Nuno Sousa Vieira
Oculto, encoberto, camuflado, disfarçado, dissimulado, impenetrável, indecifrável, mascarado, secreto e sigiloso

Uma simples operação: dar a volta a uma luva e mostrar suas costuras.

O gesto de revelar o avesso deste objeto elástico e maleável, construído à imagem e semelhança das nossas mãos, resume muito do que Nuno Sousa Viera vem experimentando nos últimos anos. Como uma luva é desenhada? Para que mãos? Com que objetivo? Para realizar que tipo de tarefa? Em que medida este objeto condiciona nossos movimentos e nossa relação sensorial com o mundo? Até onde é possível moldar ou forçar seus limites? Estas são apenas algumas das inúmeras perguntas que o artista se faz e nos faz quando estamos em contato —físico, não apenas visual— com suas obras.

Diante de uma peça sua a sensação de familiaridade rapidamente é substituída pelo estranhamento e pela desorientação. Nuno é barroco sem ornamentos. Nos transporta para o ambiente no qual realiza suas peças, utiliza elementos facilmente identificáveis e com um pouco de atenção é possível imaginar o tipo de procedimento necessário para construir suas obras. No entanto, para além de sua superfície ou forma, sempre há muito por indagar. Ao aproximar coisas aparentemente díspares e jogar com torções, repetições, sobreposições e espelhamentos, ele nos faz ver que nossos olhos nos enganam e que nosso estar no mundo está condicionado pela arquitetura dos espaços que ocupamos, pelos objetos que temos ao redor e utilizamos, pelo nosso próprio corpo e por toda a bagagem que carregamos.

A fábrica desativada SIMALA, onde está localizado seu ateliê, funciona como ponto de partida para muitas de suas obras. Este é o lugar a partir do qual Nuno «pensa o mundo». A antiga fábrica de plásticos é sua referência e seu lastro. Na instalação Oculto, este espaço é uma vez mais transposto, neste caso ao que antes foi um lugar de culto. As peças elaboradas para a Travessa da Ermida materializam-se como índices do corpo do artista e do ambiente industrial em que foram geradas. Ao mesmo tempo, revelam um olhar atento à arquitetura, à escala e às marcas do passado sacro da pequena capela. Carregada de uma estranha presença pela ausência, a intervenção do artista sugere um híbrido entre o espiritual, o mundano e o fabril.

O trabalho dignifica o homem, já dizia Max Weber, e seguimos acreditando na promessa de que ele nos libertará de muitos males —ou ao menos o que podemos consumir a partir dele—. O trabalho é a religião da contemporaneidade. Hoje somos o que fazemos e o que possuímos. Com especial intensidade no contexto da pandemia da covid-19, para os que ainda têm trabalho e meios econômicos e tecnológicos, o trabalho penetrou mais do que nunca em todas as instâncias da nossa vida e em nosso espaço íntimo e privado. Se o nível de precariedade da atividade criativa e artística já era gritante, atualmente, quais os limites entre o espaço e o tempo do trabalho e do ócio? Entre o produtivo, o artístico e o espiritual?

A consciência da engrenagem da indústria e do trabalho —e de suas implicações cada vez mais nefastas na vida dos seres humanos e do planeta— é determinante na produção de Nuno. Da mesma forma, ele não é indiferente aos possíveis paralelos entre a dinâmica fabril, o fazer artístico e o circuito (comercial) da arte. Neste sentido, opera em uma lógica de economia de meios, reciclagem e ressignificação. Utiliza matérias acabadas, muitas delas facilmente reconhecíveis: portas, janelas, cadeiras, ferramentas e utensílios manuais, além de um ou outro fragmento de obras antigas. Muito do que trabalha já está no mundo. Transforma «produtos acabados em outros produtos acabados» a partir de um exercício complexo e preciso de recombinação que vai muito além do conceito de ready made ou dos objetos surrealistas. Por trás de suas peças, desprovidas de funcionalidade e sempre extremamente bem acabadas, existe uma consciência política em relação ao excesso e ao desperdício. De fato, o mundo já está suficientemente construído e não há necessidade de adicionar muitas mais coisas a ele.

