A ideia de Homem, à semelhança da ideia de deus, treme e abala-se, cai por terra, não sendo necessário recorrer ao feminino para o representar; tão quanto basta ouvir dizer que alguém é bastante humano, porque é bondoso, à semelhança de deus. Mas será assim? A bondade será característica do Homem? E, de deus, também? Reconhecida a crueldade desse primeiro deus, o castigador, o flagelador, até descobrir o estrondoso falhanço do Homem. Que deus feminino quando o primeiro crime de sangue envolve dois irmãos, homens, não havendo lugar para a dúvida? O Homem sentirá um temor por si próprio, um entrave ao mal que o rodeia ou interioriza; ascese em angústia como só pode ser.

Que deus feminino articula uma linguagem quando a linguagem não importa? Um deus função do vivido, lavrado no profano, um pós-deus, ocorrido o falhanço do primeiro homem, e do segundo e do terceiro. Até à descoberta, não da morte de deus, e da demora da sua aceitação, mas sim de mais uma peça na construção de deus – não reconstrução, não há erro deitado abaixo e corrigido, apenas construção, num seguir em frente –, e se o exemplo dado de Abel e Caim, o mito a prestar-se ao ensinamento, tal como a tragédia, se o exemplo falha, o Homem também falha, mas nunca o falhanço de deus porque esse ainda é o falhanço do Homem.

Que deus feminino? O construir de deus será também uma tarefa revolucionária. Mas até quando? Qual o ponto onde os mais atentos poderão dizer que essa procura incessante e experimental da construção de deus se torna num cânone? E, logo, nada revolucionária porque segue uma regra comumente aceite.

E qual sexualidade? A dos dois irmãos, Abel e Caim? Uma homossexualidade dissimulada no ciúme e no delírio fratricida, e, também, a sua impossibilidade dramática, não por não ter acontecido, não por não ser possível, apenas porque não foi assim escrito, não ter sido aceite nem contado.

Abel e Caim decidem quem morre, quem mata, deus ausenta-se, quantas metáforas onde apenas imagens nos assaltam os sentidos; a imagem contrapondo a metáfora. A contenção do movimento, e, no entanto, o interesse que nos leva a não tirar os olhos das imagens que se espalham e contaminam, conspurcam. E se é um diálogo, qual a diferença perante a literatura, o teatro? E se não é uma linguagem.

Uma impressão de realidade, o grande engano do cinema, por vezes o que não se vê enquadrado no campo visual é mais esmagador do que o visível, delegando-se para o espetador o mais relevante dos papéis; a nossa presença assombrada no disparate do Homem justificado pelo mal – espetadores de caverna e sombras –, quando também não o é pelo bem. Nem pela felicidade, ou pela infelicidade.

Obra do acaso e do estatístico pouco provável, este Homem avança nos dois irmãos, nunca consumado o fratricídio, apenas a sua sugestão, em vias de, conhecendo nós e prevendo o mesmo desfecho, distraídos que andamos nesta verdade deturpada. O Homem, ele próprio, como o seu grande e único opositor. Mas Caim matou Abel. O primogénito mata o preferido; o primeiro nascido entre os homens mata o abençoado por deus; se nos pusermos no papel de Caim, bem mais interessante do que o de Abel. O primeiro dos filhos de Adão e Eva, Caim. E tudo se altera quando nasce Abel, nascendo também a inveja.

Será esse deus feminino quem ilude Abel e Caim, sussurra ao ouvido, grita nas suas entranhas, ou, pelo contrário, os irmãos arrastam para a sua tragédia a presença do inocente para que a história possa ser contada? Não assim. Apenas o espetador contará a história, nunca o hipotético deus, nunca o assassino, nunca o assassinado.

Qual deles a terra, qual deles o fogo? Qual deles a água ou o ar? Tudo imagens violentando as metáforas, até à derradeira imagem do inevitável falhanço do Homem. A guerra relativiza-se, assim como a fome, a peste e a morte, um espetáculo sem ordem ou ocasião propícia, e sempre o erróneo em acontecer não aqui, nem agora., que isto não é connosco.

Quem mata quem será a última dúvida, o derradeiro ensinamento do mito, fazendo da certeza uma indecisão.

Filipe Marques

Ermida Fora de Portas

God, Meaning, Subjet, Money and Phallus

  • Filipe Marques
  • 01 Abr 2019 - 30 Abr 2019
  • técnica mista, escultura metálica e iluminação

  

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