Vicente Alegria
ou a cor do pensamento

As long as intelligence is sealed up by banality, people are not interested in their place, which seems given; they fix their imaginations on the ghost lights that appear to them in the form of names, identities and businesses. What recent philosophers have termed forgetfulness of being [Seinsvergessenheit] is most evident as an obstinate willful ignorance of the mysterious place of existence.

Peter Sloterdijk

Alegria no projecto, desejo de existir

A reflexão que Espinosa faz sobre a Alegria inspirou o VICENTE deste ano. O Marrano de Amesterdão (1632-1677) aliou uma crítica da Bíblia, fundamental para o Iluminismo, ao rigor científico no conhecimento do corpo e da mente humanas. Inventou uma sabedoria ancorada no contentamento sensível, qual economia de afectos que, integrando corpo e alma nos conceitos, nos permite apropriarmo-nos do que é contingente. No limite da heresia, contestou a ideia de que liberdade e necessidade estão em conflito, colocando o homem no coração dessa emancipação. Sob o olhar de um Deus que é tudo mas não julga, limitando-se a acompanhar-nos nas nossas conversas sempre inacabadas, a sua Ética é um tratado que ainda hoje ilumina – esclarece – a nossa Humanidade. Sobre Espinosa, a quem chamou ‘Príncipe dos Filósofos’, disse Gilles Deleuze: […] vivente-vidente, polidor de lentes, advogado das alegrias dos entes, entusiasta de tudo que nos liberta das correntes, as de ferro e as da mente! […] é um aliado na ampliação actual de nossas potências e na expansão da nossa lucidez!
Para Espinosa estarmos aqui é perspectivado como conatus, a experiência de um esforço, de um combate em que tomamos consciência de que a essência actual de uma coisa não é outra que o seu poder de agir (agendi potentia) ou força de existir (existendi vis). Estamos vivos na exacta medida em que nos esforçamos por existir o mais e melhor possível, e isso está em oposição a tudo o que nos reduza a existência. Ora são três os afectos primitivos: desejo, alegria e tristeza. Esta última coincide com uma perigosa redução da força de existir. Ao contrário da alegria, a tristeza ou o ódio nunca são bons.

Espinosa diferencia depois afectos passivos e activos. Nos primeiros somos presas de paixões, abandonamo-nos às coisas exteriores. Nos segundos passamos à acção, tornamo-nos causa adequada. Somos mais. Pois então, em sintonia com este Espinosa que contribuiu para tornar possível a transição dos afectos para as acções, assuma a transmutação S. Vicente/VICENTE o seu estatuto luminotécnico, alumiando a jornada que nos espera (assim a tornemos nossa). Desejo é termo-chave em tal empresa. O desejo, e não a razão, é o que está no fundo do nosso ser, o que é realmente válido na vida de cada um, como na de todos nós em conjunto. Um país sem desejo é uma bruma sem figuras recortadas no horizonte. Sem critérios de humanidade, sem capacidade de julgamento e avaliação. Sem afectos e sem legitimidade para aceder a uma liberdade autêntica.

Ao nosso mártir Vicente, talvez acompanhado por Sta. Luzia fica muito bem abençoar-nos na celebração de todas as cores do real. Todas essas cores com que nos brinda o mundo, iluminado pela luz. Toda essa alegria que se constrói na indeterminação do desejo, do sonho, do horizonte entrevisto pelo edificar da alegria . No VICENTE, a arte é da ordem desta ensaística total, mais em processo de criação da sua identidade que no fechamento escolástico de um objectivo imediato. É uma arte particularmente atenta aos lugares que os humanos criam para que tenham onde aparecer como são.

