A Natividade segundo Manuel Caeiro

I  –  Antecâmara

Na panorâmica desta sua primeira década, o sentido de obra de Manuel Caeiro constitui-se (criando para si e consigo mesma o seu próprio princípio), como o de uma série de séries. Paisagem visual e padrão conceptual por desdobramento lateral, mas constantemente obliquando (entrando-saindo) ‘em dente de serra’ (trabalhando aquém e por sob as estremas históricas do infinito perspéctico renascentista e da reificação auto-referencial do suporte biplano), ela vai oferecendo pontos de súmula sempre reversíveis.

Belém Coffrage exponencia como nunca essa região operativa de todas as reversibilidades chamada Pintura.

Quintuplamente:  

 Na relação ensombrada do visível ao afluxo, nele, do seu espaço interior, que em Caeiro supera como regra geral o nexo binário figura/fundo e seus corolários  – figuração/abstracção, 2D/3D, geometria/cor, desenho/pintura… -, e resolutamente corporaliza o que ainda resta de óptico no quiasma merleau-pontyano do Visível/Invisível.  

 Na relação, interna à presente obra, entre (sucessivamente) (I) o signo pictórico retido à esquerda/atrás (a antiga ‘frontalidade contemplativa’ incorporando-se-nos agora fantasmaticamente em bafo nas costas), (II) o signo arquitectural adiante, pesando-nos sobre o dorso ‘gymnástico’, e (III) o semáforo urbanístico de olhos postos acima, a retroalimentar, em título, o seu próprio circuito.

 Na recíproca estipulação (I) do lugar desta instalação na Ermida anfitriã (ela própria já cindida da sua transcendência  pela desactivação – sorte de ‘split house’ espiritual de um Matta-Clark – ) e (II) da instalação da Ermida-readymade pelo contraponto irónico e autoproblematizante da própria cofragem visitante. 

Na retoma reperspectivada do seu próprio legado pictórico pelo autor, mormente as séries mais recentes de 2009 (Sublime Precariedade, #1-27, Protected Emptiness, Gym, Golden Mine, Downtown, acasteladas n’ A Desilusão da Realidade #0, uma das várias Grandes Muralhas de 200×1000 cm que vão fortificando este império nascente), a constituir a obra actual numa vasta operação de releitura (em telescopagem: a das mil-e-uma cofragens antes experimentadas, latentes em microacumulação dentro desta última, não todavia como bonecas russas, mas como pura função articulatória de forças activas regressadas à sua condição pré-formal no inconsciente criador, que aqui é também o do próprio mundo). 

Pela sua intrínseca remetência à história da problemática e ao naipe das teoréticas que nela convergem, e que em sinopse (num novo desdobre) seguidamente recapitularemos, reportando os temas a alguns dos referenciais maiores do seu tratamento.

II  –   Fenomenologia das catacumbas

  1. Que cor é a de Ezequiel

A história da arte radica numa história mais antiga ainda, a (pré-)história da imago, esse poder ambíguo do terror sacro sobre fundo de ausência e de sinistra fascinação do Morto, que é o poder icónico maior e resgatado da Sombra ou Duplo, esculpidos ou pintados em sua glória de forma, cor e sobre-vida  – correspondendo, em Caeiro, não apenas à transformação topológica do plano do fundo nesse límbico “branco teórico do fundo da tela” [subl. nss.] de que fala A. Rivero, mas na “subida do abismo” do profeta Ezequiel até embeber o todo da pintura daquela invisibilidade ‘branca’ projectada, desde o interior dos seres e do próprio espaço, sobre a sua expressão visível (como o segredo de uma fisionomia): do que a predilecção por portas, piscinas, janelas, caixas, cofragens, casas, labirintos (a cujo ziguezague espectral e ctónico nem o ziguezague contra-angular do seu sobrevoo icárico e solar escapa, ou quere escapar, por fascinação abissal – “where I’d like to be”, 2004), e toda a demais temática interremissiva deste pintor, é o testemunho emblemático. 

Mas, na verdade, ‘janela’ converte-se, no quadro de Caeiro, propriamente em tudo; e, essencialmente, nem o seu característico branco leitoso é fundo topográfico, mas puro homogéneo topológico, nem, (visivelmente!) ele é (apenas) sombra ‘que se não vê’: e é este medium de articulação entre interior e exterior que se oferecerá como a janela por excelência  – a janela da opacidade vidente -, e ali onde um dia a pintura foi uma janela (a “parete di vetro” de Leonardo, a sua hipostasiação irónica em Duchamp), é agora a vez desta ser pura pintura.  

 

  1. A (meia) resposta do tabuleiro de xadrez

A superação, em Duchamp, da problemática renascentista da representação bidimensional perspéctica da tridimensionalidade, na busca da representação tridimensional da quadridimensionalidade

A partir do capítulo de Jean Clair dedicado ao Grand Verre, a confrontação sistemática entre as fontes renascentistas e a sua meticulosa reelaboração em Duchamp encontra surpreendentes prolongamentos no universo de Manuel Caeiro. A relação painelar geometral/perspectiva dos tratados seiscentistas, que guia a organização justaposta dos dois campos do opus magnum duchampiano, iniciou alguns dos óleos de 1999 e acompanha sem cessar a dualidade entrelaçada das estruturas de Caeiro até à exploração da actual apresentação, que sobe tripticamente do que se passa no plano até à instalação pictórica e à luz apertada no metal (sem subentender que assim reparta o número crescente de dimensões do espaço, que, como veremos, terá resvalado num equívoco numeralista da parte de Duchamp).

