A espada de fogo de Santa Teresa

Sobre o nosso rei D. João V há uma frase célebre de Frederico II da Prússia, que atribuía ao monarca português “uma estranha paixão pelas cerimónias de igreja”, acrescentando que “os seus divertimentos eram funções sacerdotais, os seus monumentos eram conventos, os seus exércitos eram monges e até as suas amantes eram freiras”. Estão implícitos nesta definição, em simultâneo, dois olhares tipicamente norte-europeus sobre a Europa católica do Sul, que de resto parecem ter-se perpetuado em muitos aspectos até aos nossos dias: por um lado o de um puritanismo luterano, segundo o qual a liturgia cristã deveria ser um momento de culto austero, sóbrio, despojado – porventura mesmo ligeiramente penoso -, marcado por uma reflexão lúcida, dura e concentrada sobre os mistérios das Escrituras e a imensidão dos pecados do Homem, e não uma ocasião de festa para os sentidos, de conotações suspeitamente pagãs; por outro lado o de um paternalismo iluminista bem-humorado, para o qual a aparente inexistência no Portugal setecentista da separação crescente entre os espaços culturais religioso e pro- fano que tinha vindo a ocorrer em boa parte da Europa ocidental desde o Renascimento configurava um arcaísmo grotesco em pleno século das Luzes.

De facto, numa existência quotidiana em que o ano continuava a ser pontuado pela distribuição temporal das grande celebrações do calendário litúrgico e o dia pela sucessão das horas canónicas assinaladas pelos sinos dos conventos e das igrejas, e numa sociedade em que eram ainda escassos os divertimentos profanos, a festa sagra- da era muito mais do que um mero acto de culto. Nela se mobilizavam todos os recursos do belo e do grandioso para criar uma atmosfera feérica onde todos os sentidos eram estimulados para produzirem aquilo que a Estética do Barroco encarava idealmente como uma antevisão virtual do que poderiam ser os gozos do Paraíso. Por um lado havia a magnificência plástica de um cenário per- manente feito de talha dourada, de estatuária, de retábulos pintados, de mármores, de madeiras preciosas, de painéis de azulejos, da panóplia impressionante das alfaias litúrgicas de ouro e prata maciços, do luxo opulento dos bordados e pedrarias dos paramentos. Por outro, a par com esta cenografia estável, havia em cada cerimónia específica todos os ingredientes de uma verdadeira produção espectacular multimédia, destinada a provocar da parte dos fiéis uma amálgama indissociável de respostas conscientes e de reacções emocionais apaixonadas.

No primeiro plano desta encenação exuberante do sa- grado estava uma cenografia ocasional que se acrescentava ao dispositivo decorativo permanente da igreja. Nas festas de maior relevo as colunas eram envolvidas frequentemente em veludo vermelho, agaloado de franjas de ouro, com os altares cobertos de flores, mas na Semana Santa eram os panos pretos que cobriam os altares, para depois serem subitamente retirados no momento da consagração da Hóstia na Missa do Sábado Santo, num golpe de Teatro espectacular que por vezes era ainda re- forçado pelo lançamento de pombas brancas na nave da igreja ou pelo lançamento tonitruante de foguetes no ex- terior. A tudo isto se somavam a pompa coreográfica dos desfiles cerimoniais do clero oficiante e do coro, a magia das velas e dos archotes, o perfume exótico dos incensos, o impacto emocional dos sermões e sobretudo a presença de uma Música carregada de um sentido quase operático, utilizando os grandes temas sagrados para os relacionar com paixões essencialmente humanas: a alegria e a tristeza, a esperança e o desespero, o medo e a fé, o desejo e o castigo, a solidão e a partilha.
Julião Sarmento de algum modo redescobre agora nes- ta intervenção este mesmo sentido entretanto perdido da festa litúrgica barroca, em que a devoção passava tam- bém por uma espécie de entrega física à transcendência, devolvendo a um espaço litúrgico desnudado o aparato celebratório dos panejamentos de luxo, dos jogos de luz

e de um canto que sabe aliar a espiritualidade da paixão à corporalidade da prece. É afinal um reencontro com a imagem belíssima da espada de fogo de que Santa Teresa de Ávila se sente trespassar no momento da posse mística pelo Espírito Santo, e através dela com uma vivência meridional e latina do Sagrado que está no núcleo duro da nossa identidade cultural.

Rui Vieira Nery

Fado (com Carminho)

  • Julião Sarmento
  • 15 Junho 2013 - 18 Agosto 2013
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