Mitologia(s) contemporânea(s) – o prazer da potência

Numa obra recente , João Barrento dedica um conjunto de ensaios aos desafios da contemporaneidade. Pode ler-se: […] da obscenidade do mundo contemporâneo fazem parte, tanto o regresso do discurso político que usa Deus em nome da Guerra, como as muitas formas de ruído e desconversa que desconhecem e agridem o «mais íntimo sentimento do eu». Barrento refere-se às mensagens que ignoram o tempo lento que o discurso interiorizado exige para lá dos gritos estridentes da palavra desamparada. Hoje a cores e alta resolução – como ontem num trágico preto e branco – o tempo de VICENTE responde à chamada indo de encontro a uma ideia do filósofo Peter Sloterdijk, que defende que os heróis da história não são os homens, mas os ritmos e as forças do nascer e do pôr-do-mundo, onde os homens encontram o seu lugar. O que nos revela isto quanto ao papel do mito no quotidiano? E da arte face ao mito? Que ou sabemos ler nas entrelinhas do ruído do tempo, ou estamos perdidos no deserto de histórias mal contadas.

A mitologia é um veículo por excelência para nos conscientizarmos dos limites das múltiplas racionalidades separadas que atabalhoadamente nos definem a vida de todos os dias. Schlegel, em 1800, no seu discurso sobre a mitologia, notava nessa viragem de século a falta de um centro mitológico para os emergentes paradigmas políticos e estéticos: qualquer coisa como a mitologia para os Antigos. Advogando o monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte, a sua proposta de uma nova mitologia, ao serviço das ideias, uma mitologia da razão (Barrento) continua válida. Perante o fascismo da vulgaridade (Agamben, em A Ideia de Europa) seja hora de nos lançarmos a uma nova mitologia que ligue passado e futuro, e não necessariamente por esta ordem. Ela vai ajudar-nos a dar sentido ao que Blake um dia chamou o pormenor diminuto.

Portanto sim, o mundo está cheio de deuses, ainda bem: rebentos-Filhos anunciadores de mudanças, invenções, avanços, que deixam para traz os caules secos das figuras Pai, mas sem renegar em absoluto essa herança (Barrento). Sempre foi assim, sempre foi assim, sempre foi assim, mas está a ser diferente (Sérgio Godinho). Agora, que o formato e a informação se transformaram numa nova metafísica em que o suporte substitui a substância, qualquer nova e provisória síntese aponta à uma nova ordem mitológica. A biopolítica do agora que a corrida estoirou – e os animais se elevam no esforço (António Manuel Ribeiro).

Este universo fractal (de que o parágrafo anterior, como se vê, não sai incólume!), transforme-se o quanto antes numa tensão habitada pela despossessão (uma ideia que Silvina Rodrigues Lopes desenvolve a partir dos textos de Maria Gabriela Llansol). É no seu seio que podemos rejeitar o lamento e conspirarmos para reinventar o destino. Individuarmo-nos, individualmente mas também como comunidade, como diz Bernard Stiegler ao explicar como se tornou filósofo. Assim saibamos viver as intensidades e as paisagens, expandindo-as do mundo conhecido e visível para o possível e o provável. É aí que o texto e o gesto são o imemoriável da alegria (Manuel de Gusmão, cirurgicamente evocado ainda por João Barrento).

Equações de cor: das palavras aos actos

Traço as equações que definem a geometria desta edição. A primeira: VICENTE é cor, a luz sobre as coisas. O mundo aparece ao VICENTE deste ano como a festa da renovação dos nossos votos com o mundo. As coisas do mundo. O mundo das coisas. A cor, latente, presente, ausente, impondo-se, esgueirando-se na sombra, é da ordem de uma radical abertura ao sensível – em perigosa mas decidida proximidade com o fáustico feeling is everything. Como se a cor fosse a emergência dos corpos físicos em todo o seu esplendor – por oposição ao preto e branco, linguagem do desenho que por contraste é da ordem do estrutural, da análise, do esquema. No compromisso com o vazio que nos abra o horizonte, a cor tem sobretudo uma tradição de comunicação irredutível e ostensiva. Mesmo quando o seu uso é mais diagramático (sinalética) que pictórico (pintura), essa cor fala do mundo em que vivemos.

