Fort/Da’ ou o Vai e Vem de Paradys[1]

1.caminhava por Veneza. Explorava a cidade no encalço de possibilidades artísticas. A cidade estava prestes a tornar-se palco de novo. Então talvez ela própria oferecesse os melhores in(d)ícios para as histórias que fosse relevante contar. Contudo, Veneza é densa. Possibilidades a mais? Qual a real necessidade de partir de Veneza para a ela regressar? Principalmente porque é também aberta, flutuante.

As questões que fazia sentido levantar ali, naquele palco veneziano, foram sendo coerentemente encontradas noutras paragens. Nancy, Niamey, Brazaville, Paris, Nova Iorque, Londres. Casas Tropicais, coloniais e neo-coloniais, pré-fabricadas, montáveis e desmontáveis, móveis. Em Veneza, A. relembrou uma história colonial esquecida  através das suas repercussões neo-coloniais bem recentes. Apropriou criticamente não só o envio das Maisons Tropicales – desenhadas e produzidas pelo constructor francês Jean Prouvé – para África entre o fim dos anos 40 e o início dos anos 50 do século XX, mas principalmente a sua retirada em 2000 para efeitos de restauro e venda no exclusivo mercado de arte europeu e norte-americano. A. subverteu tais movimentos de imposição, primeiro, e saque, depois, através da imobilização. Casas transportáveis colocadas em contentores de transporte parados, retidos entre. Espaços e tempos. Entre a melancolia da perda e a ansiedade do desejo, A. susteve movimentos indevidos e restituíu três casas a África.

Também aqui e agora falaremos de idas e voltas, de casas a viajar no espaço e no tempo. Já não coloniais e neo-coloniais, mas ainda assim cruzando hemisférios, misturando modernismos. Atravessando-se umas nas outras. Híbridas. Casas descasadas, ou talvez mesmo casadas, porque em permanente tensão criativa. Desfamiliarizadas, ainda que não desfiguradas. Descontextualizadas, mas só na tentativa de ver melhor. Casas sem casa fixa. Nómadas. De porta aberta. E por isso mesmo, mais ‘unhomely’ do que ‘homeless’.[2] Casas entre.

‘Entre!’ – disseram a A., em Veneza, à porta da Gallerie dell’Accademia, enquanto deambulava e procurava e ía encontrando já, sem saber, além e não ali, o que viria a constituir a sua própria versão da história das Maisons Tropicales com que representou Portugal na Bienal de Veneza de 2007. De facto, não foi a partir do que A. viu ali, naqueles primeiros contactos com Veneza, que nasceu a ideia de investigar a história das Casas Tropicais. Mas outras casas despontaram no lugar dessa ideia procurada. Outras arquitecturas. E também arquitecturas outras, que A. tem consistentemente investigado desde o início da década de 90. Era impossível ignorar.

Registar artisticamente esta experiência veneziana de alteridade arquitectónica modernista tornou-se, por conseguinte, impulso irresistível. Imprevista, aparentemente segunda ou menor em relação a Maison Tropicale, esta outra obra marcada por Veneza surgiu mesmo com anterioridade temporal e afectiva, ainda que ulterioridade ao nível da dimensão política, conceptual e escultórica. Porém, apesar das diferenças e especificidades, ela insere-se sem vacilar (pois que a sua verdadeira vacilação é outra) nas linhas de investigação que A. tem desenvolvido ao longo de várias décadas, e não menos do que obras maiores como Maison Tropicale. Assim se compreende o seu processo e como, partindo de uma arquitectura outra, se chega a uma obra outra. Isto é, da mesma forma que a arquitectura veneziana em questão se constituíu historicamente como heterodoxa no contexto do cânone modernista, assim também a obra que a partir dela nasceu se tornou ela própria obra de alternativa, alteridade, cruzamento e deslocação. Ao ponto de se ter deslocado de Veneza e cruzado a linha do Equador.  ‘Crossing the line’. Mas agora também nós viajamos, através do texto, pela história desta obra, e não chegou ainda o momento de cruzarmos essa linha imaginária. Estamos a caminho.

