ASSIM VAI O MUNDO…

A Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa é uma instituição que sabe interrogar-se sobre as artes que fazem parte do seu contexto. A Pintura é uma área, juntamente com a Escultura e a Arquitetura, que a estrutura desde 1836. Por causa desta ancestralidade poderíamos pensar que já sabemos tudo acerca de cada uma delas e que bastará ensiná-las. Mas não é isso o que se passa na universidade. Neste local, o ensino fundamenta-se no estudo, na investigação e na proposição de soluções e respostas. Muitas respostas que, ano após ano, nos encantam, nos fazem pensar, sempre diferentes e novas, sublinhando o que já foi feito, expressando emoções do quotidiano, desvendando os caminhos novos que a tecnologia nos vai propondo, inventando soluções para o mundo ou respondendo às solicitações que os outros carecem.

Por isto, quando a Ermida nos coloca a possibilidade de promover um Prémio de Pintura numa exposição destinada exclusivamente aos Alunos da FBAUL, onde a Pintura seja o assunto em questão, a nossa resposta e a dos nossos alunos só poderia ser estar presente. E estiveram presentes vinte e oito jovens artistas, provenientes de diversos cursos, com variadíssimas propostas de alta qualidade, o que dificultou imenso a seleção. Por isto, em vez dos três premiados previsto no regulamento, foram premiados seis artistas, com uma exposição de grupo no singularíssimo espaço do Projeto Travessa da Ermida.

A globalidade dos trabalhos a concurso destes vinte e oito artistas, evidenciando em todos pensamentos intrínsecos à realização artística, cultural e social do seu tempo, possui também uma qualidade plástica com a indispensável capacidade de engajamento dos espectadores com as obras. 

Assim vai o mundo, poderia ser o lema que se vislumbra num conjunto de propostas onde prevalecem diversos olhares sobre a natureza com o sentido não da representação, mas do assinalar e do reparo. Olhares que produzem as obras de Damien Malard, Rute Norte, Matheus Novaes, Ana Moraes ou Vera Berimbau.

Um racionalismo compositivo, muito próprio da dicotomia entre a plasticidade da forma e aquilo a que ela se equivale, sentiu-se nos trabalhos de Beatriz Coelho, Diogo Henriques, Margarida Fernandes, Guilhermo Hitos, Gonçalo Graça e Almeida de Sousa. O factor humano do tempo presente está nos óleos sobre tela de Maryam Baydoun e nos desenhos de Olavo Costa, com preocupações extrínsecas na primeira e intrínsecas no segundo. Os universos intimistas, poéticos, filosóficos ou expressionistas, característicos da vivência e da sensibilidade humanas são constáveis nos trabalhos de Manuel Ferreira, Laura Caetano, Lúcia Fernandes, Heron Nogueira, João Correia, Aline Werner ou Monica Tchudichum. As coisas que a matéria faz e as naturezas moleculares da existência sente-se como mote nas obras de Rita Máximo, Mariana Pestana, Rita Paisana e Diogo Pereirinha. E constatamos a provocação, a ironia ou o humor nas obras de Andreia Silva, Francisco Tonelo, Pedro Tinoco e Susana Duarte.

Mas, de todo este conjunto, apenas seis artistas foram selecionados.

Aqueles que melhor se deixaram explicar com os argumentos da sua visualidade, da sua capacidade de partilhar ideias, pensamentos, experiências ou pontos de vista sobre as interrogações da vida. 

Assim vai o mundo…

Matheus Novaes argumenta o seu trabalho numa ligação muito íntima com a natureza. Grandes superfícies de cor, rasgadas por uma sinalética intrigante e enigmática, com imensas associações sobre estrutura, sobre simbologia, sobre o rigor expressionista do nosso quotidiano.

Ana Moraes mostra um conjunto de papéis pintados, desenhados, colados e anotados com a pretensa intenção de serem representações dos lugares que comandam a vida. Como mapas-múndi que indicam caminhos de ida e pontos de chegada, estes trabalhos são claros e expressivos e convidam ao repouso do nosso olhar.

Maria Máximo trabalha as coisas da matéria e da natureza em jogos texturais de equilíbrios, de pesos e tridimensionalidades assumidas. As coisas que as matérias fazem são a natureza de objetos compostos por sistemas de equilíbrios e de pesos, umas vezes possíveis, outras impossíveis.

Lúcia Fernandes constrói um universo poético, filosófico e expressionista, de amplas superfícies que no nosso olhar vão adquirindo as formas de uma ligação profunda entre a figura humana e o espaço que a envolve, evocando vazios intermitentes.

Maryam Baydoun manifesta sentimentos humanistas exprimindo os problemas sociais e humanos dos nossos tempos com um modo clássico de fazer, de carácter fidedigno com a realidade que representa. Servindo-se de si própria, questiona a estranheza de ser imigrante entre momentos de identificação plena e momentos de questionamento da sua identidade. 

Olavo Costa deixa-nos ver, de um modo discreto, mas também quase provocador, pronúncios de erotismos, representando estados de entrega ou de procura de prazer pela mistura de técnicas e materiais tipicamente associados ao desenho, mas com as largas pinceladas de tintas, vernizes e gorduras específicos da pintura.