Há de facto possibilidades (e limites) da cor que a tornam um factor peculiar de conscientização do tempo histórico. Michel Pastoreau aponta várias direcções de reflexão, asseverando que a cor é uma construção cultural, complexa e rebelde a qualquer generalização, senão a toda a análise. A cor não é um fenómeno apenas físico e perceptivo, é um facto de sociedade, não existindo como verdade transcultural (o contrário do que afirmam aqueles que para o autor se apoiam num saber neurobiológio mal-digerido ou, pior, numa psicologia de pacotilha e pendor esotérico). Demonstrar a importância da cor no nosso contrato com o mundo, investigar as cores antigas e novas de Vicente em VICENTE é então, ao limite, da ordem de uma diagramática total. No espaço social e urbano, o questionar das ideias feitas que podemos identificar na arquitectura e na paisagem, e claro, na publicidade ou na sinalética, formas actuais da heráldica.

Isto é, se a cor é objecto histórico (Pastoureau), então o darmos cor ao Vicente noir et blanc da simbólica vigente – eram gironadas de branco e negro, as velas da barca da frota dos Templários, possuidores da Tradição Hermética que conduziu o féretro de S. Vicente até à catedral… – é menos irreverência que elogio de sua potencialidade de representação meta-diagramática. Esta é uma operação de apropriação que, no fundo, procura a luz certa para olhar o mundo sob a lente vicentina. Isto sem escamotear (como faz o artesanato urbano que tem colorido figurinhas de Sto. António) o facto de, na cor, todos os materiais, técnicas, químicas, iconografias, artisticidades, simbólicas – se colocarem em simultâneo. Ora a cor na cidade representará mesmo, nestes termos, a resiliência da própria arte actual (saboroso termos que os franceses chegaram a definir o que é hoje l’art contemporain) à sua reificação como fetiche e produto?

Giusepe Di Napoli, num texto pouco conhecido entre nós , é fundamental para retermos mais algumas ideias sobre a transição de VICENTE do P/B para a Cor. Confirmando (os limites d)a lógica iconográfica vicentina, Di Napoli lembra-nos que o contraste nunca é exactamente entre o Preto e o Branco, mas entre duas cores que se complementam (uma o negativo da outra, outra fundo da primeira), em dança simbólica capaz de acentuar o contraste de identidades. De resto, o ‘corpo negro’ é um objecto teórico mais do que matérico (ninguém jamais poderá ter visto o negro absoluto). Da mesma forma, nenhum branco poderá ser pura intensidade da luz. Noutra perspectiva, o contraste branco/negro coloca problemas diferentes daqueles que surgem com os contrastes cromáticos, em particular com as cores complementares. Isto é, o contraste monocromático e acromático (tão típicos do Vicente histórico) tem funções e significados perceptivos incomparáveis com os contrastes cromáticos que o VICENTE contemporâneo ora propõe, desde logo na sua imagem em 2013. Foi um jogo laranja-verde a tensão cromática pela qual nos decidimos, talvez numa tentativa mais ou menos explícita de… tropicalizar a nossa modorra.

Repare-se: uma cor, aqui como noutro lugar, nunca vem só; o seu sentido é pleno apenas quando a cor se encontra em oposição a outras cores. O que torna tudo isto mais complexo – e fascinante – é o facto de a nossa ideia sobre cada cor mudar constantemente, logo também a nossa percepção dos contrastes e da sua significância. E de facto, noções como as de cores frias ou quentes, primárias ou complementares, de acordo com classificações do espectro ou do círculo cromático, as leis da percepção ou do contraste simultâneo, não são verdades eternas, mas sim etapas da história dos saberes. Na Idade Média, o azul – do mar, do céu… – era considerado uma cor quente, senão a mais quente das cores. Mais, duas cores justapostas, e que hoje nos pareceriam fortemente contrastantes, poderiam entabular uma suave vizinhança; e inversamente, jogos de cores que hoje encaramos como discretos poderiam ser considerados ‘berrantes’. Curiosamente, associar o amarelo ao verde – como faz o VICENTE deste ano! – correspondia na Idade Média ao contraste mais violento: usava-se para vestir os loucos e sublinhar comportamentos perigosos, transgressores ou diabólicos! As coisas que a cor nos diz, em função de como a vemos no mundo!