 

  1. O Céu da Ausência (e as suas torres de Babel)

O ganho sobre o duvidoso matematismo deste último que representa, em primeiro lugar, a noção merleau-pontyana de profondeur :  “desta assim compreendida não se pode mais dizer que seja «terceira dimensão»”.  Esta omnidimensionalidade faz caducar todo o princípio de leitura contabilista de qualquer painel pictórico de Caeiro (e, por excelência, os das citadas séries de 2009, de que o presente ‘pano de fundo’ pictural da cofragem de Belém é um avatar). 

Mas essa pontyana interioridade única de um dimensional de exterioridades englobante (envolvidas entre si por essa membrana ‘dehiscente’ de copresença das coisas exteriores “incompossíveis” mas reciprocamente envolventes e, por isso, inerentes, e assim interconstitutivas da sua presença visível, a que ele chama Carne do mundo), comporta-se ainda como um envolvimento do visível exterior, decerto que pelo seu “forro interior”, mas tecido, este, de visíveis e invisíveis exteriores (que lhe vêm desde trás e de em redor fingir de ‘forro’): quer dizer, cada visível dado está no interior de uma dimensão total de coisas visíveis exteriores que (como a sombra de Ezequiel) não se separam daquela e sobre ela ascendem, a envolvê-la, só assim a visibilizando elas também (longe de simplesmente a taparem): ao ‘serem carne com carne com ela’;  – mas cuja interioridade de afluxo e envolvimento é, de raiz, constituída por exterioridades, regida pelo modelo exteriorista de espaço, de visível e de coisa, e advém apenas ‘do interior da exterioridade’. Resultando que a profundidade pontyana consista na inerência (‘interior’) global do horizonte exterior a cada visível exterior, o qual viria tão de dentro dessa visibilidade global de tudo quanto ele mesmo de dentro da dele próprio (que não é o seu interior). 

Condição adiante da qual a metafenomenologia de José Gil dá um decisivo passo (que, para nós, é também o de Caeiro). 

Porque é curioso que Ponty cite Giacometti (“penso que Cézanne procurou a profundidade toda a sua vida”), desdenhando do sítio onde a terá procurado e onde a poderia encontrar: no próprio interior das coisas e do mundo, precisamente. 

O que é o ponto de chegada (e o orientador teleológico) do livro de Gil. É conhecido que o processo orgânico de ver e de pintar cézannesco (e por isso a sua técnica da progressividade micropictórica retalhada-tricotada na diagonal) desposa o da concrescência ontológica interior dos seres (num ‘animismo ontológico’ comum de árvores, pedras e montanhas); a análise de Gil permite complementar que aqueles são vistos, sidos (por identificação interior corporal comparticipativa do corpo experiencial do pintor com o corpo de forças interiores do mundo, que apresenta a ‘superfície’ como volume e traz o interior para o exterior, dando-os a ver) e pintados, a partir do seu interior (que é também o interior corporal do pintor enquanto sensação-pintura). Estrito avesso cezannista da perspectiva (esse de-fora-para-fora monocular). A Pintura não mais fazendo doravante do que dar a ver (em percepção ‘macro’) esse transvisível (microperceptivo); avolumar mais (na tela) esse avolumar-se interior das coisas que rebenta no elas serem visíveis; puxar (desde)/para uma mais funda exteriorização essa virtualidade de afluxo do interior regurgitante (‘baconiano’) das forças configurantes pré-formais e pré-objectivas. 

Ora, este interior do corpo e do mundo (e a sua mútua fusão pela alquimia pictórica), que potencia o efeito de inundação microperceptiva e ‘branca-sombria’ a vir recobrir as coisas mobilizadas em cores, manchas, traços, movimentos, esgares, fisionomismos intersticiais (entornando o fundo do espaço interior  – não o fundo perspéctico exterior de espaço –  cá para fora), constitui um investimento de fundo invisível e de interioridade que certamente intensifica a lição da profondeur: mas a articulação óptico-somática pontyana do visível pelo invisível-‘sombra’, ainda que redobrada em Gil pela reversibilidade interior/exterior, assumida (mesmo sobre a tela, e sobretudo sobre ela) no seio do espaço interior do corpo (fazendo corpo com o do mundo), essa articulação e essa reversibilidade mal tocam  – como sombra branca que o mundo faz onticamente a si próprio mas cujo aluvião de ‘caos’ vem praiar à felicidade infantil do ‘irisamento’  – a transcendência e a irredutibilidade da sombra abissal ezequieliana que estabelece o eixo Duplo/Ancestral—Imago e que excede o ‘mundo’, esse paraíso paisagista da nossa  civilização industrial-fenomenológica.

Um diagrama permitirá comparar os quatro andamentos de arquitectação da representação visual aqui postos em jogo:

(I) A Perspectiva renascentista, ocular, apropria o espaço da Natureza enquanto objecto, que abriu adiante de si e ao qual representa como figura. Nela, o espaço avança limpo e livre. O seu fundo pictórico não é um plano-de-fundo, mas um ponto em afastamento a infinito (do qual, diz Malraux, os longes azuis de Leonardo fazem inimitavelmente um vórtice por onde como que se escoa o próprio tempo).

(II) A profondeur pontyana, ocular-incorporada, entrelaça consigo a Visibilidade enquanto fenómeno e trata-a mediante uma estilização formal da visualidade perceptiva (maneira potenciada de ‘ver o invisível’): tal profundidade não avança no aberto, mas reflui, como um interior de exterioridades, em plena exterioridade do visível (mas Ponty é já sensível ao mesmo que até antes o próprio Leonardo: à presença, nos corpos dos objectos, de uma linha invisível interior ‘flexuosa’ que não é nenhuma das visíveis e cujo impulso-força as de-lineia a todas. E a conjugação invisível/punctum caecum/vidente-visível, como condições diferenciais-negativas de visão inscritas ‘por omissão’ no próprio visível como eclipse parcial de si próprio, acentuam o carácter refluxivo do fenómeno pontyano: mas todo esse fundo elíptico o é sempre no exterior e para o exterior).