No interior da Travessa da Ermida, hoje dessacralizada, Nuno procura encaixar outro espaço, seu lugar de trabalho. Ele busca no vocabulário do seu ambiente cotidiano, conhecido e mapeado elementos similares ou que poderiam «caber» neste outro lugar. Ao mesmo tempo, a relação que estabelece entre o espaço sacro e os diferentes objetos que nele introduz é mediada por um corpo específico, seu corpo, suas medidas e referências.

Após examinar de maneira cuidadosa e lenta a pequena capela, um dos aspectos que ressalta na Ermida é a passagem entre o espaço coletivo de culto, aberto a todos, e o ambiente sagrado, reservado para padres e sacerdotes. Nos aros metálicos enferrujados que ainda hoje sobressaem de uma parede lateral do edifício e que no passado deviam sustentar um grande portão de ferro, «pendura» a ombreira (ou batente, como é chamado no Brasil) de uma porta «doméstica». A porta não está lá, somente a estrutura que a abraça e sustenta. O estranho objeto esculpe o vazio e funciona como moldura de um corpo de transição. É possível ver o que está do outro lado e inclusive atravessar esta porta vazada, mas apesar de permeável, ela não deixa de ser uma barreira que separa dois ambientes com funções distintas. Ao mesmo tempo, este perfil oco e antropomorfo também marca a diferença entre a dimensão de um corpo humano e do corpo que anteriormente ocupava este lugar: um corpo simbólico e monumental, feito sob medida para as arquiteturas religiosas.

Em muitos santuários os jogos de escalas são utilizados justamente para elevar o ser humano aos céus ou reafirmar sua pequenez diante dos deuses. A Ermida possui uma dimensão mais contida e íntima, que evoca uma espiritualidade interior e condensada. Uma escala mais humana e abarcável. Nuno talvez reforce esta característica ao introduzir o perfil de um tipo de porta com a escala de um corpo único e solitário, que, curiosamente, em Portugal é chamado «porta de homem», título dado pelo artista à peça. Mas esta não é a ombreira de uma porta qualquer. Como em obras anteriores, o artista retira e transfere elementos de seu ateliê a outros locais. Neste caso, o perfil que vemos originalmente emoldurava a porta do arquivo morto da fábrica SIMALA, onde eram guardados os contratos e registros das transações econômicas da empresa.

A referência ao ambiente cotidiano e ao corpo do artista é reforçada pelo fato de, além da ombreira, Nuno incorporar ao conjunto uma estrutura articulada com a dimensão exata do seu braço, que afasta o perfil da parede e permite o movimento de abertura e fechamento da porta vazada. É como se ele mesmo estivesse dando ou não acesso ao altar da Ermida e, consequentemente, ao caminho dos céus. Para completar, a ombreira está posta de cabeça para baixo, deixando «os olhos e o horizonte mais próximos do chão». Parece que não basta simplesmente mover um elemento arquitetônico de um lugar a outro. Nuno cria um espelhamento barroco e uma inversão de hemisférios que compromete nosso reconhecimento do que vemos. Além de evitar uma leitura automática, rápida e superficial da peça, joga com o engano da visão e, assim, questiona as hegemonias e nos avisa dos condicionantes que nos limitam, dos equívocos a que estamos sujeitos e da nossa incapacidade de conhecimento absoluto e imparcial. Neste ambiente etéreo, de ascensão e evasão, também nos lembra do que há de mais mundano e terreno: a gravidade, a queda e a morte. Aquele que aspira e deseja além da conta «corre o risco de acabar com as asas derretidas pelo sol».

Passado este umbral e uma vez dentro do antigo altar, Nuno elabora um complexo sistema composto por um martelo, uma cadeira, um grande aro circular e um elemento preso à parede. Com exceção desta caixa que se projeta para fora da parede, o restante das peças estão simplesmente apoiadas, em uma condição de equilíbrio frágil. O martelo,  ferramenta primordial de construção e transformação do mundo, símbolo da industrialização, aqui está pervertido, imobilizado e colocado diretamente no chão. Nele se apoia um dos pés de uma cadeira trazida dos escritórios da antiga fábrica SIMALA. Ambos objetos são metonímias de um corpo ausente. Enquanto o martelo funciona como uma extensão das nossas mãos, a cadeira abraça e sustenta o centro de gravidade do nosso corpo. Ambos também aludem à diferentes tipos de trabalhos, um deles físico e manual, o outro estático e supostamente intelectual. Na empresa hoje desativada as duas peças eram destinadas à funções e ofícios distintos, quase opostos, e por isso mesmo estavam separadas em dois universos e espaços operacionais: o da fábrica e o do escritório. Ao colocá-las lado a lado, uma vez mais em uma situação de desigualdade, o artista reflete sobre a clara divisão das diferentes atividades laborais e chama atenção para a hierarquia dos fazeres (e, consequentemente, de valor e remuneração).