Neste texto optámos por referir todos os artistas participantes, os selecionados e os outros, integrando todos num contexto único, através de um breve apontamento onde apenas se regista a sua presença e a sua disponibilidade para esta partilha, para este contributo. Com eles valoriza-se efetivamente este projeto, este concurso e os assuntos da arte na sua geração e no tempo presente.

E depois temos por fim, nesta exposição, os artistas selecionados pela plasticidade das formas, pelas estéticas resultantes das visualidades que nos oferecem, pelos pensamentos implicados e pelos contributos que deram para o arranjo do mundo sempre extremamente relevantes e imprescindíveis para que a humanidade seja humanidade.

 

Ilídio Salteiro

 

visita à pintura em seis variações

É com vivo contentamento que o Projecto Travessa da Ermida vê robustecido o projecto anual «alunos da fbaul na ermida – prémio de pintura», e consagrados os diversos propósitos e apegos, partilhados com a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, em que sustenta-se e, novamente, floresce.

No curso dos seus treze anos de actividade, o Projecto Travessa da Ermida é um espaço de convivialidades. É fulcro de afinidades e dissemelhanças em trânsito, é fronteira porosa a justaposições, em cada instante intímas e cúmplices. Orientado segundo critérios de pertinência, diversidade e oportunidade, procurando tecer nós e fios da teia artística e cultural contemporânea enquanto lugar de culto, que entrelaça os legados do passado, as experiências do presente e ideias de futuro, os desejos e triunfos do Projecto Travessa da Ermida são, não mais, os daqueles que edificam este lugar histórico, que é de todos, de criadores, de pensadores, de instituições, e de públicos, e que nele criam laços, e deixam testemunho da sua presença.

Endereço temporário dos mais prestigiados artistas nacionais da arte contemporânea, o Projecto Travessa da Ermida confia, com igual fervor e senso de responsabilidade, dever assistir a dinâmica e sustentabilidade do panorama artístico nacional. Neste sentido, toma papel, na sua medida, na eclosão e no esteio de artistas em formação e progressão do seu trajecto. 

Apresentando o trabalho de Ana Moraes, Lúcia Fernandes, Maria Máximo, Maryam Baydoun, Matheus Novaes e Olavo Costa, excepcionalmente alargando o âmbito da exposição, o projecto «alunos da fbaul na ermida – prémio de pintura» é resultado de um desafio proposto aos alunos desta faculdade, propondo a pintura como domínio central. Aos artistas que aceitaram o desafio, apresentando um conjunto de propostas de valor assinalável, agradece-se o empenho inerente à participação. Aos artistas seleccionados para a exposição, deixam-se congratulações pelo resultado alcançado. A todos, protagonistas da aventura da arte e da vida, cabem sinceros votos de sucessos e conquistas.

As seis abordagens distinguem-se no modo próprio como respondem ao desafio da pintura enquanto modalidade exordial de expressão e representação humanas, sujeita a uma imensidão de transformações históricas. Na sua diversidade formal e temática, que muito enriquece a exposição, encontram-se distintos diálogos com a história recente da pintura, suscitando uma visita breve ao complexo labiríntico e à exuberância temperamental das vanguardas do século XX. 

Unindo os trabalhos apresentados nesta exposição encontra-se o fundamento artístico que o modernismo instaura, e que persiste hoje. O que está em questão, na pintura, e na arte, é a emancipação da representação perante a realidade, e não uma mimetização. É um ardor, um alvoroço. Decisivamente pessoal, é um desvio ideográfico e simbolista. É um excesso ilógico, a febre poética. É um mistério encantador ou perturbador, porém não a deferência reprodutiva ou narrativa, mera intumescência e ilusão. O que está em questão é a infusão da ideia e da emoção na matéria, a infiltração do indivíduo e da vida na pintura, e na arte. 

Neste sentido moderno, todos os trabalhos entrelaçam a expressão da emoção dramática, da profundidade subjectiva de sentimentos e pensamentos complexos, e a impressão de uma experiência momentânea, da sensação fugidia capturada em flagrante no instante em que se dissipa. Actualizando temas do quotidiano introduzidos na segunda metade do século XIX, tais como a cidade, o erótico, o íntimo, o natural, o objecto, os seis artistas adoptam motivos do século XX, e transportam-nos para a esfera pessoal, tais como a experiência e a performatividade do corpo em relação com o espaço, o refúgio protector da memória perante a angústia da ausência e o transtorno do estranho, a condição e a consciência do homem perante a ininteligibilidade das suas transcendências, o mergulho nas arbitrariedades ilógicas e automatismos insondáveis da inconsciência, o conflito natural ao jogo relacional entre declarações auto-conscientes de identidade e dinâmicas de controlo e domínio. 