(III) A sombra branca de J. Gil, assombração invisível (=branca) oriunda do espaço interior do corpo (próprio, humano, ou em geral), permite e suscita àquele o devir-outro e o refluir, para o exterior, do interior do mundo, assim totalmente imanentizado ali mesmo onde parecia furtar-se-nos (coup-de-théâtre): o instrumento dessa reversibilidade, teatral e não sacrificial, é a cor (ela própria tratada como entidade dúplice tanto em si mesma  – nas clássicas teorias da cor –  como na sua radicação antropocosmológica, como pele do corpo e pele do mundo que recobrem os respectivos dentros e, pois, não são peliculares, mas interfaces agudamente polarizadas na agonia da reversibilidade profundamente assimétrica, que vem inquietar esse pacto de imanência com o Outro).

(IV)  O “nascimento da Imagem pela morte”, na lição de Debray, abre “a porta de sombra”, o abismo ascensional de Ezequiel: a Imagem é o comparecimento não-representacional, não teatral, mas, mais arcanamente, do caput mortuum: máscara de Totentanz  – ou sacrificial, ou funerária. Ela, a Imago sacral, é o Duplo, ela é a Sombra ela mesma, e testemunha, por regresso, da cisão do Outro e do seu hiato de transcendência: o seu refluxo é total (é o fundo absoluto vindo como figura absoluta: no Holbein, a Caveira como phallus espermático, ou vice-versa), porque a sua cisão é total: mortal, propriamente. Surgimento da porta de baixo e não das janelas horizontais retinianas, reflexivas-vítreas, de sumária entrada/saída. O seu veículo não é a forma, nem a figura, nem a cor: é a mancha (mesmo o molde mais ou menos mortuário  – ou málico-solteiro, ou já cofragem… –  é maculado pela lividez, pela rigidez, pela alteridade absoluta ao visível escandalosamente em pleno visível: a presença do morto. A cera decalca outra Coisa). Se a sombra branca se rebate do interior sobre o exterior como uma matéria-imagem inaparente, uma velatura atmosférica, já a Sombra sombria se erige desde o imo do mundo, e constitui (simultaneamente por solene investimento obscuro e por impetuosa reversão luminocromática de si), não algo da imagem, mas toda a imagem  – toda a representação, toda a moldagem, toda a pintura. E, como veremos, toda a arquitectura. O seu modo temporal não é o da futuração da geometria projectiva ou o das temporalidades equilibradas e dinâmicas, mas contemplativas e mundanas, da profundidade e do interior, no ciclo fenomenológico: é o do memorial do imemorial.

E eis que é essa imediatamente a qualidade meditativa da pintura de Manuel Caeiro (cf. o actual 300x300cm, e o manancial de 2009): estática, e extática. O seu puríssimo presente de exacto facto dado, urgindo e perigando de Vermelhos e repousando no absoluto dos Imaculados sujos (mas que se trabalha esquematisticamente de tal maneira a si próprio que se abstrai concreto em factualidade sem facto e numa autotemporalidade nem a de um agora nem a de um eterno), desolado e abandonado  – jazigo vazio do sem nada e sem ninguém -, enclave de entremundo trabalhando as suas traves para cima (para o lugar do haver) e para dentro do seu próprio labirinto, e que lhes acrescenta sempre uma ‘voluminosidade’ mais às que as suas direcções recortem já: todo esse rigoroso ninho do hiperdimensional se encontra repassado de uma lentidão atrasadíssima de tempos em apagado. Um esquecimento muito antigo, é o de que há aqui memorial: um puro passado sem memória a tudo assinala numa mancha só  – mais branca que o branco. Se sombra, a do tempo: ela não vem de fora, pontyana, nem de dentro, giliana, mas do passado. Não do fundo (a mancha/pintura “não tem fundo”, diz Benjamin), não do anterior: do puro vácuo do passado. O morto do morto, a destituição do próprio nexo e dobra da ausência. Seu apagamento no rumor em branco.

Abordando desde um outro flanco: apetece aqui o jogo de palavras: se há coisa que o travejamento abstracto de uma cofragem precisamente aguarde, é o concreto, o cimento, o material que, vazado no receptáculo configurado pelas paredes painelares, em geral módulos encaixáveis, (como numa piscina, numa caixa, num ‘cauxote’ de Caeiro, num túmulo…) e pelas vigas de sustentação que constituem a cofragem, proceda à construção efectiva do edifício (do) real. A cofragem de Caeiro é porém ela mesma a concretização do seu próprio  abstracto qua abstracto. Mais: se uma cofragem já é um sistema de moldes (de madeira, de metais  – aço, alumínio, por seu turno dotados de superfícies apropriadas para o interface físico-químico estável com o material a vazar -), se ela é uma pré-construção da forma, e sua fôrma generativa, então lhe cabe por inerência o obséquio do isomorfismo. Não assim porém em Bartleby-Caeiro, onde elas ‘preferem não’, e serem antes os moldes málicos, ostentados vazios, de um puro ludus da moldagem da própria moldagem  – da mesma maneira que a forma transcendental kantiana  (que será a formalidade-tipo plasmante da forma de todas as formas empíricas dos seres do mundo)  se constitui a si mesma auto-afectando-se e auto-intuindo-se. Em Caeiro, deparamos um abstracto inconcretizável (ironizado p. ex. no Por cima disto ainda uma casa #1). Não, porém, no sentido do exercício de abdução da configuração anatómica do habitante inimaginavelmente monstruoso de uma certa casa enigmática visitada furtivamente pelo narrador, a partir dos indícios gestálticos e funcionais da sua traça espacial e da morfologia dos seus mobiliários, no conto de Borges “There are more Things”. Pois não só a selva de traves se não destina a viventes, como ela não é ainda o último abstracto antes do concreto, mas o penúltimo: a cofragem construtiva do real, de Manuel Caeiro, é o trabalho de autoconstrução abstracta do próprio abstracto, é a cofragem da cofragem. Como o de Cézanne, ele é a documentação das formas do mundo, mas um passo antes: não das formas dos objectos do mundo, mas das formas das formas dos objectos do mundo  – ao nível-sonda das suas variações possibilísticas, do seu fazer-se forma. Suspiro do olho-que-desposa a Mariée viúva, pré-construção do véu-de-Noiva branco do Visível  – objectos de outros tantos exercícios málicos de gymnástica de barras, derramados na mancha láctea a-dimensional do inviável absoluto.