Era, então, necessário fotografar, desenhar, esculpir essa entrada no ‘paraíso’ de tal arquitectura, pois que se tratava de uma arquitectura em especial – a de Carlo Scarpa. A. andava fascinada com o modernismo local e de detalhe decorativo do arquitecto italiano (fazendo lembrar a sua admiração pelo modernismo decorativo e de adaptação local de Pancho Guedes). A arquitectura de Scarpa é desenhada com linhas modernistas, sim, mas não expansionistas. Em resposta coerente à, por vezes, difícil densidade histórica e arquitectónica de Veneza, a sua obra é muito mais fruto da adaptação, no desenho das formas, no uso dos materiais e nos métodos colaborativos de trabalho, à realidade local e concreta da cidade do que de visionarismos universalistas ou mesmo criações arquitectónicas de raíz. Como se Veneza, pela dificuldade do seu tecido compacto de múltiplas camadas, impelisse o arquitecto a abandonar mais eficazmente quaisquer ilusões autorais de criação ex nihilo. Consequentemente, a necessidade de intervir em edifício já construído, repleto de história, através da estratégia do fragmento, do detalhe, dos materiais adequados à fusão equilibrada em estruturas pré-existentes impunha-se como natural, ainda que nunca fácil. Scarpa tornou-se, assim, mestre da intervenção modernista em edifício histórico. Se não internacionalmente, seguramente em Veneza. Pouco mais de meio século depois, nas suas deambulações venezianas, A. admirou as muitas renovações levadas a cabo pelo arquitecto. Até que se deparou com a intervenção na Gallerie dell’Accademia, realizada após o final da Segunda Guerra Mundial. No início, era a porta.

Porém, havia mais do que a bela porta modernista, de linhas simétricas e depuradas. À entrada, aconselharam A. a percorrer o interior da Gallerie para ver as intervenções de Scarpa ao nível dos detalhes: janelas, rodapés, corrimões. A. entrou. A intenção era, pois, deter-se precisamente naquilo que a maioria dos visitantes da Gallerie não repara. De facto, toda a obra de A. revela uma atracção, de pendor indubitavelmente ético, pelas histórias que são indevidamente ignoradas ou esquecidas. Neste sentido, a contemplação das clássicas belezas Renascentistas e Setecentistas de Veronese, Tintoretto, Tiziano, Tiepolo e Canaletto não era tida como prioritária. Contudo, foi precisamente no momento do desinteresse e da quase rejeição que algo de inesperado sucedeu. Sem deixar de se fascinar com o design de interiores de Scarpa, A. não resistiu à beleza apolínea do equilíbrio e da harmonia das obras que moram naquelas paredes. Obras que o próprio Scarpa visitou com admiração e cuja morada tocou com respeito. Contrariando assim expectativas iniciais, A. rendeu-se àquele paraíso de arte, onde antigo e novo coabitam. Interiormente, em obras e design. Exteriormente, em fachada e porta. Interior e exteriormente, ao mesmo tempo e sem oposição, nesse lugar de passagem onde o novo permite o acesso ao antigo – paraíso ideal enclausurado que o modernismo abre ao exterior.

No entanto, A. geralmente não se satisfaz com interstícios meramente temporais. Onde está o espaço outro desta obra veneziana, já em si outra pela sua referência arquitectónica? Qual a arquitectura que com esta se vai cruzar? Qual a casa que, nunca inteira e desde logo fragmento, de outro espaço se lançará no encalço desta, também ela já (des)feita porta, atravessando-a, penetrando-a? Quais as forças que desestabilizarão a harmonia simétrica da porta de entrada para o paraíso? Com que modernismo-outro será relevante que este dialogue?

