Reino

“Reino” de Pedro Valdez Cardoso inaugura no Convento de Cristo de Tomar iniciou um ciclo anual de seis exposições individuais de Arte Contemporânea, resultante da parceria entre o Convento de Cristo e o Projeto Travessa da Ermida de Belém.

As exposições pretendem cruzar a linguagem contemporânea com os conceitos de património histórico e cultural estabelecendo, deste modo, um diálogo aberto com esse património e as comunidades envolventes.

O extenso espectro temporal, o decurso do tempo no espaço, que a edificação do próprio Convento encerra em quase 900 anos da História de Portugal, constitui o mote e a inspiração de leitura de Reino, e simultaneamente, o paralelismo que Valdez Cardoso estabelece entre este espaço e o seu próprio fazer artístico.

//Entrevista a Pedro Valdez Cardoso conduzida por Catarina da Ponte a propósito de “ O Reino”  a 6 de outubro de 2014

A exposição “ Reino”, de Pedro Valdez Cardoso congrega no Convento de Cristo, em Tomar, um núcleo de 10 peças que encerram em si, e no seu conjunto, uma dimensão histórica, cultural e social análoga a determinados períodos da história do convento. A um conjunto de obras datadas entre 2008 e 2013, o artista apresenta ainda quatro obras inéditas realizadas a partir das especificidades históricas e iconográficas do espaço expositivo. Valdez Cardoso estabelece entre a própria natureza arquitetónica deste espaço e o seu processo criativo – desenvolvido em camadas- um paralelismo “curioso”. Este, e outros aspetos, são explicados pelo artista em entrevista.

A exposição “O Reino” reúne um conjunto de peças tuas que datam desde 2007, como “L’Hussard, após T. Gericault”, até à atualidade onde apresentas quatro peças novas: “Um Homem Dividido”, “ (From Here) to Eternity”, “in Vino Veritas” e “Vanitas”. Como construíste o discurso expositivo deste “Reino”, que abrange um arco temporal de praticamente sete anos?

Apenas um parêntesis, a peça de 2007 que referiste irá ser apresentada numa nova versão datada de 2014, e a maioria das peças são de um período bastante recente, de 2011 até agora. A seleção das peças foi feita, essencialmente, pelo seu lado conceptual e iconográfico. Não pensei se as obras tinham dois, quatro ou cinco anos, parti das peças que estavam disponíveis e que poderiam estabelecer algum tipo de diálogo com o próprio convento. São peças que, de alguma forma, partem de pressupostos históricos, de iconografias muito específicas e que considerei interessante expor em paralelo (o que nunca aconteceu anteriormente) e naquele espaço específico.

Estabelecer uma relação com o lugar expositivo atendendo às especificidades do mesmo, nomeadamente à sua dimensão histórica e cultural, faz parte do teu modus operandi. Neste espaço em concreto – o Convento de Cisto, em Tomar – que aspetos captaram a tua atenção?

O que me parece mais interessante no Convento de Cristo é o enorme espectro temporal que ele abrange, desde o Românico (século XII) até ao Barroco (XVIII). É um edifício construído em camadas, e, esse aspeto é-me particularmente próximo, porque remete exatamente para a forma como construo as minhas peças, não só a nível do fazer, mas também na forma como chego à sua conclusão, através de referentes que podem ser de naturezas diversas (históricas, iconográficas, textuais). Portanto, acaba por haver uma relação conceptual entre o meu modus operandi e a própria história arquitetónica do espaço. Depois, o convento em si tem alguns elementos emblemáticos como o claustro renascentista, a janela manuelina e elementos de outras épocas que denunciam diversos episódios históricos ligados à evolução do gosto e das mentalidades. Sempre que chegava um novo monarca impunha-se a sua estética, com novos dogmas sociais e culturais implícitos. Essas marcas são muito interessantes porque revelam os atos de fazer e desfazer que vão narrando a História.

As peças vão contaminar todo o espaço do Convento, não se vão consignar a um só espaço?

O Convento tem um percurso de visita pré-estabelecido. Eu optei por fazer o mesmo itinerário e fui escolhendo os locais mais apropriados para expor as diferentes peças, pensando sempre numa lógica de diálogo entre as especificidades dos espaços e das peças e de que forma o meu trabalho poderia ir criando ruído e destabilizando esse olhar pré-construído.

O que significa para ti a expressão “ O Reino”?

Encaro-a como uma expressão ambígua, por um lado é uma apropriação alegórica que pressupõe uma comunidade monárquica ou um sistema social hierarquizado, com leis e regras estabelecidas onde a ideia de democracia não é fundadora, e por outro lado, na contemporaneidade é algo que nos remete para um universo do fantástico. O interessante é que o visitante consiga estabelecer analogias entre a história do convento, a forma como os diferentes monarcas foram impondo o seu gosto e se foram afirmando em detrimento dos anteriores, e as minhas peças. Por outro lado, a figura de D. Manuel tão presente neste convento remete para o período dos Descobrimentos, e muitas das peças expostas possibilitam leituras ligadas ao Império e ao Colonialismo. Existe ainda um espaço deixado à “abstração”, o que me parece de extrema importância em qualquer proposta artística.

Na maioria das tuas instalações, apropriaste de objetos vernaculares e camufla-los, ficando apenas a memória do objeto original. Faz parte da tua “estratégia” esta identificação do espectador com o objeto para, numa segunda leitura das obras, o transportar para outros níveis de leitura e significados?