Mas, diante dessa Via Láctea que se ‘esgueira’ e de que não há, pois, senão esgueire (Gil), diríamos que, o branco de Caeiro, nem visível nem focável: se ‘não houvesse nada’ por detrás dos visíveis que num mundo de horizonte meôntico observássemos, eles seriam ainda observáveis  – na claridade do próprio campo visual e deles próprios. O branco não é um branco, é essa claridade: pelo que não se fica pelos fundos… abrange a tudo, é o seu branqueamento ou visibilização (remeta-se para a insistência de Gil na ‘substituição’ da sombra branca ao diáfano de Aristóteles como medium da visibilidade das cores – op.cit., p.237). Assim, neste mesmo autor, lemos: “Esta sombra não tem nem contornos nem lugar precisos. Não é ela própria uma coisa, uma mancha ou um vazio numa superfície, mas «cobre» ou «habita» indefinidamente o visível inteiro” (ib., p. 225). 

Sustentamos que a claridade do (não-)’fundo’ é o seu adensamento em ‘coisa nenhuma’ e ‘mancha-que-não-é-«uma»’ (nem numérica- nem quiditativamente: apenas tão o suficiente em Caeiro para parecer mancha quanto em Gil para ser chamada por esse nome…); e que as manchas que mancham as coisas (as traves e vigamentos) não são senão o seu re-agenciado emergir pictural segundo o Kunstwollen (mas agora tudo o é, tudo passou a sê-lo: e essa a diferença entre a situação perceptiva trivial de a sombra branca a tudo recobrir, mas reservando-se, ou  de se constituir estético-artisticamente em espaço-de-imagem e de converter, a todo o ‘tridimensional’, no seu próprio aparecimento ‘quadridimensional’). 

Acresce que ela funciona, nos infindos linhos de 99, como matéria-imagem: “Para que um desenho surja na ponta do lápis e se formem ao mesmo tempo espaços de um lado e de outro do traço em movimento, é preciso supormos um suporte diferente que impregnou totalmente a página branca: a matéria-imagem (…). O espaço de imagem é feito de matéria-imagem” (ib., p.221). O que não equivale à determinação, pelo acto de traçar do desenho, da superfície do papel em fundo do desenho, segundo Benjamin (op.cit., p.14), mas da qualidade levitante que a este último assiste (na observação de Ponty: a superfície de pintura incoincide consigo mesma). Deste movimento de passagem (do corpo fenomenológico do pintor, do desenhador) ao interior (do objecto) faz parte, por fim, a gest(aç)ão de vazios: “porque é preciso [por via de um olhar esburacante] desconstruir os espaços do objecto, é preciso analisá-los, é preciso decompô-los e neles produzir vazios. (…) O vazio prepara o espaço para o exercício da imaginação (…) contém já em si uma pré-forma que dirige o movimento de desconstrução, uma «forma do vazio» que desarticula e segundo a qual se desarticula o espaço. (ib., p. 228)” Para além de ser impressionante como esta frase descreve, sem nunca a ter visto, a pintura/desenho de Caeiro, retenham-se os dois pontos de aplicação desse vazio extremo (para sempre por sepultar) que vínhamos há algum tempo notando: se ele se manifesta na desarticulação desconstrutiva das formas (e das ‘fôrmas’ de cofragem: e de que maneira!…), manifesta-se também na “desarticulação do espaço”: como a borboleta e Tchuang Tseu, não se sabe bem se são os labirintos angulares dos travejamentos, em plácida ânsia intermitente albi-rubra e ‘neonicamente’ transitiva, que multiplicam os alvéolos de espaço ‘hipercúbico’ entre eles    –  se é este prolífero espaço-coisa (expressão de Gil) que corta e molda suas íntimas orlas de tábuas. E manifesta-se na “desarticulação” e nadificação do ‘fundo branco’, que o vota àquela simples claridade vazia que apontávamos. 