A verdade é que continuamente atribuímos à cor as funções primeiras de classificar, marcar, proclamar, associar ou opor. É o caso da heráldica, em que, antigamente em bandeiras e uniformes, e hoje em sistemas de sinalização, emblemas desportivos, etiquetas, logotipos e insígnias de toda a natureza, as cores, sempre num número limitado, são utilizadas com uma enorme precisão cromática, segundo a qual várias das combinações possíveis são excluídas. VICENTE ’13 regista esta mitogenética da cor em todos os contrastes, e não esquece que há também na cor uma resiliência específica, resiliência de que a pintura será um espaço de expressão irredutível. Mas VICENTE tem porém uma agenda, a da publicitação da arte, e isso convive sobretudo com a noção de que, não menos que conceitos de comunicação e funcionalidade condicionam a nossa experiência estética (e claro, sendo aquelas por esta condicionadas), é a sociedade que faz a cor do mundo. É neste território metateórico que VICENTE associa a arte à alegria e o mundo à cor, não menos que a alegria à cor e a arte ao mundo.

(Dois) artistas do mundo

Nos idos de 400, já o romano Prudêncio, o primeiro biógrafo e vate do mito vicentino, sintetizava ao que vem a figura do mártir Vicente: O torturado tem mais coragem que o torturador. Hoje, numa situação política e social… complicada…, o mote pode sofrer uma variação no sentido de uma mesma-outra determinação: estamos cá todos para resistir. E Resistir é vencer! (José Mário Branco). Um célebre texto de Kafka, O Artista da Fome , é notável retrato do que na acção artística é indestrutível: a sua invencível necessidade. A arte necessária dos dois artistas convidados para intervir à Travessa da Ermida é desta ordem de grandeza, necessária, mais do que urgente. Num lugar solar – Belém – traz a festa do compromisso com a paixão activa, um encantamento a que temos direito – algo que para Sloterdijk se tornou um dever. É neste lugar de acção que a imaginação há-de fundear.

Xana chega do Algarve. Vive no perímetro de cativação de um dos mais fundamentais lugares de memória da cultura portuguesa: Sagres, símbolo de transitoriedade e de passagem, banhado pelo mistério das incertezas oceânicas (Paulo Pereira). Na obra de Xana para o VICENTE, esta noção de transição manifesta-se no reduto da comunicação, a palavra, sob a forma de mensagens crípticas na esfera pública. São mensagens cujo sentido eventual decorre da vontade do transeunte lhes reconstruir um futuro na intimidade, primeiro da leitura individual, depois de debate que se lhe segue, ambos motivados, (des)orientados – desconversados – pela resiliência cromática.

Em trabalhos anteriores, Xana tem carregado de uma enérgica cor as suas construções efémeras. Recorrendo à acumulação arquitectural de objectos de plástico retirados do quotidiano – caixas de plástico, baldes… – Xana edifica casas, castelos, torres, muros. Em todas as peças a cor é uma dimensão de dasein que arranca aos transeuntes uma emoção irremediavelmente lúdica em que se descortina uma profunda reflexão sobre a utopia. Para o VICENTE o artista desenvolveu um projecto de comunicação urbana que atira palavras (de [des]ordem) à rua, numa espécie de sinalética. A complexidade caótica da cor na palavra tipografada torna-se então um elogio do irredutível na própria leitura; o povo a interpretar estes dí(s)t(ic)os lê menos palavras e sobretudo um horizonte discursivo. A obra é um jogo linguístico que convida à desconstrução das ideias. O sistema sígnico típico da informação urbana (a parte racional do mundo das imagens, Di Napoli) transforma-se assim numa partida visual, tornando polissémico aquilo que à primeira vista seria mais uma qualquer intromissão da linguagem publicitária no espaço público.