Já em 2006, A. homenageara a casa Die Es (A Lareira) do arquitecto sul-africano Gäbriel Fagan na sua obra Die Vlermuis Huis (Casa Morcego). Invertera a casa-lareira de Fagan através de uma estrutura minimal de madeira e plástico pintado. Fez do telhado ondulante chão suspenso e da chaminé cónica pequena torre invertida. Casa-baloiço que perdeu o chão e desde então se pendura no tecto de outras casas. Casa-morcego, pois. Viajante do sul que a rigidez canónica do norte não só põe do avesso como faz pender dos seus tectos. Efeitos de viagem percorrida em contra-mão. Contudo – inversão de marcha – o que pende também agarra e modifica aquilo ao qual se prende. Por conseguinte, a rigidez baloiça no preciso momento em que sustenta.

Em geral, Fagan interessa a A. pela beleza não só minimal mas também orgânica das suas linhas e volumes modernistas, que se inserem cuidadosamente na paisagem sul-africana da região da Cidade do Cabo. Interessa-lhe igualmente o seu método de trabalho colaborativo, não só do ponto de vista do recurso a materiais e mão-obra local, mas também por fazer da construção das suas próprias casas de residência, levada a cabo pela sua família e em especial colaboração com a sua esposa Gwen, prática artística impregnada de intimidade doméstica, assim também se desautorizando, ética e afectivamente, como autor.

1.reconheceu semelhanças várias entre as posições artísticas e éticas do veneziano Scarpa e do sul-africano Fagan, culminando numa partilhada heterodoxia modernista. Assim emergiu a vontade coerente de prestar uma homenagem conjunta. Que outra arquitectura de Fagan se prestaria melhor a este cruzamento senão o paraíso doméstico da segunda casa de família – Paradys (Paraíso) – construída nos arredores da Cidade do Cabo, junto ao mar?[3] Dentre os muitos aspectos comuns de relevo, note-se, porém, como, no caso concreto destas duas casas, o encontro se poderia dar simbolicamente no espaço entre da porta. Onde Scarpa adiciona porta nova a edifício antigo, Fagan adiciona porta antiga, rural, a edifício novo. Pormenor a não descurar, pois que, lembremos, no início era a porta. E no final porta será.

Casamentos possíveis entre estes dois paraísos – o modernista-artístico da Gallerie e o modernista-doméstico de Paradys – foram então ensaiados em desenho. A. concebeu híbridos inspirados, por um lado, na geometria rectangular da porta de Scarpa e, por outro, na ondulação semi-circular do telhado e no pormenor escultórico da chaminé de Paradys de Fagan. Mas o telhado e a chaminé de Fagan não quiseram, desta vez, sair do papel e fazer-se escultura. Resistiram à tridimensionalidade. Preferiram marcar presença de outra forma. Fizeram-se título – Paradys.

Presença subtil mas determinante. É este título e a história que ele conta que operam a viragem a sul da escultura. É ele que abre à alteridade o paraíso aparentemente fechado sobre si próprio, estável e simétrico, ilusoriamente autónomo que a escultura, por si só, poderia fazer prevalecer (enquanto referência minimalista a um portal modernista de acesso à experiência do belo). A referência a Paradys de Fagan no Paradys de A. é homenagem quase escondida que, contudo, se faz propulsor determinante da estática abstração geométrica da escultura. É o título que, na sua concretude Afrikander, multiplica os paraísos e os torna menos ideais. Introduz o afectivo no conceptual. O privado no público. O doméstico no histórico. E mesmo no ‘para lá da história’ para o qual a palavra ‘paraíso’ remete na sua dimensão idealizante, própria, neste caso, não só da experiência do belo em Veneza (que ocorreu, não esqueçamos, no edifício de um antigo convento), mas também da sua localização, aqui e agora, na Ermida da Nossa Senhora da Conceição em Belém, que, à semelhança da Gallerie veneziana, é também ela edifício religioso tornado artístico. De uma contemplação se passa a outra. Entre. Agora não só entre casas, mas também entre paraísos e casas. Casas-paraíso.