Na verdade, e como é referido por Gil, o hausto operativo desse ‘vazio’ alastra a tudo, e constitui uma só unidade sorvedoura por sob(re) toda a pintura/desenho: ela (I) desenha as traves desarticuladas, ostentatórias e patéticas, como esquematismos do hiperespaço; (II) insufla a este como a multíplices balões de impossíveis brancos transparentes (docemente coados de translucidez); (III) transubstancia-se na omissão do fundo ‘em branco’; e, finalmente, (IV) cobre do manto claro do diáfano a inteira cubicagem indeterminada da caixa de pintura, ou dessa vitrine de um reino plásmico do multicolor que um dia havia encantado a infância de Marcel: com isso alcança as próprias madeiras em seus tótemes monótonos e esquivos (o desenhado), as manchas nelas (o pintado), e forma ainda região para recolher os pingos que se despedem do ‘realismo representacional’ das vigas irreais para retumbarem, não ‘no plano de fundo, bidimensionalizando o quadro’ (como a rotina do cliché tende a fazer dizer a todos os comentadores que tenham tocado o assunto  – contra toda a evidência visual), mas na própria Pintura inseminando-se a si-mesma, como esse deus que fosse causa sui. Os drippings, se neles repararmos, enleiam-se na vitrinidade respectiva da ‘folha-de-espaço à altura da qual escorrem da sua trave-mãe, indeterminando a métrica do gráfico num espaço a-métrico no qual aquela se dilui, mas que todavia o acompanha numa liberada correspondência ‘vítrea’: porque na verdade essa vitrinidade recobre não apenas os espaços vagos entre traves, mas (de vazio) as próprias traves, pintando o desenho e escoando-o de presença no real (daí que o espatife desarticulatoriamente de mil modos; e daí que ninguém haja, nesta região: não que dela hajam partido, mas ela que houve exílio).

Em suma, ao disseminar-se como um velo sobre tudo, esse vazio adveio em si mesmo como tal, mas não como fundo: começa por ser na sua espessura de vitrina duchampiana que pingam suspensos em espaço puro os pingos a ‘profundidades’ ( a ‘folhas’!) desiguais (suspensos em espaço-coisa, que agora sabemos que também se chama pintura: mas aquela que age aquém da tinta); é, igualmente, nesse milfolheio de vazio que estiolam, corroídas de máculas que ao mesmo tempo são um apuro do ‘realismo pictural a todas as dimensões’, roídas de pintura, as traves do Desenho, ele próprio ruindo de demasiado desenho e fazendo colapsar no seu âmago mesmo o espaço (o espaço-de-desenho) sob a sobrecarga da acumulação no seu interior de demasiado desenho, ou hiperconstruindo desenho e espaço, e subtraindo-os assim para a região transcendental da construção da sua própria construtividade, anterior ao real empírico (como as cofragens o são às casas); e, por fim, é a concentração sucessiva em ‘livro-de-areia’ de tal velo-sombra (que deixa escoar nele as coisas presentes até aparecerem, e que é propriamente o espaço, forma a priori, ou o que os gregos chamam Chôra) que adensa a sua transparência invisível numa das cores que a não pode ter  – o branco –   e que, não ‘ela’, mas a sua densidade de transparência vítrea, por fim ‘aparece’ (mas não sendo senão a acumulação sucessiva de transparência avistada de uma só vez): claridade branca láctea (branco Caeiro: de sombra, não de cor), tal como o céu, cujo azul (azul Klein: de céu, não IKB) é um efeito de transparência que aparece em vez de um fundo que se retirou. E por isso o céu é rigorosamente sem-fundo (tal como Benjamin diz do medium da Pintura): ele não é um limite, nem uma pele sobre um dentro, nem uma cor hipostasiada, nem o início de um além que ficasse após ele, nem a amplitude manifestada desse mesmo além: o céu é uma sombra azul de vazio, tal como o vazio, descido à região das coisas, é uma sombra branca que impregna também o próprio fundo perceptivo de contraste (na qual impregnação ele próprio aparece, e que assim o denuncia como falsa condição de aparecimento gestáltico) e que revela o inavistamento fundamental em que consiste o horizonte fenomenológico. Ao antepor-se como condição radical de avistamento segundo a qual procede a exigência inabalável de todo o trabalho pictórico no âmago da visibilidade, ela, a sombra branca, não aparece como fundo, mas é o aparecimento do fundo que se retirou, o próprio aparecimento sem fundo do sem-fundo (como o céu, como a pintura: em Benjamin, em Klein, em Gil, ou em Caeiro). O pintor não pinta ‘na superfície’ nem ‘sobre a superfície’; nem é sobre ela que cria a ratoeira óptica da sugestão dimensional: o pintor pinta directamente em todo o espaço dimensional da matéria-imagem ‘voluminosa’, ele é um Marcel de cores todo dentro da tinta da vitrine. É dentro do mundo que pinta (as cofragens do mundo, não as das coisas: as coisas, essas, estão cá fora).

Assim, desenho e mancha fazem o mesmo: aquele, não sendo coisa, esta, não sendo fundo. Se ‘começarmos pelo desenho’, verificamos que não só ele forma um pouco mais que 3D, à frente, como o faz não contra um fundo por ele próprio posto (não é desenho); e constatamos que esse 3D+ se desenvolve no próprio medium do ‘fundo’, e que o faz (como Benjamin releva) afundando-se nele, mancha em mancha   – como, pois, igualmente pintura. Mas mais porque aquele fundo montante subiu, do que por imersão de uma segunda camada na ‘piscina’ da primeira (como é da lógica da mancha impura e parece inverter-se, para Benjamin, na pura lógica da pintura: não assim em Caeiro, fiel à intuição arcana: nas suas piscinas são os túmulos,  os vultos e os lençóis de água negra que ascendem, e que desvairam, de dentro dos tanques do antro do mundo, a vertigem das pranchas de saltos, dadas por vezes nas perspectivas incompossíveis dos próprios mortais a que obrigam, na falta de saltadores, o próprio espaço  – também elas assim votadas àquele sortilégio icárico que mencionámos). Não traço, nem muito menos traça de construção, ele é rasto  – o que quer dizer que a sua parte de apagamento prevalece sobre o sulco, e que, como todo o vestígio, volta para trás. O terror das relíquias não é desenterrarem-se, é que nos venham buscar: como toda a sombra ‘com vida própria’ (e morte alheia), uma interioridade extravasada não apenas vem colorir o mundo dos pintores (como implica o século luminoso e tardio de José Gil), mas evacuá-lo. A lividez absorvente dos seus grandes cemitérios da carne em sangue das estruturas faz Caeiro pertencer a uma tradição de criptas e não de exposição. Alegorias, mas indecifráveis, elas petrificam num momento factualizado um devir temporal do sentido, um acontecimento que passa a ser esquecido narrativamente na versão que o explica ao conferir-lhe a sua origem natural (e que, precisamente porque assim interrompido e enfeitiçado em Natureza e ser-assim, constitui pulsão de História, quer dizer, de uma tal retenção de sentido que só um grande tempo  – como um Futuro prometido -, e não profanamente um tempo seguinte, poderá acolher).