Regis Perray chega de França. À La découverte du Portugal. Ao encontro dos seus antepassados, uma família do Porto (Perray é evolução etimológica de… Pereira). Perray traz-nos o terroir de paragens em que S. Vicente anda de cacho de uvas na mão, protegendo os vinhateiros das geadas de Janeiro. Inscritos no corpo e na biografia do artista, um acervo de gestos solitários e concentrados, a que podemos aceder através de um pequeno dicionário dos seus termos-chave . Aí lemos, acerca do ‘Céu’: Je n’irai pas au ciel, je veux rester sur terre. Sur l’herbe des prés, dans la tourbe des marais, dans l’eau de la Loire et de l’Atlantique; do ‘Crente’: Chrétien peut-être, catholique jamais, mystique je ne sais pas. Sainte-Marie est là, apaisante et sereine, c’est le plus important ; das ‘Velas’: J’allume toujours deux cierges dans les églises, un pour les morts et un pour les vivants. Deux lumières pour être bien ensemble. Ou finalmente da ‘Cor’: Je n’étais pas une couleur, je suis devenu blanc à Kinshasa. Como podem ser subtis as derivas a que somos atraídos ao encontro da nossa identidade!

Sob a forma de acções registadas em vídeo, fotografia e notas de produção que são programas de vida, Perray empreende uma espécie de nano-filosofia (se considerarmos, de novo com Sloterdijk, que é a filosofia que ensina a inteligência a aprender como as suas paixões vão ao encontro de conceitos). São acções-rituais de limpeza, restauração, cuidado, ostentando um envolvimento tão íntimo quando total com a monumental pequenez do mundo. Têm a capacidade de fazer acontecer o humano no esplendor – ridículo, se formos a ver o seu alcance limitado – de um engajamento com a cidade. A sua ‘imagem de marca’ para VICENTE é aliás uma foto em que o artista se dirige para Portugal montado num vigoroso… rolo compressor. Se houvesse isso de um santo-artista contemporâneo, este performer novo-vicentino, aí estaria para anunciar uma novel fórmula de religio . É esse o poder de atracção destes actos únicos que o são noutra economia, nos antípodas, mas ao fim e ao cabo tão perto, dos do português-de-orgulho-anão .

As bandeirolas grafo-visuais de Xana dão cor ao texto da cidade, no lugar semprinicial que é o eterno recomeço da leitura. Perray re-enacta a Grande Tradição sob a forma de gestos simples de cuidado do mundo material, sem outras regras que as da sua responsabilidade limitada. Xana poeta linguisticamente; Regis inverte a noção usual que temos da escala das coisas. Na prática, são dois modelos para o alimento da convicção. Onde Xana é a capacidade de dizer a palavra na mais luminosa ingenuidade (estou a pensar na definição de Ernesto de Sousa); Perray interpreta em acto uma simbólica urbana de renovação (senão ressurreição) sócio espiritual, a sabedoria. Verbo e sabedoria, juntos, são duas vezes grandes. A vontade de ser – aliada a um vazio-secreto que seria, numa lógica hermética, o seu sentido oculto – é a arma que a resiliência da arte tem para estender a sua influência propedêutica a um horizonte que salve. É ela que nos faz vencedores, já, aqui e agora. O desafio do desassossego em VICENTE seja dar cor a este redesignar da esperança.

Cidade celeste

Quando Regis encaixa fachadas de imponentes igrejas lisboetas no corpo de velas originais que será preciso apagar antes que a chama toque os telhados das igrejas nelas representadas, este é o tipo de acto que tem a ver com a Poesie retórica que Voltaire desenvolve no seu poema acerca do monumental terramoto que arrasou Lisboa em 1755 . A dada altura, aí podemos ler:

O passado é-nos só uma lembrança triste;
E o presente é atroz, se o porvir não existe.

Ou seja, Voltaire é Perray – e Perray Voltaire – uma vez unidos no projecto de devolver, a capella, o skyline espiritual da Capital.

