Rita Barros : The last cigarette

 Descobrir uma fotografia implica menos ver o que o fotógrafo mostra, do que olhar o que ele esconde. Para reconstituir a imagem invisível por trás da imagem visível, levamos a cabo um inquérito:

 1/ Identificamos a suspeita

Rita Barros é ao mesmo tempo autora e sujeito da fotografia. Por intermédio de um retardador, encenou-se a ela mesma, no seu apartamento.

2/ Interrogamos a suspeita

Contactamos Rita Barros e ela responde às nossas perguntas. Rita (muito descontraída) : “Quis ilustrar a acção de pôr fim a uma adição. Pegar no ultimo cigarro, acendê-lo, fumá-lo com prazer e matá-lo”. Foi um livro de Italo Svevo, A consciência de Zeno, que inspirou a fotógrafa. Neste romance psicológico, o herói relata incessantemente a sua decisão de deixar de fumar.

3/ Observamos a cena

A cor vermelha confere unidade à imagem. A fotografia está estruturada em 4 planos: distinguimos uma mesa vermelha no primeiro plano, batom no segundo plano, uma porta vermelha no terceiro plano e um quadro monocromático no plano de fundo.

4/ Isolamos um detalhe

A composição de perspectivas vermelhas foi estudada para evidenciar um elemento capital: a boca maquilhada.

5/ Descobrimos uma pista

Se observarmos atentamente este detalhe, somos surpreendidos pelo movimento do fumo. Nenhuma voluta se escapa da boca aberta. A fotógrafa conseguiu um círculo de fumo branco perfeito. Conseguiu criar uma estética “à la Lynch,” através de um efeito erótico-surrealista.

6/ Interpretamos uma pista

A boca em O, o fumo branco, o batom… Um círculo branco rodeado a vermelho… Lembra-nos algo, mas o quê? Um símbolo universal…

…. A boca representa um sentido proibido!

E eis como Rita ilustra o objectivo de parar de fumar: a boca está aberta, mas evoca um sinal que fecha o acesso ao cigarro.

7/ Desconfiamos do discurso

No romance de Italo Svevo, o herói, Zeno está convencido que a palavra foi dada ao homem para esconder o pensamento. Talvez Rita Barros se tenha também, apropriado desta ideia: as palavras mentem. O título da fotografia, The last cigarette, ganha um valor irónico. Quem nos pode assegurar que este cigarro será realmente o último?

 8/ Frustramos os planos de Rita

O cigarro é omnipresente: – é evocado no título, –  Rita Barros segura um cigarro-     um maço de Malboro Light repousa sobre a mesa.

A fotógrafa parece desejar atrair o nosso olhar sobre este objecto. Mas insiste demasiado para ser honesta. Como uma ilusionista, a sua verdadeira intenção é talvez desviar a nossa atenção. E se o cigarro fosse  um logro? Se o verdadeiro sujeito da fotografia estivesse noutro lugar?

9/ Elaboramos uma hipótese

Imaginemos que o sentido proibido não impede a entrada do cigarro, mas a saída de…. De quê? O que passa normalmente através da barreira dos lábios?

A voz, a palavra.

Talvez Rita Barros exprima uma apreensão própria dos artistas: a incapacidade de se exprimir, de comunicar. A cor branca serve assim de contraponto à cor vermelha. Falamos de angústia causada pela página em branco quando um autor não consegue escrever. Falamos de uma voz branca, quando estamos emocionados: o branco serve frequentemente para materializar a ausência da palavra.

10/ Concluímos o inquérito

No romance de Italo Svevo, Zeno está a fazer psicanálise. Ora, a palavra está no centro do dispositivo analítico, uma vez que o paciente, para se livrar do seu mal, deve conseguir nomeá-lo. O erotismo latente da fotografia revela então uma frustração. Assistimos a uma declinação fotográfica do grito de Munch. Rita Barros transformou-o num grito mudo.

 Francesca Serra

Grazia.fr.

The last cigarette

  

Projecto Travessa da Ermida © 2020. Todos os direitos reservados