and from the dust it shall return (2019)

and from the dust it shall return (2019), de Car­los Mensil (1988, Santo Tirso), é uma exposi­ção – instalação site-specific para a Travessa da Ermida. Na verdade, mais do que especí­fica ao espaço, esta exposição – instalação é específica ao contexto do lugar ou dos múlti­plos símbolos que a história do lugar convoca.

Quando entramos no espaço da Travessa da Ermida, começamos por ser confrontados com uma parede iluminada parcialmente. Se nos aproximarmos, poderemos ver uma espécie de desenho em tempo real e ouvir um som me­cânico num ritmo que adivinhamos aleatório. Se passarmos para a parte de trás da parede, descobrimos toda a estrutura de madeira que suporta a parede, um engenho com uma mola, uma esfera de íman que se move, roldanas, fios de nylon que vão deslizando, e ainda um peque­no motor numa caixa de madeira que parece emitir uma luz azul, que é, afinal, proveniente de um componente electrónico.

Esta descrição é, dentro dos limites do que estas palavras podem fazer, fiel ao que podemos ver e ouvir. Contudo, o mais interessante desta obra não é confiado aos sentidos mas sim à nossa experiência e à nossa memória (ou às nossas ideias) do que sabemos do lugar — estamos numa ermida, construída com uma função religiosa de capela de modestas di­mensões num lugar solitário — e dos símbolos que lhe associamos.

O primeiro símbolo chega-nos por via do título, and from the dust it shall return, na clara evocação Bíblica a “és pó e ao pó da terra retornarás” (Génesis, 3:19) (em inglês, “and to dust you shall return”). Para a Igreja Católica, Deus criou o Homem com a mesma matéria da Terra — pó: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (Gênesis 2:7). Mais tarde, Deus diria a Adão que “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” (Génesis, 3:19). Esta passagem da Bíblia diz-nos que retomaremos ao pó, na nossa condição finita, mortal e de­pendente de Deus. Já a frase que dá o título à exposição, na mudança semântica subtil que propõe, implica uma condição de circularidade infinita, de um retorno desse pó, matéria que é simultaneamente início e o fim.

E o pó, nesta exposição – instalação, é precisa e conjuntamente matéria e tempo. Na primeira sala, iluminada por uma espécie de monóculo alto que parece tomar o lugar de uma rosácea na capela, podemos ver um desenho a ser produzido em tempo real. Uma das primeiras impressões que temos de and from the dust it shall return é a deste movimento pautado por um som mecânico que, neste lugar, facilmente nos fará pensar num órgão. A imagem abstracta que se desenha em movimento, reminiscente dos princípios matemáticos que guiaram as primeiras abstracções geométricas e da arte cinética, nunca pára. Este desenho feito com pó constituído por pedaços de metais e de ímanes, restos recuperados de outros trabalhos já finalizados do espaço do atelier de Carlos Mensil cria assim, instantaneamente, uma re­lação com o título. Afinal, este desenho e, em última instância, este trabalho, regressou do pó, das partes mortas de outras trabalhos, para criar algo de novo.

Este processo de criação é motor para uma sensação de perplexidade e de estranheza — vemos o pó a desenhar na parede mas não vemos ninguém a controlá-lo, nem consegui­mos discernir-lhe um inicio nem um fim nem tão pouco um ritmo previsível. As tentativas de perceber quem ou o que determina o mo­vimento do desenho conduzem-nos ao altar, onde seremos guiados por uma luz branca interrompida. No conjunto com os azulejos, com a localização geográfica da ermida, e com o desenho que ainda que abstracto forma uma linha de horizonte com ondas, a luz tor­na-se símbolo do mar, nas suas implicações com o lugar do sublime, tão fascinante quanto angustiante. A partir do altar, são-nos dadas pistas a partir de um engenho mecânico, sem qualquer presença humana para o que acon­tece do outro lado da parede, quase como numa tradução visual da Alegoria da Caverna de Platão. Daqui, aparentemente, é-nos dada informação sobre a (primeira) realidade que podemos ver. Contudo, a correspondência entre os lugares apresenta-se mais misteriosa e desorientadora do que reveladora de uma qualquer resolução ou final.

E, em última instância, é desta sensação entre o fascínio e o terror por perceber o final (ou o que ou quem o determina) que and from the dust it shall return trata. Por mais livros — sagrados ou profanos — aos quais tenhamos acesso, continuamos sem resposta sobre o que é o final, o que é a morte. A aura de and from the dust it shall return reside assim nos símbolos que convoca mas também no efeito contradi­tório de transformar uma matéria — o pó — num significante. Assim, a exposição – instalação aponta para algo que escapa aos sentidos humanos, mostrando a quarta dimensão que Marcel Duchamp descreveu como aquilo que não podemos ver com os olhos*. and from the dust it shall return propõe deste modo uma al­ternativa ao ciclo finito que os nossos sentidos conhecem sugerindo uma condição universal e infinita.

Entre os binómios visível – invisível, material – imaterial, familiar – desconhecido, controlá­vel – incontrolável, a exposição – instalação cristaliza-se no domínio do sensível. E do pó voltará, uma e outra vez, e tantas vezes quantas a nossa mente (ou será alma?) permitir.

Luísa Santos

* Pierre Cabanne, Dialogues with Marcel Duchamp, New York 1979, p.40.

 

and from the dust it shall return

  • Carlos Mensil
  • 14 Setembro 2019 - 19 Outubro 2019
  • instalação
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