Existem vários níveis de significado, por um lado é criada uma segunda pele, e consequentemente uma outra identidade, porém ao haver um processo de homogeneização (dado pela uniformidade matérica das peças) é retirada a significação original dos objetos e conferida uma outra, que passa muitas vezes pela simples anulação da possível edificação de um processo identitário. Esta nova identidade é sempre interdependente do material usado, o qual nunca é utilizado ao acaso, mas escolhido em função da sua significação cultural, histórica ou social.

Podes falar-me sumariamente destas tuas novas peças?

Comecemos pelo tabuleiro de xadrez, que vai ser colocado numa sala próxima da capela -“ Um Homem Dividido”, em que as peças habituais que encontramos neste jogo são substituídas por partes de um único esqueleto humano. Esta é possivelmente a peça menos específica de todas, se quisermos, pelo facto de abordar questões do domínio do profano e do sagrado, da relação do Homem com o poder e com a fé. A peça “ (From Here) to Eternity” parte da ideia de obelisco, é uma escultura vertical com aproximadamente 4m de altura, em cimento branco, decorada com ossadas, que lembra as decorações da Capela dos Ossos, em Évora. É uma peça que se situa no conceito de monumento e de monumentalidade, de construção para a prosperidade mas também de construção tumular. “in Vino Veritas” é uma obra constituída por várias garrafas de vinho e champagne encimadas por crânios. As garrafas estão espalhadas pelo chão com dinâmicas e tensões diversas entre si criando a alegoria de um campo de batalha. Ao apropriar-me de uma expressão popularizada que remete para a ideia de “verdadeira natureza humana”, concilio os conceitos de natural/cultural. Por último, “Vanitas” é uma peça que se apropria da pintura de naturezas mortas e vanitas típicas do século XVII. O que apresento é uma desconstrução desse tipo de pintura, em que um conjunto de sólidos e de objetos geométricos, conjuntamente com alguns apontamentos mais característicos como peças de fruta, criam uma escultura que evoca uma mesa de arquiteto, com materiais para a construção de uma maqueta ou os restos de uma carpintaria.

As tuas instalações, ou esculturas no campo expandido no léxico de Rosalind Krauss, são sistematicamente produzidas em materiais perenes e pouco nobres. As peças que reúnes em “Reino” não são exceção à regra. Porque não poderíamos ver um “Reino” de Pedro Valdez feito em mármore de Carrara, por exemplo?

Por vários motivos, primeiro porque o Pedro Valdez Cardoso não sabe trabalhar mármore (risos). Os materiais demasiado sólidos e perenes foram os materiais típicos da escultura desde longa data. São os materiais que associamos à monumentalidade, e até mesmo a uma certa masculinidade. Não são materiais que me seduzam. Consigo encontrar inúmeros exemplos de artistas que operam com estes materiais e fazem peças fantásticas mas se um material não comunica comigo no processo de trabalho eu não consigo usá-lo. Outra razão prende-se com o facto de a grande maioria das minhas peças ser construída por adição que é o processo oposto a quem trabalha com pedra, para usar o teu exemplo. Não existe nas minhas peças o ato de esculpir, de tornar visível pelo ato de retirar matéria. Se os meus materiais são na sua grande maioria pouco nobres e frágeis, prende-se com duas questões primordiais: o facto de muita da minha escultura insurgir-se contra a monumentalidade característica da história da escultura clássica e até moderna, e de a grande maioria dos materiais e objetos a que recorro serem da esfera do quotidiano.

 Algumas das tuas esculturas como “L’Hussard, após T. Gericaut” (2007) também referenciam obras preexistentes na História da Arte. Achas que estas referências ajudam a aproximar a Arte Contemporânea de outros períodos e estilos de arte já digeridos pela crítica e pelo tempo?

Acho que isso depende, por um lado, da bagagem cultural do espectador e, por outro, da capacidade de relação com o referente. Embora existam sempre referentes mais ou menos assumidos, as ligações em si às vezes são bastante abstratas, pelo processo de desconstrução que opero. Porém o lugar da Arte Contemporânea não é, ou não tem que ser um lugar de conforto ou de fácil acesso, muito pelo contrário deve ser um lugar de rutura e de cissura. O contemporâneo é supostamente o presente, mas o presente hoje engloba tudo o que está para trás, todo o conhecimento até hoje adquirido pela humanidade, e por isso dificilmente o conseguimos ver. A forma como olhamos e conhecemos a história está também sujeita a uma constante mudança. Não existem âncoras.

Quais são as tuas referências artísticas?

As minhas referências artísticas são extremamente disseminadas. Não se reportam em exclusivo à história da arte. Podem ser literárias, teatrais, cinematográficas ou de campos como a ciência, os estudos culturais, a sociologia, a psicanálise. Eu penso que o mundo visível, mas também o mundo espiritual e imaterial, e todas as áreas do saber são ferramentas a uso para o fazer artístico.

A ironia e o humor crítico são talvez as tuas duas maiores ferramentas para colocares o espectador “ao teu lado” a refletir sobre questões históricas, politicas, identitárias, religiosas e de representação. Sobre que questões concretas gostavas que os visitantes de “ O Reino” ficassem a pensar?

O pressuposto é sempre o de proporcionar a reflexão e o questionamento sobre os denominados “dados adquiridos” ou “verdades absolutas”, seja sobre questões relacionadas com a identidade coletiva, factos históricos ou condição humana.

Convento de Cristo,Ermida Fora de Portas

Reino

  • Pedro Valdez Cardoso
  • 01 Nov 2014 - 08 Mar 2015
  • Instalação
  • Localização:Convento de Cristo, Tomar

  

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