Assim seja. Desertos por colocar nos átomos da sociedade — os cidadãos – uma semente de consciência que é sacralização do político e jamais a beatificação da cultura, Xana e Perray são duas tradições de intervenção distintas. Um, a consciência do discurso e o outro a consciência do corpo, ambos remetendo para premissas básicas de uma emancipação cidadã atenta às virtualidades do espírito (e o espírito é indissociável do lugar, segundo Bruno Latour). No trabalho destes artistas, o encontro com um património simbólico que emerge diante dos nossos olhos é levado ao extremo de uma praxis experimental; em Xana da palavra nova e em Perray pela via sacra das acções. A identidade cultural (de Lisboa, mas não só) assim se deixa representar pelo ascese artística, discretamente contaminada pelo humor e a performance (olá e adeus, Almada Negreiros).

Na presente obra, estas intuições espacializadas são ampliadas pela pintura punk de João Fonte Santa e a colagem googlada de João Pombeiro. Ambos multiplicam as superfícies de reflexão do nosso VICENTE com as suas próprias visões (alucinadas?) do mundo actual. Um vem da pop política e outro de uma tradição conceptual, mas ambos têm em comum a noção de que há um universo de referências visuais que a sua iconologia vai recompor em ponto crítico, isto é, num abraço esvoaçante de escamas (Rosa Alice Branco).

Também todos os restantes autores deste livro desenvolvem leituras próprias da virtualidade mitológica. O acervo pressupõe que a curadoria de cultura urbana é indissociável da multivocidade que os Estudos Literários têm aportado às culturas de projecto. Recorrendo às palavras de Silvina Rodrigues Lopes (noutros links), seja este conjunto extremamente díspar de textos – a Kulturkritik de Silvina; o breviário que Carlos Lampreia dedica à materialidade da arquitectura e da cor em Lisboa, do ponto de vista da (in)formalidade da arte; o poema programático de Rosa Alice Branco; a nota marketeer avançada por Carlos Coelho; a light fiction de Nelson Guerreiro – outras tantas manieras de tomarmos consciência da indescirnibilidade entre experiência estética e pensamento, entendendo-se que “a experiência estética consiste na experiência do resto” . Silvina refere-se a um excesso da situação, daquilo que não é reconhecível: O resto, aquilo que excede a capacidade de compreensão, é o que se poderá chamar o impensado, a não confundir com o impensável, o inefável. Ao pensarmos o possível enquanto o fazemos, em obras e em textos, partilhamos esse processo na forma urbana-pública da polis, qual elogio de um possível que nos redima, enquanto cidadãos e amantes de Lisboa e do mundo. O impensado é o que como tal acompanha o pensado e resiste ao seu fechamento, deslocando-o e deslocando-se com ele.

Pois então, em todos estes labores, partimos de S. Vicente santo chiaro-scuro e chegámos a VICENTE-conceito, modelo de produção de horizonte. Seja VICENTE a presença invisível que, em ausência, nos acompanha na conquista latente de todas as distâncias. Benditos por este conceito artístico, celebremos todas as cores do real. Todas essas cores com que nos brinda a complexidade do mundo, iluminado pela luz do sol e o brilho da lua. Festa do sensível, VICENTE é a criação artística ao encontro da força interior; seja lá fora na cidade ou na bicromia deste livro, fala-nos da alegria do encontro com a nossa própria natureza que/quando continuamente se renova – natura naturans. Esta será uma outra ideia de fé que nos liberta de afectos que nos entristecem – o consumo fútil, a desinformação desgastante… – e desvela uma beatitude de outra ordem: a querença plástica na liberdade de agir. São estas prospectivas que hoje nos podem levar – como a Vicente que escolheu Lisboa para aqui repousar – a fazer absoluta confiança no horizonte.

Mário Caeiro Julho 2013

Vicente,Vicente 2013

…Dito e refeito!

  • Xana (Travessa), Régis Perray (Ermida)
  • 07 Set 2013 - 03 Nov 2013
  • Curadoria:Mário Caeiro

  

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