Partir a louça?

“(…) o desenhador se vê sempre à mercê daquilo a que, de cada vez universal e singular, haveria de chamar invisto [invu], tal como se diz ignoto [insu]. Ele lembra-o a si mesmo, ele é apelado, fascinado  ou lembrado por ele. Memória ou não, e o esquecimento como memória, em memória e sem memória”. (Jacques Derrida, Memórias de Cego)

Realizados em 2008, depois de uma estadia de vários meses em Filadélfia (EUA), os diversos conjuntos de desenhos da “Family Series” resultam de uma original experiência que Vasco Araújo desenvolveu, voluntariamente, num projecto arqueológico que tinha como objectivo a reconstrução, a partir da laboriosa junção de pequenos cacos, de diferentes objectos quotidianos, do final do século XVIII e início do século XIX , descobertos numa extensa escavação arqueológica. A imagem colectiva desses objectos reconstruídos, testemunhas arruinadas de um contexto histórico específico – o da atribulada formação da nação norte-americana -, é fixada e organizada, por Vasco Araújo, num ensaio que, à semelhança da instalação de desenhos O Amante, de 2004, e articulando algumas das estratégias características do percurso deste artista, combina texto e imagem, num dispositivo de apresentação algo anacrónico, clássico, quase académico ou científico. Através de uma reduzida economia do desenho, essencialmente descritivo, delineando a grafite os contornos da matéria, Vasco Araújo mostra-nos, em cada um destes desenhos, a imagem de objectos reconstruídos, irreversivelmente danificados, incompletos, mas sobreviventes, combinada e amplificada por perturbantes legendas, escritas à mão, que citam pequenos excertos retirados do livro de Susan Sontag, Olhando o Sofrimento dos Outros.

Categoricamente agrupados, respeitando diferentes famílias cromáticas, tal como as antigas porcelanas chinesas, comercializadas mundialmente, desde o século XVI, sobretudo, através da Companhia das Índias, os desenhos de Vasco Araújo, ao importarem, igualmente, este património histórico para esta narrativa expositiva, dividem-se, formalmente, nesta exposição, em quatro momentos estéticos sobrepostos: “Armorial Family”, “Pink Family”, “White and Blue Family” e “Green Family”. Assim, cada conjunto é caracterizado no geral por uma cor que invade a moldura e o suporte do desenho, sobressaindo a linha do contorno. O fundo confunde-se com a matéria desenhada.

Numa composição que pretende sublinhar a perversão do olhar que contempla a beleza da fatalidade histórica, esta exposição, e esta série de desenhos, reflectem sobretudo as areias movediças do conceito de História e sublinham, tal como Walter Benjamin, que  “não há documento de cultura que não seja também de documento de barbárie. E do mesmo modo que ele não pode libertar-se da barbárie, assim também o não pode o processo histórico em que ele transitou de um para outro”. Imagens dilaceradas, indícios desenraizados de um passado perdido,  estes desenhos sublinham a “anamnésia da própria memória” (Jacques Derrida), respeitam e denunciam a falácia da narrativa histórica, a impossibilidade de uma descrição totalizadora. Relevam, sobretudo, lapsos, falhas e a imposição abstractizante da forma do vazio. O espaço da ausência e o invisível desconhecido potenciam o inacessível e delimitam o que não lhes pertence. A decadência e a fatalidade emanam uma beleza inebriante, seduzem-nos. Vasco Araújo reconhece a nossa ruptura com o passado e vive esse sentimento de perda. A sua actualidade não é “contemporânea” e “as imagens que representam sofrimento não deviam ser belas, assim como as legendas não deviam moralizar” (Susan Sontag, Olhando o Sofrimentos dos Outros). A condição que atravessa estes desenhos é a condição humana. A fatalidade é ser memória.

Pedro Faro

Família

  

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