Saudade

Sara Ferrer desenvolve o seu trabalho a partir de uma pesquisa sobre a relação física e emocional, consciente e inconsciente, entre o ser-humano, a água e o mundo subaquático.

Adoptando a água enquanto domínio antropológico e os oceanos enquanto espaços cartográficos, a sua obra recorre a um imaginário aquático que, na sua complexa simplicidade e simples complexidade, privilegia algo herdado da Estética. Em um mesmo momento e experiência, desperta uma intensidade da poética – invocação aristotélica, aquela que chega aos sentidos e entranha-se no corpo em algum algures muito cavo, algum algures medular, glandular, que esconde-se perto da alma, que acende o ânimo, e, por outro lado, activa uma consciência especulativa, aquela que ascende à mente e navega em indagações nas dobras e desdobras das dúvidas da razão, que avomula-se em interrogações e sedimenta-se em sugestões. Este carácter do seu trabalho, que revela-se discursivo, no qual discerne-se o pulsar de uma preocupação e um idealismo éticos, dirige-se ao âmago, interpela o nuclear, procura desafiar, interrogando e reflectindo sobre a essência humana, nomeadamente a ideia da natureza humana implicada antropologicamente nas relações de causas e efeitos com a água e os oceanos.

No processo criativo, a latência da ideia conceptual desloca-se de acordo com uma verticalidade piramidal, desde uma generalidade, ou universalidade, e aborda a multiplicidade de ambiguidades que circulam subterrâneas e secretas, aquelas veladas, ou clandestinas, quase invisíveis, porém iniludíveis sob o manto superficial e refractor da acção quotidiana, convertendo-se materialmente, por códigos comunicantes da alegoria, da metáfora, do símbolo, na obra visual e plástica formalizada através da instalação, do objecto criado de natureza escultórica, da imagem e do som, e que oscila, ou cruza a figuração e a abstracção.

No olhar estrangeiro da artista espanhola residente em Berlim, cuja pesquisa, processo de trabalho e obra artística convoca a tessitura de estórias individuais entre a humanidade, a água e o oceano, que, numa certa geografia, dia após dia, estação após estação, era após era, vai construindo uma comunidade, tecendo uma memória colectiva, e na projecção da sua primeira exposição individual em Portugal, surgem, nas conversas que pontuaram a visita de há um ano e os passeios de uma semana ao longo da margem ribeirinha de Lisboa, desde Pedrouços a Marvila, temas como as tradições baleeira ou xávega, e depois aproximam-se a Lisboa, e do que era, e porque era, a Ribeira e a Rua dos Bacalhoeiros, o Cais das Colunas no Terreiro do Paço Real que é Praça do Comércio das Índias e, por detrás, a Rua Nova dos Mercadores cujo risco já foi apagado do mapa da cidade, ou as margens enrampadas e empedradas no Cais do Sodré que recebiam o peixe vindo de vilas piscatórias das redondezas para encher as cestas das varinas.

Entre tantos outros em que Portugal se banha no seu mar, Sara Ferrer naturalmente centra-se e envolve-se na natureza Atlântica e no legado histórico de Belém, enquanto fulcro geográfico e simbólico da aventura portuguesa além-mares do séc. XV e seguintes, e do seu vizinho Restelo, enquanto outrora amontoado de humildes casarios e oficinas artesanais, na altura pequeno povoado de simples marinheiros e outros homens do mar, longínquo das honrarias e das riquezas palaciais e reais que apontavam o rumo da nau. O testamento de aventura, de heroísmo, de dedicação extrema, e também, inevitavelmente, de incerteza, de angústia, de tragédia insuperável destes homens e mulheres, destes filhos e destes pais, dos incógnitos e dos esquecidos, dos invisíveis e dos indizíveis, os que se atiravam ao mar sem saber sobre o regresso, engolidos pela garganta do Adamastor nas vagas das Tormentas, sem nada ganho que trazer, e, na partida, tudo a perder do tão pouco que deixavam para trás, é concomitante com a natureza cultural enquanto lugar dedicado ao culto e à contemplação da Ermida N. Senhora da Conceição. É com ele relacionado e nele incorporado.

Note-se: Sara Ferrer não procura necessariamente qualquer posição política, que é também cultural e histórica, associada à faceta colonialista ou a outras questões imperialistas, mercantilistas, de que estes homens e estas mulheres fazem parte, queiram ou não. O discurso de Sara Ferrer, a reflexão que sugere, o desafio que provoca, é de outra natureza. Acima de tudo, procura a rua mais modesta, a casa mais despojada, a pessoa mais singela. Não será de admirar que, há um ano, tenha procurado em Lisboa as ruelas, as vielas, os postigos entreabertos, as faces com rugas, as mãos com calos, a palavra mais popular, os olhos de cuja superfície aparentemente vítrea escorre água salgada, e também as mãos mais fortes, as costas mais rijas, o abraço mais acolhedor, e um senso de inescapabilidade face a uma condição – perante o abismo da precaridade, um passo em frente. É a ética individual e o viver comunitário na polis. O discurso de Sara Ferrer é absolutamente político. Vai ao osso do ser-humano, do ser humano.