  1. Fazer batota… ao xadrez

Já o registáramos: as teorias fenomenológicas e pós-fenomenológicas da imagem insistem num trato de reversibilidade com o invisível, com o interior ou mesmo com ‘o caos e com a morte’  – com os irreversíveis. Que sejam estes que venham alimentar (de profundidade carnal) a Visibilité por isso gloriosa, estilizada e estética (Ponty), ou o ‘excesso da cor’ que sobrecompensa o ominoso do seu ‘avesso’ (Gil), redunda numa recuperação dos irreversíveis pela sua reversibilização, que se deixa exemplarmente ilustrar na circularidade benjaminiana entre a mancha, pulsional e mais antiga no corpo que ele próprio (a mancha do mundo, que o atravessa), e a pintura, que só remete para aquela na medida em que em si a reflecte, não na sua obtusidade originária (que seria rigorosamente irreflexível), mas enquanto tornada ela própria um sintoma de si, uma pintura da natureza que depois será a da cultura. Quer dizer, só quando a mancha é já uma pintura, um sintoma, uma manifestação, é que a pintura joga em espelho de pintura com ela. Numa palavra: se a pintura é o duplo da mancha, só na medida em que esta é já ela própria o duplo daquilo de que é mancha, Daquilo que por ela fora alastra (e que na verdade ela ao mesmo tempo irreprime e mantém, nessa Forma sua de o irreprimir, contido e para sempre cerrado. O sintoma, estrídulo e protector, é a própria catarse.

A estrutura da Imago consiste, então, num duplo de um já Duplo: de um já bífido na parte que foi e na parte que será, na parte que morre e na que vive, na que caíu no nada e na que assoma, na que se enterra e na que se ergue estátua, máscara, figura, eidolon, simulacrum, na que é soma ou cadáver e na que é sema ou sua lápide e, como ‘signo’, seu derradeiro, desesperado Sentido. Mais: da imago tanto se pode dizer que ela apropria o lado de cá dessa duplicidade sinistra e salvadora, como que a instaura ou ajuda a instaurar. Porque, na verdade, se, como diz Debray, ela coincide com o Duplo, se ela é o Duplo (o que se desdobrou da morte precisamente nesse seu veículo propiciatório que os vivos lhe devotam), em sentido identitativo e igual, ela ‘é-o a ele’ também, no sentido transitivo de ser ela, ao apropriá-lo, a dotá-lo do seu tónus super-vivencial (aquilo  que a semiologia virá a teorizar como o ‘aumento icónico’: o signo seria   – semanticamente, não onticamente –  mais do que a coisa designada ou referida; também, em Adorno, o ‘não-idêntico’ estético, grafado como ‘Mais’). Herda e promove a subdivisão.

Falsa reversibilidade, pois, entre duas instâncias do manifesto: a linha de fractura resta além do jogo das Formas, e se a silhueta é a forma obscura do interior magicamente exteriorizada e o desenho e a pintura são a sua retoma, na restituição desse interior ele é perdido, como de resto não poderia deixar de ser a propósito de uma não-positividade como é a do Invisible (como Ponty o mostra) ou tratando-se do ‘interior’, que só para e desde (e pela mediação e nos termos de) o exterior se pode investir como o seu reverso, que qualquer adentramento cirúrgico perseguiria em vão como a uma linha de horizonte que se afasta, equidistante, a cada avanço. Se a imago é os ossa, é que os ossa são imago: tudo é pele, tanto fora como ‘dentro’, tudo é pele até ao osso, e a reversibilidade é o jogo entre um fora e outro fora a indicar a irreversibilidade, que lhe escapa, entre esses fora e… o dentro? Não: o fora mais fora que os foras, o fora absoluto. O remorso ontológico do irremediável.

O que quer dizer que o Irreversível não é desta ordem, e que o jogo da representação e da assunção ontológica do Duplo pela e como Imago não faz senão aludir àquele, iludindo-o. Desse modo, assistimos, desde o afã paleolítico de enterrar, de moldar, de figurar, de mergulhar a mancha na sua própria continência, até ao escopo de fazer a metafenomenologia do interior dos corpos e de um mundo monadológico de pequenas percepções feliz e optimista, ao mesmo pânico que leva a acumular pirâmides macissas, a salvar o ser protegendo-o no seio dele mesmo  – fechado, esférico, parmenídeo. Se o visível traz o invisível (e só ele o é), se a imagem (toda a imagem, toda a pintura) traz o morto ou a divindade (e os é), se a cor e a mancha trazem o interior; se a Forma, que dá forma ao Outro sem rosto e dele se nutre, por isso mesmo sobre ele prevalece, não ao enfrentá-lo, mas ao assumir o seu nada perante ele e a todavia se construir como a forma que é diante do nada e da mortal precariedade que a avassalam, se essa Forma é a que fundou um dia a figura, o sinal e o mausoléu dos mortos (ou a pintura, a escultura e a arquitectura como mimese do morto), originariamente Forma mortificada não do mundo dos vivos mas da morte do mundo, e se só devastada pela transcendência a forma é ruinosa e transcendente o bastante para se constituir em si mesma e para até ao simples real mundano poder (na fase da sua decadência naturalista) chegar a ‘representar’: se assim é com a Imagem e com a Forma, elas apenas triunfam no ciclo da sua petitio principii metafísico-plástica: haverem emprestado o seu próprio rosto ao espelho donde olham o poço. Na grandiosidade de assinalarem a sua derrota e de serem elas a pôr a sua própria condição de finitude, a sombra branca e a sombra negra podem jogar uma com a outra, porque ambas já são cores. Não formam com estas contraste algum (de não-cor interior a cores exteriores), nem sequer reversibilidade alguma. O único tabuleiro de xadrez digno desse nome é aquele em que as casas são simultanemente as peças, e vice-versa, e foi pintado várias vezes por Malevitch a partir mais ou menos de 1915, diz-se. 

