Paisagens, Paradigmas e Poéticas.

A primeira edição do Prémio da Travessa da Ermida teve vinte e três concorrentes dos quais o júri selecionou três vencedores aos quais correspondem três obras de grande qualidade que apontam para diferentes zonas da pintura: a paisagem, a figuração humana e a sua dimensão poética.

Foi uma seleção difícil pela elevada qualidade das propostas apresentadas, todas elas demonstrando que o universo da pintura está ativo, refletindo sobre o universo do pintor, do artista e do homem que continua a servir-se da Pintura para se interrogar perante o mundo.

No total foram vinte e três artistas em início de carreira que procuram no âmbito universitário os contextos culturais que fortaleçam os seus projetos artísticos. São artistas que dedicam a sua vida à causa da Arte investindo numa formação complexa envolvidos nas motivações, nos questionamentos e na procura de soluções tal qual pontes para os tempos que projetam o futuro.

Estivemos perante resultados obtidos através de múltiplas prospeções, concluídos e concretizados em obra que, para além da sua dimensão física, caracterizada pelas matérias que as constituem, transporta consigo a dimensão conceptual ativa capaz de desbravar outros caminhos civilizacionais. Uma dimensão conceptual liderada pela sensibilidade humanista, pela dimensão imaterial das ideias e pelos desejos inerente à Vida, de fazer mais e mais fazer num crescimento constante.

Os três artistas selecionados foram Bárbara Faden, João Motta Guedes e Madalena Hipólito.

Bárbara Faden porque apresenta um conjunto de três pinturas, todas com uma paleta de tonalidades quentes, mas suaves, que aparentam abstrações. Mas em vez disso permitem-nos sentir campos visuais, velaturas de tempos diferentes sobre um mesmo espaço, sobreposições que acentuam transparências e profundidades, horizontes recortados por formas arquitetónicas ambíguas. Serão três hipóteses de paisagens que acentuam o nosso posicionamento e mostram o presente como um perpétuo palimpsesto. Apagar, ocultar, refazer e reconstruir são o processo que Bárbara Faden nos evidencia quando nos cita Italo Calvino nas Cidades Invisíveis:

 “São as formas que a cidade poderia ter tomado se não se tivesse tornado, por uma razão ou por outra, como hoje a vemos.”

Madalena Hipólito porque investiga a questão do modelo. Os modelos como arquétipos e paradigmas em rutura e em reconstrução permanente.  Num espaço pictórico composto por um complexo traçado geométricos de linhas, que nos aproximam dos espaços vetoriais de Francis Bacon, verificamos que seccionam o espaço ligando plinto, ecrã, projetor e estirador, quatro elementos que envolvem o artista e modelo num ambiente de investigação, característico do espaço laboratorial do atelier do artista. Estamos perante uma obra que transporta consigo uma dimensão autorreflexiva, repensando a relação entre ser artista e fazer arte.

João Motta Guedes porque mostra um rolo desenrolado. Um rolo onde vemos texturas, cores diluídas, grafismos e caracteres que denunciam a existência de uma mensagem inaudita.  É como um objeto arqueológico de um outro tempo de um outro lugar com um conteúdo subjacente, mas não evidente.

O escrever e o desenhar fundem-se neste trabalho quando a hipotética escrita não se descodifica. O desenho e o caracter indecifrável são os meios essenciais para a construção desta obra que o seu autor intitula, escrevendo o poema infinito.

A pintura é uma Poesia silenciosa e a Poesia é uma pintura que fala”. Simônides (sec V a. C.)

 A atividade artística não pode ser vista exclusivamente como uma atividade técnica. O trabalho dos artistas, e logicamente o trabalho do pintor, longe de ser trabalho de malabarismos e habilidades formais onde o belo é frequentemente o objetivo mais sublime, é sobretudo um trabalho de prospeção, de pesquisa e de estudo sobre a Vida no Tempo Presente. É também uma apresentação de propostas que abrem possibilidades efetivas para a resolução dos constantes problemas da Vida e da sua manutenção como ecossistema. E as propostas que vislumbramos nas obras de Bárbara Faden, João Motta Guedes e Madalena Hipólito vão no sentido de repensarmos as paisagens onde vivemos, de nos confrontarmos com os paradigmas socioculturais que nos afetam e de percebermos que os atos da pintura pressupõem uma dimensão poética essencial à Vida e à Arte.

 

Ilidio Salteiro

 

um percurso sobre a pintura

contemplação e introspecção, imagem e palavra, representação e percepção

A exposição “alunos da fbaul na ermida – prémio de pintura” concretiza o desafio proposto aos alunos desta instituição na forma de um concurso aberto – a celebração da Pintura no séc. XXI, e da Arte enquanto actividade vital ao Homem. Perante todas as transformações que a História da Pintura encerra e, mais especificamente, as possibilidades conceptuais e técnicas abertas pelos vários movimentos nos últimos cento e cinquenta anos, pintar é perspectivado como um estimulante acto de coragem.