O primeiro compasso da exposição induz a evocação de Guillaume Appollinaire que, em 1913, sob o título Les Peintres Cubistes, algo equívoco porém completado pelo sub-título Méditations Esthétiques, afinal compila reflexões críticas sobre a arte em geral enquanto, e não apenas, desfia o ânimo cubista, e, sobretudo, incita os pintores à apropriação de qualquer material ou objecto existentes, nobres ou vulgares, extravagantes ou banais, desde recortes de jornal ou cartazes, cordas e tecido, qualquer um enfim, até mesmo sangue e excrementos, e à sua coexistência com a pincelada a óleo sobre tela. Na pintura, pela poesia, está suprimida a compartimentação artística historicamente instituída, e descerrado o caminho da collage, e, logo depois, ampliando o universo material, em composições desafiando as duas dimensões e a apresentação mural, da assemblage

Desconcertante descodificação da experiência sensorial e do arquivo pessoal na liberdade do instinto e na apropriação do mundano, Maria Máximo recorre à aleatoridade experimental e à descoberta súbita, aos princípios da estranheza, da inversão dissociativa, da ausência de nexo, do acidente, do absurdo, da descontinuidade, que, tanto ou mais do que na popularização do ready-made, a pintura, a collage e a assemblage da energia pulsante e inconsistente das múltiplas e incoesas manifestações do fenómeno dadaísta instauram, e segundo estes princípios, aproxima-se da hibridização entre pintura e escultura da combine painting, como tentativa, ou metodologia, de entendimento do seu mundo. 

Revelando carácter documental, as pinturas-collages de Ana Moraes sugerem misteriosas cartografias da tangibilidade de espaços e do desvanecimento de vivências, segundo adjacências e associações de fragmentos, ecoando a decomposição espectral do modo de ver a realidade do cubismo analítico, reduzida ao ritmo e equilíbrio de assimetrias ortogonais da elementaridade geométrica afecta ao neoplasticismo que o expande em abstracção, porém renunciando à cor sólida, e arquivando a documentação do vestígio no expressionismo gestual das manchas, em padrões turvos, em texturas erodidas, em cores esmorecidas de uma palette austera.

A violência de Lúcia Fernandes sobre o suporte, imposta pela acumulação de matéria e a destruição pelo fogo, adapta, salvaguardada a cautela face à dissemelhança formal, os conceitos investigativos do espacialismo, o qual, através de espessos empastamentos, de perfurações e rasgões pontuais, explora o espaço além da superfície, porém neste caso orientando-se segundo um intencional expressionismo, que agrava as trevas de um fundo tenebroso, de agonias que pairam como fantasmas da mente atormentada sobre o próprio corpo que aprisionam, desenhado, em contraste cromático abrupto, pela ferocidade do traço, que lhe fere a carne, restanto apenas a solidão de um olhar, entre agonia, apelo, e esvaziamento. 

Apresentando pinturas de Matheus Novaes, Maryam Baydoun e Olavo Costa, no seu caso em aproximação ao desenho, o segundo momento da exposição é dedicado aos suportes, materiais e técnicas mais convencionais da pintura, sem, no entanto, atenuar a natureza modernista dos temas, motivos e composições. 

Em óleo sobre tela, Matheus Novaes apresenta trabalhos que apenas na escassez de elementos compositivos sobre o fundo das composições abstractas e na redução da forma à simplicidade de segmentos lineares poderão ser tomados como minimalistas, visto que, na aproximação corporal do espectador ao grande formato, fundos e formas contrariam a literalidade e essencialismo racionais, o purismo extremo em que a forma é a forma, a cor é a cor, e deixam descobrir a subtil ausência de monocromatismo e a suave atenuação de contorno, a presença de estratos de gestos quase ocultos, e constituem-se linguagem codificada, que presta-se a interpretações e subjectividades ausentes do campo visual.

Igualmente em óleo sobre tela, como estratégia catártica da experiência pessoal, Maryam Baydoun encena dramaturgias líricas com intensa carga emocional, compostas por uma figuração expressionista na qual a performatividade das personagens, centrada no simbolismo dos gestos e nos figurinos, e os corpos em acção destacados do fundo ambiental, em formas acentuadas pelas densidades e profundidades cromáticas, atraindo e capturando o olhar pela ausência de transições claro-escuro, de luz incidente e de sombra projectada, intensificam a sugestão, por um lado, de vulnerabilidade e fuga, e, por outro lado, de protecção e segurança. 

Sobre cartolina, em carvão, pastel seco e tinta acrílica, o díptico de Olavo Costa adopta a referência histórica do nu feminino, em languidez ou sedução perante um espectador ausente da composição ou o observador transportado para o interior da cena, e, com uma gestualidade informal, privilegiando a linha na expressão da anatomia e manchas vazias, esbatidas ou preenchidas, de um cromatismo sóbrio, no cenário que envolve a figura, manipula e conduz o olhar, explorando manchas de borrão, linhas finas quase só esboçadas ou traços grossos e vincados, tornando incógnita a identidade do modelo para destacar a temática do objecto do desejo, deslocado por insinuação de um jogo mental.

 

Ricardo Escarduça

 

alunos da fbaul na ermida – prémio de pintura | 2ª edição

  • Ana Moraes, Lúcia Fernandes, Maria Máximo, Maryam Baydoun, Matheus Novaes, Olavo Costa
  • 24 Julho 2021 - 4 Setembro 2021
  • Pintura
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição
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