Neste âmbito, o apelo da ideia cultural da saudade portuguesa, esta amálgama abstracta que aglomera, mistura, tricota sentimentos diversos e conflituosos, de síntese impossível sequer para qualquer Português que nasce, vive e morre nela, com ela entranhada na pele, atravessando-lhe a carne, atingindo-lhe a espinha e ressoando-lhe no crânio, ela sentida e consciente e dela habituado e inconsciente, surge naturalmente como estímulo e desafio. Não com a pretensão da sua clarificação; antes, explorando o possível nas suas fragmentações da superstição do destino traçado, a esperança, o alívio, a celebração, a desgraça, o luto, a melancolia, a resignação, a resiliência, e o que mais seja, seja o que for que constitua este paradoxo orgânico que é a saudade, como convite às particularidades da memória e do imaginário pessoais e íntimos do observador.

Manuseando o espaço expositivo, o lugar de culto, agora o secular da arte, a convocação somática ao recolhimento pessoal e íntimo, à introversão e ao ensimesmamento é, antes de mais e de imediato, operada por um dispositivo ambiental composto por uma luminosidade intermédia entre a luz e a penúmbra, mediadora entre a claridade concentrada da razão e o espectro difuso da emoção, proveniente tanto da obra vídeográfica como da iluminação museográfica, e por uma sonânica eufónica que não chega a ser uma composição sonora, mas mais um rumor de um borbulhar de vida que parece vir de longe, estranho ao habitual e tão radicalmente próximo, afinal tão-mais inato ao ser-humano, e amplificado pela água enquanto meio de propagação do som face ao ar – aquele que já tenha mergulhado em profundidade, tal como Sara Ferrer na sua actividade complementar enquanto mergulhadora profissional, terá experimentado a contiguidade entre a maior sensação de isolamento e a maior conexão harmoniosa, visual e sonora, com o meio-envolvente em que está imerso.

O mergulho do observador em si-mesmo é intensificado por uma subtileza crucial da projecção de vídeo que se apresenta como momento seguinte da instalação. Quase imperceptíveis, e absolutamente evidentes, os movimentos da câmara. São as mãos que seguem os olhos na captação da imagem, a sugestão da presença da artista. Mas são, ou passam a ser, muito mais, os olhos do observador, a literalidade da sua convocação, a obrigatoridade do seu envolvimento e comprometimento com a exposição, com as ideias sugeridas ou descobertas, consigo mesmo, com o mundo seu, com o mundo dos outros, e com o mundo que, na verdade, é de ninguém e não-mais que do mundo ele-próprio. Os quase treze minutos do vídeo vagueiam, divagam, derivam, sem rumo e ao sabor das correntes. Formas agitadas de corpos mutáveis expandem e contraem, deslocam-se e mudam de humores, excrescências e depressões como vilosidades viscerais, cores imensas sintetizadas na palette dos cinzentos entre o branco iluminado e o negro escurecido. Mas, acima de tudo, materialidades aparentemente sólidas feitas de infinitas partículas infinitesimais, átomos que atraem-se até ao ponto de repelirem-se, fragmentos que se desprendem de um elemento e juntam-se a outro, ou desvanecem e dissolvem-se no meio aquoso onde fluem sem comando humano mas com ordem natural, e que, se lhes metida a mão, transformam-se, escapam-se, desmaterializam-se, fogem entre os dedos, não se deixam agarrar, sequer tocar. No fundo do mar, sem que a controle e sujeito dela, Sara Ferrer encontra, e faz encontrar, uma aproximação à representação da saudade.

Confrontando o espaço vazio preenchido pela projecção vídeográfica, chamando o observador ao cinematismo, às distâncias e às proximidades, a navegar por entre, com a costa à vista ou ao largo, apresenta-se uma segunda interpretação da saudade dos homens e das mulheres que são do mar, sejam os que vão quanto os que ficam. Os cinco volumes, frágeis barcaças da gente simple e não poderosas naus do escol privilegiado, dos náufragos e sobreviventes da história que as estórias preservam, que Sara Ferrer resgata, cuja pele, carne e osso cola aos cascos de que fazem vida ou morte, ocupam o espaço num arranjo que, ondulando, representa a partida, ou a chegada. Serão um conjunto de barcas que, na sua estória, isola um momento específico, no qual afasta-se ou aproxima-se. Serão os fotogramas sucessivos de uma estória, de uma barca que vai afastando-se aproximando-se. Entre um momento e o outro, depois do peso da partida e antes do descanso na chegada, resta o arrasto da memória que sobrevive, as sombras espectrais que permanecem no tempo agarradas ao espaço.

Entre composição imaterial e material, elementos positivos e negativos da exposição inspirada no mar e na comunidade que nele, e dele, vive, que lança-se à imensidão do mar e nele cria e sustenta a sua vida local, Sara Ferrer conduz sempre o olhar do observador, dirigido ao alto, ao que transcende, que é de ordem maior. O olhar que espera, que imagina, que adora, que sofre, que suplica, mas que pertence. Um fundamento do ser-humano, pois este olhar assim dirigido é o olhar da saudade; será?

Ricardo Escarduça

Saudade

  • Sara Ferrer
  • 24 Outubro 2020 - 21 Novembro 2020
  • Instalação e vídeo
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição

  

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