 

III  –  Excurso (vertoviano)

Relembremos, num breve excurso, os saltus mortalis praticados pelas câmaras de dois cineastas iniciados que entendem o fazer-imagem (pictórica ou cineástica) como acto de sepulcro:

1º  Num dos seus Sonhos  – Crows -, Kurosawa conduz Van Gogh através da senda intransitável do trigal (sol por terra) como quem sobe ao calvário (o cavalete às costas como cruz), mas também como um espantalho ou macabra anamorfose que espantará os corvos que então virão do fundo reverso do mundo   – sobre o trigal. Trespassar o último horizonte é o acto sacrificial do mesmo pintor a quem escutáramos antes ensinar como pintar é antes do mais mergulhar na paisagem até à pintura em que ela se torna (pelo corpo, não pelo olhar, do pintor), e então, uma vez no interior do visível, interiorizá-lo por seu turno (como um Jonas que engolisse o cachalote desde dentro do seu estômago), devorando-o até que “o quadro se lhe pinte diante completamente”. E só então pegar nos pincéis e atacar a tela. Mas pintar não é apenas ir ao interior do mundo visível e revirá-lo, é sair para além do horizonte da interioridade do mundo e, num acto irreversível e absoluto, morrer-lhe, morrer-se, e, no discernimento desse limiar, por uma última vez fazer a primeira pintura.

Ou o primeiro de toda a pintura como coisa última, como escatologia – cuja natureza de Imagem é, agora, não um eterno retorno do visível a si próprio desde o seu cavo, mas a deserção da imagem a si própria, o seu abandono de campo. Todos os comentadores garantem demonstrativamente que o sistema de perspectiva dos Corvos sobre um Trigal colapsa sobre o lugar ocular do pintor em primeiro plano. Mas não advertem que este é um dos primeiros (ou raros) quadros Sem-ninguém em parte alguma  – nem ‘do lado de cá’, nem ‘do lado de lá’. Este quadro foi deixado, e o que nele se mostra (em nada nele) é o hiato do puro desaparecimento: o desaparecimento do desaparecimento, não o luar de uma contraprojecção de um Van Gogh testamentário, que recebêssemos morto. Pura estática.

2º  Filmando insidiosamente o pathos de Biberstein ‘at work’, Fernando Lopes encena o símbolo labiríntico e o algoritmo visual em acto do que fosse a quarta dimensão (inevitavelmente post mortem). Colocando a câmara (=nós) como se olhando de dentro da tela (mas é um vidro, dizia Duchamp: ‘efeito especial’ das janelas indiscretas…), filma a pistola de tinta (triplo shot, de arma, câmara e aspersor industrial) que lhe aponta Biberstein, e que, recobrindo a superfície que devém opaca, o vai sepultando lá dentro (como um que se enterrasse vivo) e nos vai sepultando cá dentro, porque éramos nós desde o início que nos vestíamos de sarcófago. Parece que os pintores morrem nas obras, e por uma vez a extinção dá-se entre irreversibilizáveis: entre dois interiores, entre duas falanges de xadrez da noite da mesma cor.

Era bastante a lição de Holbein: se a sua anamorfose é reversível (ou vemos o mundo e não a morte, ou vemo-nos mortos mas não o mundo), o seu percurso, não: a Imago, precisamente, não vem ao mundo (que, esse sim, e a mancha que o atravessa, mácula málica ou pingo de pintura, são imagem do sepulto).

E porém: o tour de force está a mais onde tudo é lasso. O Inferno de Dante, a cujas portas se lê a célebre placa da irreversibilidade (não sairás!… sem batota, uma vez mais), supõe o pecado original da ontoteologia da reversibilidade, da igualização dos desiguais: que seria possível ‘entrar na Morte’, que a morte fosse coisa de se entrar. 

IV  –  O presépio de cofragens  – e “a sombra da cor nas suas costas”

Nas costas da cor. Feliz expressão. Se por um lado ela ainda diz a relação de dobragem aziaga de uma interposição que, por simples estar de fora, tem por outro lado da camada física e da lógica quiditativa da sua própria presença um inverso, por outro lado, as costas nem estão viradas para a frente nem estão viradas para trás. As costas  – não estão viradas. Porque a vida as tem a todas, a morte não tem direcção. Nem horizonte, nem chão, nem janela, nem a-b-c – trinta-e-uma-dimensões: as logolálias das permutas protelantes.

Já o definimos: se um ‘visível’, um ‘diáfano’, um ‘fundo’, um ‘espaço perspéctico’ inteiro, uma ‘profundidade’, um ‘interior’, um ‘outro lado’, um ‘além’, um ‘infinito’, um ‘deus’, um ‘morto’, um ‘transcendente’, porventura comparecem em absoluto, nada mais resta do outro lado   – e nada, inhavido esse outro lado, propriamente compareceu.

