O elogio do sensível

ao Diogo

Há pintores que, periodicamente, reelegem um género cujo hábito estava esquecido e cuja prática as modas por razões várias foram deixando cair, por desusada. Assim com a paisagem, e mesmo se sabemos que é verdade que, na cena contemporânea, muitos têm sido os que redescobriram, nessa temática da paisagem,  motivos para reinvestir o seu desejo de pintura.

No caso de Jorge Curval, cujo trabalho já leva mais de duas décadas de procura sempre em torno da pintura-ela-mesma, mesmo se nem sempre esse trabalho tem merecido o reconhecimento do seu lugar, aquilo de que se trata não é tanto, porém, de re-visitar a paisagem sob a forma em si mesma contemporânea de procurar suscitar imagens da pintura, mas antes de re-visitar o próprio da pintura, no seu apetite por formas, sugestões, cores, matérias, gestos. 

Ou seja, não se trata de fazer da pintura pretexto de uma reflexão sobre a imagem, ou da paisagem uma hipótese de partida para centrar o que, na pintura, é apenas da ordem da imagem mas, ao contrário, de reencontrar no seu ofício aquilo que, parafraseando Barthes, se poderia designar como um puro prazer da pintura. Quer dizer, o que chega de uma atenção muito subtil a elementos que, para além de toda a sua significação conceitual, reinvestem a pintura e a sua prática de uma espécie de sensualidade, de uma carga de afectos, pulsões, desejos, ou mesmo de sentimentos que a tornam, de novo, coisa intensamente visual, susceptível de concitar uma vontade de a olhar, de a penetrar nas suas densas matérias, luxuriosamente cuidadas por entre zonas mais lisas e outras mais espessas, por cores e transparências, por vernizes que deixam que apenas a madeira dos suportes se faça fundo e cor ela mesma, e que reintegram no acto de pintar uma espécie de intensidade que vem directamente do corpo, mesmo se pagando o preço de passar por ingénua essa atitude que, no entanto, se refaz incessantemente como um elogio do visível (e, por tabela, do sensível), para retomar a bela expressão de Mérleau-Ponty.

Ora aquilo de que se trata aqui (ao que não será alheio o gosto pela prática das artes marciais que o pintor vem desenvolvendo há duas décadas pelo menos) é de algo cuja tradição, no ocidente, tem estado adormecido, mesmo se continua a estar por dentro da obra de todos os grandes artistas que utilizam a pintura. A saber, menos do que seria uma simples cópia da natureza, de que a pintura seria, reprodutivamente, mera representação, procura-se algo que, na tradição oriental mais remota, fez a fortuna de escolas milenares, algumas das quais persistem ainda: a prática de captar, da própria natureza, uma espécie de energia que se viria depois a fixar, através do corpo e do gesto do pintor, como inscrição da própria natureza num suporte. 

Assim foram longamente os pintores chineses meros instrumentos de uma natureza que os inspirava no sentido mais profundo do termo, atravessando os seus corpos das suas possantes energias, que estes depois depositavam, com maior ou menor elegância, sobre o papel ou o pano em que tintas e cores  misturando-se perpetuavam a intensidade de um encontro. Na arte do ocidente, ao menos recente, já apenas Tàpies recupera ainda este sentido da captação directa da intensidade em seu torno.

No caso da pintura de Jorge Curval e do que ela nos testemunha é precisamente dito que se trata: de uma vontade urgente, quero dizer de uma necessidade, de um desejo, de trazer para dentro desse puro prazer de pintar a que aludi atrás as próprias energias que antes captou na concentração do seu olhar e dos seus sentidos, despertos para essas mesmas intensidades.

Aquilo de que se trata, então, e por isso elas nos tocam, estas cores, estes misteriosos espaços que diante do nossos olhos se vão abrindo, não é de uma simples representação de árvores, musgos, vestígios ou, numa palavra, de imagens representando a floresta, como antes da vida das florestas ela própria, tal como se pode chegar a inscrever, através do gesto de um pintor, nos suportes em que se fixa ainda o próprio sopro que antes tocou o seu corpo, os seus sentidos, a sua atenção, e cuja mais alta intensidade vai deixar, por dentro daquilo que ele pinta, a sua própria marca.

Bernardo Pinto de Almeida

 

 

Da Vida das Florestas

  

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