arrasta, puxa, eleva, boja, em permanente movimento, impulsionando o nosso mundo? O que é a vida? Numa era em que os biólogos expandem a sua pesquisa ao recorrer a tecnologia digital e simulações computadorizadas na modelação de objectos vivos, esta questão aparenta ter muitas possíveis respostas. As definições do que é a vida proliferam tanto quanto a vida ela-própria. Estou, ainda assim, mais confortável com a aproximação da bióloga Lynn Marguli, na qual as coisas vivas são aquelas que crescem e que se multiplicam. Elas criam cópias de si mesmas e cultivam as suas próprias estruturas de armação. Neste sentido, a vida é uma palpitante (colecção) de células que separam o interior do exterior através de uma membrana semi-porosa. A vida, assim, descreve múltiplas entidades que respiram, amam e consomem.

A partir da água e do oxigénio, todos os seres-vivos conseguiram crescer e colonizar este planeta. Recorrendo às palavras de Stefan Helmreich em Sounding the Limits of Life. Essays in the Anthropology of Biology and Beyond, “podemos encarar, a um mesmo tempo, a água e o oxigénio como universais e múltiplos. A água torna-se universal através da circulação que se estende no espaço e no tempo.

Torna-se múltipla através da sua presença em diferentes corpos, e através de uma variedade de significados culturais. A água, como a vida, uma amálgama do conceptual e do real, está também a ser recentemente compreendida como uma substância-conceito de identidade instável.”. Partículas, átomos e células flutuam no espaço suspenso, dançando em redor entre si, respirando e palpitando, como se de estrelas se tratassem quando se rodopia livremente de braços estendidos à noite sob o céu.

Esta dança faz-me recordar as raras noites de luar em que os corais desovam. Os ovos individuais encontram-se entre si para criar vida. Ao mesmo tempo, esta dança é o início de algo maior, pois os novos corais constituirão ambientes para novos seres e contribuirão para todos os ecossistemas circundantes com efeitos complexos e extensos. Ou, tal como a nova obra em vídeo de Paulo Arraiano enuncia, eles são parte de “uma orgia ecológica que o faz querer permancer vivo”.

O espaço do vídeo “Inhale, Exhale (self-breating kit)” na Travessa da Ermida espalha-se pelo espaço e envolve-o num abraço. Poderá sentir que todo o espaço respira ao mesmo ritmo que o seu. É transportado até ao fundo do oceano, ou transformado em partículas infímas que circulam em correntes de ar ou na corrente sanguínea… É como se o som venha de dentro do seu próprio corpo. Sente-se suspenso, flutuando no oceano, envolvido por ondas que lhe trazem novas sensações. Elas contêm quer o mundano como o eterno, o amor como a guerra, experiências individuais e partilhadas no interior. Água e oxigénio fluem através de nós tanto quanto nós fluímos através deles.

Eles fluem através da diferença. Estamos implicados em todos os outros seres-vivos através das ondas e vagas que nos percorrem e restabelecem. Como escreve Astrida Neimanis em Bodies of Water Posthuman Feminist Phenomenology “para nós, humanos, a corrente de descarga das águas sustenta os nossos próprios corpos, mas também os liga aos outros corpos, a outros mundos além da nossa própria existência humana. Os corpos de que nós sugamos e para os quais nos vertemos são certamente outros corpos humanos (um amante que se beija, um estranho que recebe uma transfusão de sangue, uma criança que se amamenta), mas são também tão provavelmente um mar, uma cisterna, um reservatório subterrâneo do que foi chuva. As nossas relações aquosas no contexto (ou mais precisamente: enquanto) de hidrocomuns mais-que humanos apresenta portanto um desafio ao antropocentrismo e o privilégio do humano enquanto o único ou original lugar de tomar corpo.”.

“Sinto que até mesmo para mim a onda se eleva. Incha, dobra-se. Tomo consciência de um novo desejo, de qualquer coisa que se ergue em mim como um cavalo orgulhoso, cujo montador esporeou antes de obrigar a parar. Que inimigo vemos avançar em direcção a nós, tu, a quem agora monto enquanto desço este caminho? a morte. (…) As ondas quebram-se na praia.” Virgina Woolf, As Ondas

Paulo Arraiano [n. 1977, Portugal] relaciona-se com uma ideia de sismografia visual, medindo ondas relativas a novos paradigmas naturais, sociais e culturais.Este trabalho artístico combina-se com a sua pesquisa, a qual, entre matéria-não e matéria, envolve corpo, paisagem e tecnologia, levantando questões sobre alterações climáticas, biosfera, extinção, transhumanismo e antropoceno.Conta com inúmeras exposições, individuais e colectivas, nacionais e internacionais, das quais se destacam Dimora Artica [Milão]; Hawaii-Lisbon [Lisboa]; Pivô (S.Paulo); Museu d’Història de Catalunya (Barcelona); Hangar (Lisboa); Art Rotterdam [Roterdão]; Cidade das Artes Museum [Rio de Janeiro]; MAH Museum [Açores]; Quartier General, Centre d’art Contemporain [La Chaux-de-Fonds]; Aeroplastics Contemporary [Bruxelas]; Petra Gut Contemporary [Zurique]; TAL Gallery [Rio de Janeiro]; ArtRio [Rio de Janeiro]; The Dot Project(Londres]; Palácio da Pena [Sintra]; Forty/Forty [Varsóvia]; Galeria Graphos [Rio De Janeiro]; Museu do Côa [V. N. Foz Côa]; ArtWhino [Washington DC]; Hifa, Harare International Festival Of Art [Zimbabwe]; Cãmara Municipal do Porto [Porto]; ; Museé d’Art Moderne [Luxembourg], Scope/Miami Basel [Miami]; National Building Museum [Washington DC]; P28 [Lisboa] entre outras. Participou em programas de residência e festivais como Transforma [Torres Vedras]; Walk&Talk [Azores]; LAC [Lagos]; ”Atemporal” (Rio de Janeiro) entre outros Os seus trabalhos estão representados em várias coelcções publicas incluindo o Museu CAC Málaga [Spain]; Luciano Benton Collection [Italy]; Quartier-General Arts Center [Switzerland]; Museu de Angra do Heroismo [Azores]; Sztuki Zewnetrznej Foundation [Polónia]; Grupo Pestana [Portugal]; Fundação D. Luís / Bairro dos Museus [Portugal]; MARCC [Portugal] e inúmeras colecções privadas.Paulo Arraiano licenciou-se em Comunicação pelo ISCEM (Lisboa) e frequentou Artes Plásticas na Ar.Co – Centro de Arte e Visual (Lisboa). É também co-fundador da re_act contemporary, laboratório e programa de residência [Açores] e no.stereo, artist-run platform.

Borbála Soós

Inhale, Exhale (self breathing kit)

  • Paulo Arraiano
  • 13 Junho 2020 - 11 Julho 2020
  • 2020, Full HD Video on Led Wall 3m57s. 200 x 100 cm
  • Curadoria:Borbála Soós
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