O desenho lido e sentido

“Quando vemos uma linha numa tela ou num papel, lêmo-la, ou seja, seguimo-la com os olhos, mesmo inconscientemente, como o faríamos com o bailarino. Percorrê-la desta forma, através de uma tomada de posse mental, significa vivê-la em imaginação” (1)

René Huyghe

O excerto com que escolhi iniciar este agrupamento de letras revela a qualidade performativa que pode estar presente num desenho. E este carácter é paradigmático do trabalho de Teresa Gonçalves Lobo. É assim que eu o tenho visto sempre. Como se em cada obra sua eu conseguisse visualizar a sua mão em gestos pacientes e contínuos. Por vezes lentos, outras vezes rápidos. Se em muitos desenhos de Teresa encontramos caminhos sinuosos de uma subtileza imensa, por vezes a autora inflige ao papel sulcos mais carregados, que não o ferem, mas fazem dele testemunha de uma energia física humana. São como pequenas confissões do espírito, mediadas pela interpretação do corpo e depositadas na superfície do papel. Constituem aquilo que podemos ver e que a artista nos deixa aceder. Em recolhimento, seguimos as linhas com os olhos, pensamos nelas com o corpo e sentimos a energia que deles emana. Talvez seja um discurso do etéreo, este que vos dirijo, mas a verdade é que qualquer tentativa esforçada de conceptualização destrói cada traço/verso desta poesia visual. “O artista verdadeiramente original não vê, realmente”, dizia o pintor informalista Willi Baumeister em 1947. “À medida que investe no desconhecido com cada obra ele não consegue prever o que irá descobrir” (2). É preciso que a artista consiga assumir uma passividade perante o seu próprio desenho, pôr o corpo a pensar e com isso produzir obra ou pensamento.

Sem título, 2013 | Pastel sobre papel | 240 x 153 cm. Exposição ‘Para além de … ” de Teresa Gonçalves Lobo na Travessa da Ermida. Cortesia da artista.
Não é de estranhar que Teresa Gonçalves Lobo venha expor os seus desenhos num espaço que antes foi dedicado a fins espirituais ou religiosos. Os seus desenhos são em si pequenos momentos de reflexão pessoal e íntima. Eles convocam momentos de introspecção que partem dos gestos e movimentos da autora para se projectarem no observador. O processo faz-se em silêncio e recolhimento perante a obra de arte. Não se trata aqui de grandes efeitos visuais nem elaboradas elocubrações teóricas ou conceptuais. Quem não é capaz de apenas sentir não chega à essência do seu trabalho. Como na fé, talvez. Como disse Immanuel Kant, “As diferentes sensações de satisfação ou desgosto obedecem menos à condição das coisas que as suscitam, que à sensibilidade particular de cada homem para ser impressionado por elas com prazer ou desprazer” (3). Apesar de esta ermida há muito estar despojada das suas funções de culto religioso, a sua própria estrutura arquitectónica convoca-nos imediatamente a memória para esse passado. Desta forma, o carácter intrinsecamente introspectivo dos desenhos de Teresa Gonçalves Lobo reveste-se de acrescida importância, sendo coadjuvado pelo seu entorno. Todavia, e ainda que assumindo uma certa contradição, nestes desenhos – os maiores que Teresa alguma vez realizou até agora – sente-se uma espécie de energia que extravasa qualquer contorno definido. Há vida incontrolada que deles explode. Para além de um momento inicial de contenção há depois o jorrar de movimentos. Como se Teresa quisesse mais uma vez dar-nos um dos seus momentos interiores, mas no final desistisse da sua interioridade para partilhar sem reservas uma alegria quase sempre contida. Assim, de uma quietude minuciosa, Teresa passa ao vigor do traço rápido e espontâneo. O que se mantém é sempre uma verdade corporal, sem o agrilhoar do instinto. E um vocabulário pessoal, de letras e linhas capazes de formar palavras mentais que sabemos pronunciar em silêncio, mesmo que não saibamos ainda o seu significado. É como um segredo nunca dito mas já em si revelado.

Cada obra de Teresa Gonçalves Lobo é uma presença em surdina. As suas obras não se impõem ao observador, antes o convidam a olhar de forma activa e participando no sentido que produzem no espaço – seja ele o espaço do papel ou mesmo o espaço envolvente. E este será sempre um momento sagrado, mesmo que apenas dure um segundo.

Miguel Matos

Notas do texto:
(1) Huyghe, René, O Poder da Imagem, Edições 70, Lisboa, 1986
(2) Baumeister, Willi, The Unknown in Art in Theories and Documents of Contemporary Art, University of California, Press, Berkeley, 1996.
(3) Kani, Immanuel, Observações Sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, Edições 70, Lisboa, 2012

Para além de…

  

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