 O alívio lívido da Ermida que nos acolhe é um tal espaço escoado. E o Céu (claridade adensada) de Caeiro evacua absolutamente qualquer tópica de um além (assim como o universo einsteiniano não tem exterior nem é, pois, um ‘interior’: porque não é um ‘espaço curvo’  – o que ainda seria uma figura esférica com membrana, mesmo se ‘em parte alguma’, na versão cusana -,  mas uma curvatura tal do espaço que deixa de ser curva e deixa de desenhar figura. Deve ser difícil de pintar; digo eu). 

Não se diria que então fica o aquém, e tudo é terra: visivelmente, não é o caso. Algumas das casas de sonho (Dream Houses) são uma cortina de cartão de tinta de, diria, uns dois milímetros, sonhando em rosa-Klee com a Pintura. 

Nem casa, nem terra, nem mundo: Caeiro pinta uma categoria transcendental: o estar. Uma estaca da ontologia que funda tudo o mais (em si própria: no seu próprio trabalho: o trabalho de estar), e que substitui a maçada inteligibilista do advento retirado, característica do registo do ‘Ser’, pelo labor da construturação solitária que desdenha da grosseria empirista de um mero catálogo dos factos (e, não menos, da pompa de uma pintura do ‘fecit’). 

Enfim, precisamente por não ter outro lado nem este lado, e nem céu ser, esta pintura efectua pragmaticamente o indicativo do que seja mostrar o que há a mostrar e não mostrar o que não pertence ao mostrar (nem pertence ao ‘não pertencer ao mostrar’, como reduto de caça de Inverno metafísico muito reservado). Wittgenstein traça limite e rejeita uma das duas regiões: aqui: não tendo a outra região, que ‘calamos’, também não temos ‘esta região’, essa Linguagem. Caeiro não realiza a anagogia do Silêncio, o seu Branco não é afinal ‘teórico’, não ensina a experiência visível do silenciar, porque propriamente ele não é nada. Se quiséssemos sucumbir à filosofia, diríamos, com Plotino: (o) Uno. 

E estamos ‘para além’ do ‘além’ e do calar  – pelo que prosseguiremos em discurso. 

Este indicativo cinge melhor o apartar-se (intransitivo ele próprio) de uma dupla intransitividade: nem a imagem vem, nem o morto vai. Muito menos “E a folha que caía / Era alma que subia”. Não é assim que é. Embora seja assim que gostamos do nosso carrocel, e da sua milenar pintura (as zebras, as girafas, os carrinhos, os paisagistas holandeses da minha perdição, sim…).

O painel do fundo, na sua periclitância de dois andares que lembra os Édipos de Max Ernst em bronze cego (quando via), e vendo agora cego, esse novo Stuntman a perfazer as séries transactas, confere desde estas o fulgor desmaiado da gratuidade de um Boehme contemporâneo: die Rose ist ohne warum. Assim igualmente estas pétalas. Estão. Nada trazem nem querem trazer. Industriosas, trabalham  – mas no puro não nexo patafísico de Ubu Rei. Tão ‘inominável’ aquela intransitividade negativa da Imagem, que não vem (a transcendência da igreja celeste), como a do seu chão de cemitério (na tradição antiga desses lugares totais), que não vai. Este álogon (este iniciático desconcertador da Razão) instala a estase como o estado, agora de espírito, e não de corpo, que permite, como se de um incoativo orante se tratasse, aceder a um vácuo místico que já não é contemplação nem rubrica de religião   – e esse o plano modal onde nos instalarmos para esta capela, a preparação para a entrada em visitação. 

Se em tal insistimos, é face à notória multiplicação ruidosa de ritmos visuais de vacilações e de tropeços (bobos de deus, loucos de tudo…), de movimentações responsoriais, nestas peças, que depressa convidam à enciclopédia da dissecação iconográfica.

Que abreviaremos. 

O que é uma igreja? Poderíamos dizer: um esqueleto externo. As ossadas desta ermida repetem no respectivo interior a externalidade esquelética que a ermida mesma é, e são já um interior que não causa obstáculo à entrada (mas os ossos causam-no sempre). Por outro lado, fieira de costelas, vertebração em túnel desajeitado, as balizas à escala humana, demasiado humana, ganham o exterior ao seu eco generativo (ou será ao seu paradigma eólico?) pictural, estabelecendo com ele uma relação que em primeiro lugar retoma a lição tratadística que divide em geometral e em perspéctica a tomada de vistas (que os ladrilhos de xadrez encimados pelos rectângulos abstractos a horizonte, de 99, ironizavam como tabuleiro não-perspéctico, pré-gótico), e que nesta ermida se reparte entre o geometral pictórico e o alinhamento perspéctico das balizas   – por outro lado encaminhando através de um percurso antropomórfico o visitador desde o fundo/céu caudal, passando pela floresta de braços em ‘senhor barqueiro’ (do Aqueronte) que formam o bojo toráxico do cetáceo de Jonas, até aos olhos de luz capitais que olham desde a noite mãe com olhar sígnico o nome da construção parteira da natividade de Belém – ou, se quiserdes, até ao altar mariano através do pórtico da iniciação ébria de lux tinta (os sistemas óptico-especulativos de potenciação que no Grand Verre espiritualizam as gotas desejantes até ao alto) vindas desde os painéis ‘secretos’ dos moldes que «abrem para obras» de imaculado conceptualismo este ermo da Mari(é)e viúva de todos os celibatários (la même!).

 

Belém Coffrage

  

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