As propostas apresentadas denotam diversidade técnica e profundidade temática de grande vigor e irrequietude, um impulso criativo face à tradição tanto quanto a seriedade dignificante perante esta mesma, impregnando o processo de escolha por um oxímoro de empolgante pesar, em virtude da qualidade dos trabalhos propostos e da inevitável exclusão dos preteridos. A decisão recai sobre Bárbara Faden, João Motta Guedes e Madalena Hipólito, nos quais realçam-se as opções artísticas que, pela Arte, envolvem e cativam sensorialmente, e fazem sobressair e reflectir sobre problemáticas e anseios do Homem.

As paisagens de Bárbara Faden transportam para um imaginário desamarrado da realidade e da materialidade. Na sobreposição de planos, horizontes e céus, nas formas simplificadas e detalhes evanescidos, na réstia de vivacidade retida no esmorecimento da cor, na economia material sobre a tela, está a erosão de tempos e lugares, e está a sedimentação de histórias e memórias. Estas paisagens circulam entre o figurativo e o abstracto, erodindo as paisagens que a artista olhou para sedimentar paisagens que são olhadas por outro. Íntimas e pessoais, nostalgicamente algures e em algum momento. O olhar sobre a paisagem nunca é bucólico e plácido. Conflituoso, é disperso e centrado. Neste olhar reside omnipresente uma pulsão metareflexiva do Homem perante paisagens interiores e exteriores.

Em De Natura Deorum, Cícero aponta uma alteram naturam, a segunda de duas naturezas. A paisagem alterada pela presença humana pressupõe uma natureza outra, que lhe é anterior, pristina e virginal. A contemplação da paisagem coloca o Homem perante as ambiguidades da sua existência e as alteridades que a transcendem, e que a tradição da pintura representa na mácula da sua acção, e na inevitabilidade da morte eterna, na efemeridade da impressão fugaz, na insuperabilidade da força sublime, na imaterialidade do divino e do mitológico. Das paisagens de Bárbara Faden ecoa esta incessante busca introspectiva, a do Homem perante ele próprio e o mundo.

Da mancha no fundo cromático, terrosa e embaciada como o solo de um lugar intemporal que se estende entre porvir e memória, ardida pelo instante e regenerada pela constante que acolhe, que a risca, que nela se inscreve, sobressai o gesto de João Motta Guedes. O seu desenho escrito, poema desenhado, não está desamparado de um código que torne o discurso discernível. Nesta gestualidade encontra-se a busca histórica pela conciliação quimérica entre a imagem e a palavra. A fraternidade entre as artes da imagem pictórica e literária consagrada por Simonides de Ceos, e, no escorrer do tempo, por Horácio, Da Vinci ou Van Gogh, é assinalada pelo poema infinito que João Motta Guedes pinta. Perante este, a retórica desloca-se da poiesis própria ao pintor e ao poeta para a arché necessidariamente universal ao artista, e à obra de arte.

João Motta Guedes invoca esta anterioridade do artista e da obra. Das convenções de forma, matéria, meio, e código. O porvir da criação é o impulso do artista sonhador em gerar e expressar, em declarar e questionar, em organizar e desalinhar. A obra encanta e perturba, surpreende e ilude, contamina e purifica. Primordiais na edificação, documentação e conservação do ser do ser-humano, enriquecem a vida. Elevam a realidade no mistério e na ilusão das metáforas e dos símbolos, e iluminam o invisível e o indizível. Tal como o poema infinito de João Motta Guedes, a intemporalidade desta arché alonga-se e dobra-se desde um ontem e perdurará em um amanhã, entre ambos escondendo-se e revelando-se nas curvas dos tempos e dos espaços vividos.

Em cores densas de uma profundidade bidimensional, corpos texturados distantemente antropomórficos, e uma arquitectura linear de planos de luz, Madalena Hipólito organiza uma encenação onde narrativas sincrónicas e diacrónicas se intersectam. Evocando o pictorialismo do sonho Freudiano, todo o ambiente é deslocado para uma surrealidade distorcida e poética, carregada de fragmentos simbólicos e reminiscientes que se interpolam entre nexo e absurdo. A temática do modelo, representada pelo artista que desenha um detalhe eleito do modelo que se desnuda na privacidade do atelier, sugere uma psicologia do fetiche permeando a intimidade entre ambos. Rompendo o espaço, num plano é projectada a própria encenação em curso, introduzindo um paradoxo temporal que sublinha um certo carácter distópico pela interferência da tecnologia.

O contrassenso é acentuado pela inscrição por Madalena Hipólito do questionamento do fazer artístico e do emprego de materiais e processos tradicionais e tecnológicos na sua própria pintura, indicando porventura um questionamento do seu próprio processo. Por outro lado, esta investigação suscita também uma ampliação do domínio da arte para fenómenos culturais contemporâneos generalizados tais como a simulação e o simulacro de Baudrillard, questionando a verdade, a existência, a representação e a percepção.

 

Ricardo Escarduça

alunos da fbaul na ermida – prémio de pintura | 1ª edição

  • Bárbara Faden, João Motta Guedes, Madalena Hipólito
  • 20 Agosto 2020 - 5 Setembro 2020
  • Pintura
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição
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