Um rumor como o silêncio.

A exposição de Susanne Themlitz no espaço da Ermida recuperou na minha memória uma série de obras da autora realizadas em 1997. As Portable Landscapes (Paisagens Transportáveis) são compostas por caixas que contêm paisagens moldadas a gesso e desenhos emoldurados onde podemos reconhecer, em dois planos da produção da artista, a importância do espaço e da significação da palavra. Essas caixas/contentores possuem uma característica que provoca alguma instabilidade ao espectador. São caixas de modelo semelhante ao das usadas para o transporte das obras de arte, que encerram, quase à superfície, uma paisagem branca, que observamos de cima, e apercebemo-nos que o objecto artístico não está contido na caixa para dela ser retirado e exposto, mas que todo o objecto é a obra de arte. Se por um instante nos ocorrer a “Boîte-en-valise” de Marcel Duchamp, podemos estar a precipitar-nos sobre referências à história da arte ou a decisões do processo artístico que implicam o seu questionamento.

Porém, Susanne Themlitz não está a fazer um comentário à história da arte, porque a referência a um dispositivo portátil pode conter no seu enunciado uma outra ideia, a impermanência. Ou seja, aquela obra encontra-se numa das estações de um percurso impossível de determinar.

Os desenhos, que fazem parte da mesma série, foram executados em finas folhas de papel (formato A4), e representam apontamentos de paisagens onde pequenas figuras indistintas denotam a sua presença no espaço. Os desenhos assemelham-se a anotações de viagem executadas à distância, como se entre a mão e os relevos do terreno houvesse um corte temporal, como se tudo fosse apenas um vislumbre. Sobre as folhas estão pequenas frases manuscritas, em alemão e português, que fragmentam toda a possibilidade que a descrição contida numa legenda pode convocar, mas elucidam-nos desde logo sobre a imponderabilidade de um universo construído através da presença de seres e espaços sujeitos à prolífica imaginação da autora. Para Susanne Themlitz, o tempo é também um contentor, onde a coexistência de diferentes referências gera inesperadas genealogias. Esta face da sua obra está presente no uso recorrente da fotomontagem (numa atitude próxima do dadaísmo – como na obra da artista Hannah Höch) para representar figuras extraordinárias, inscrevendo por vezes o seu próprio corpo. Não se trata de uma estratégia da representação mas uma forma de organização da matéria representada que sobrepõe indícios e fragmentos de hipotéticas narrativas, como uma découpage que religa, através de intersecções, diferentes níveis de consciência de uma realidade construída e ficcionada.

É como se estivéssemos permanentemente em frente a uma tela de cinema e a tíbia distinção entre o fantástico e a realidade nos perseguisse. A proximidade da obra da artista com a cinematografia não é imediatamente visível; no entanto, frases e palavras tais como: “At Eye Level”, “panorama”, “paisagem conservada”, “itinerário” ou “continua”, inscritas como títulos de exposições, anotações de desenhos, ou sobre a última página dos seus livros de originais, propõem-nos um plano dinâmico de narrativas em que o desenho e a escultura se presentificam como acontecimentos que nos reposicionam incessantemente perante um mundo possível mas inexpectável.

A exposição “Silêncio (5 elementos em bronze e alumínio provavelmente desprendidos de um desenho a grafite e óleo, ainda a realizar)” é um momento de síntese da obra da artista. As obras expostas constituem o espaço da Ermida como uma escultura, no sentido em que este deixa de ser o lugar para apresentar obras, mas é a matéria escultórica que percorremos e nos integra. A montagem da exposição determina de imediato dois planos distintos através da separação do espaço. A primeira sala, como uma antecâmara, encontra-se vazia e está numa cota mais baixa, deixando prever a segunda sala (outrora o altar), onde ocorre um sistema de relações entre os personagens que a habitam. A palavra é de novo a ferramenta da escultora. No título, a palavra “desprendidos” refere-se ao momento da queda, em que os elementos do desenho transitam para a sua materialização em bronze e alumínio tornando-se os objectos fundadores da escultura que é todo o espaço da exposição. Esta precariedade entre o desenho a realizar (intenção declarada no título) e a presentificação do espaço habitado subtrai à nossa consciência o tempo e o próprio lugar. É neste sentido que o silêncio se apodera de nós como um rumor mudo que percorre os personagens aparentemente inactivos, suspensos no acto da fundição. Há uma sensação de estranheza na correspondência entre o que resta de um corpo humano (o fato de mergulhador sem rosto) e a pedra-nuvem-corpo-informe que se encontra ao nível do olhar, como uma memória ausente de nós que resiste aos indícios que procuramos.

O trabalho de Susanne Themiltz reside numa incessante sobreposição de figuras e episódios narrativos que conhecemos no momento em que a artista procede à sua aparente agregação. E é no instante dessa decisão que o uso dos materiais – a grafite, o gesso, o bronze, a palavra ou um objecto do seu quotidiano – assume a potencialidade da escultura como construtora da identidade de seres e lugares que partilhamos como uma experiência física. Como se entre nós e o mundo existisse por momentos um outro espaço inexpugnável mas impossível de abandonar. O silêncio é a nossa contribuição para um discurso que está prestes a emudecer. Eternamente.

João Silvério

 

Silêncio

  • Susanne Themlitz
  • 9 Janeiro 2010 - 7 Fevereiro 2010
  • Escultura/Instalação

  

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