Mas será Paradys-escultura assim tão necessitada de Paradys-título para se abrir e desautonomizar? Para além dos elementos de desenho e fotografia que acompanham a escultura e que parcialmente a contextualizam, ela própria, nos gestos e na génese que contém, se vai desautonomizando. Com efeito, tal como Scarpa introduziu fragmentos modernistas no todo de um tecido histórico arquitectónico e artístico, também agora A. introduz um fragmento minimalista no tecido histórico da Ermida. Tal como Scarpa (e Fagan), também A. adiciona a sua porta. E da mesma forma que Scarpa (e Fagan) experimentou com a concretude quase artesanal dos materiais, assim também A. recorre à madeira sem o acabamento da côr e a um processo de contrução do espaço mais devedor da tradição funcional e pré-industrial do Construtivismo do que da abstracção mais autonomizante do Miminalismo puro. Além disso, a escala desta porta é quase humana e nesse sentido, embora não permita ao espectador outra entrada que não a visual (ao contrário de Maison Tropicale, por exemplo), convida ainda assim à proximidade. A proximidade da contemplação. É um convite de entrada que, precisamente na sua impossibilidade, evoca a experiência concreta, pessoal e afectiva, vivida em Veneza, de recusa inicial e posterior entrega (ainda que não entrada) à contemplação do belo. Uma entrada sempre aquém. Num mundo outro onde, por definição, é impossível entrar e que, por conseguinte, sempre e desde logo se contempla de fora por muito que se entre. Portanto, o que abre esta porta ideal, visualmente fechada (ainda que transparente), é precisamente a sua origem na espessura do vivido. A sua realidade como memória afectiva e pessoal de um momento concreto e mesmo marcante de tão inesperado.

Em Paradys, as múltiplas duplicações – interior e exterior, antigo e novo, ideal e concreto, público e privado, norte e sul – ocorrem no espaço intersticial da porta, onde fronteira se faz ponte. Sem ilusões dualistas de separação. Sem totalizações dialécticas de fusão. Entre.

Ana Balona de Oliveira

Londres, Novembro 2010

Notas:

[1] No contexto da sua teorização sobre o conceito de ‘beyond’, Homi Bhabha inclui o movimento do fort/da freudiano na sua lista de exemplos ilustrativos do movimento próprio desse conceito: ‘…there is a sense of disorientation, a disturbance of direction, in the “beyond”: an exploratory, restless movement caught so well in the French rendition of the words au-delà – here and there, on all sides, fort/da, hither and thither, back and forth’ (Homi K Bhabha, The Location of Culture [London and New York: Routledge Classics, 2004]), p. 2. Conferir também Sigmund Freud, Beyond the Pleasure Principle (1920), trans. and ed. James Strachey (New York and London: W. W. Norton, 1961), pp.12-17.  Quando recorro a esta expressão freudiana, estou a inspirar-me não só em Freud, mas também, e principalmente, no uso que Bhabha faz de tal expressão.

[2]A este respeito, Bhabha escreve: ‘The negating activity is, indeed, the intervention of the “beyond” that establishes a boundary: a bridge where “presencing” begins because it captures something of the estranging sense of the relocation of the home and the world – the unhomeliness – that is the condition of extra-territorial and cross-cultural initiations. To be unhomed is not to be homeless, nor can the “unhomely” be easily accommodated in that familiar division of social life into private and public spheres … The recesses of the domestic space become sites for history’s most intricate invasions. In that displacement, the borders between home and world become confused; and, uncannily, the private and the public become part of each other, forcing upon us a vision that is as divided as it is disorienting’ (Bhabha, The Location of Culture, p. 13).

[3] Peter Buchanan, ‘Paradys regained: this seaside house is a sensitive fusion of local influences tempered by Modernism’, The Architectural Review (Novembro 2004).

Paradys

  • Ângela Ferreira
  • 8 Janeiro 2011 - 27 Fevereiro 2011
  • Instalação
  • Ver Publicação

  

Projecto Travessa da Ermida © 2020. Todos os direitos reservados