Se na SIMALA estas discrepâncias se materializam no desenho arquitetônico da fábrica e em seus diferentes ambientes, na Ermida, o martelo é desgastado e pisoteado para nivelar o conjunto e permitir o equilíbrio de uma cadeira antes desequilibrada. Se o trabalho aproxima o homem de Deus, neste espaço de culto se sobrepõem e dialogam três tipos de «trabalhos»: o artístico, o fabril e o espiritual, cada um com sua lógica, seu tempo e seus objetivos.

Completa o sistema uma circunferência metálica, colocada entre a cadeira bamba e o paralelepípedo que se projeta para fora da parede do altar da Ermida. Outra vez, Nuno insere seu corpo neste espaço, pois a medida que vai do ponto mais alto desde aro até o chão equivale exatamente à sua altura. Além do grande círculo, está o único objeto fixo de todo o conjunto, que consiste em uma caixa branca construída com partes de obras anteriores do artista —assim como o aro metálico, que também pertencia a um trabalho de 2012—. A peça funciona como um «ícone». Está colocada exatamente onde antes havia um nicho, atualmente coberto, que provavelmente foi usado como abrigo de santos e/ou velas. As características exatas e o uso deste espaço interior são desconhecidos e o desejo de revelar o que está oculto faz com que Nuno realize uma espécie de contra molde ou inversão do vazio da parede do altar. Este vazio agora se projeta para o exterior como uma luminária. Aberto na parte de baixo e com um espelho no seu interior, ele banha de luz a parede e o chão do ambiente sacro. Com aberturas mínimas em sua superfície, a peça também alude à uma câmera escura, como se em seu interior se projetassem imagens invertidas do que está fora deste espaço. Assim, remete à ideia de uma aparição fantasmal própria da fotografia e à uma arquitetura carregada de passado. Um passado oculto, coberto e sugerido. Deste antigo espaço, que antes se via trêmulo pelo movimento das chamas das velas, hoje vemos somente um rastro.

Em um exercício incessante de repetições, ao entrar —ou sair— da Ermida, Nuno volta a direcionar nossos olhos ao chão e sublinhar o peso da gravidade em contraposição à ideia de ascensão e evasão associadas ao céu. A intervenção sutil que faz no espaço que comunica o interior com o exterior da capela, aproveitando o desnível da rua, é outro de seus jogos de espelhamento. Uma vez mais, ele brinca com escalas e alturas e encaixa elementos de um lugar em outro.

Na instalação como um todo é constante esta sensação de que diferentes espaços, corpos e tempos comunicam-se, sobrepõem-se e contagiam-se mutuamente. No fim, tudo parece fazer parte de um mesmo sistema circular de troca de energias, reciclagem e reordenação. Tudo está e já estava aí, somos nós que a continuação nos damos conta disso e passamos a ver o mundo com outros olhos.

 

Isabella Lenzi

 

em torno do ver

O acto de ver é um generoso campo de reflexão e experimentação que alimenta o trabalho de Nuno Sousa Vieira.

Implicando sujeito, objecto e imagem, esta considerada no seu âmbito mais lato enquanto construção mental alheia à mera esfera do visível, e as infindas e emaranhadas relações que os cruzam e reciprocamente afectam, ver é olhar, interpretar, entender e conhecer. Segundo esta perspectiva, o domínio do visível encontra-se tanto no objecto olhado e estável perante os sentidos, no que existe no mundo exterior, como alarga-se para o objecto pensado e fixado no conhecimento, para o que é no mundo interior. Ou, como refere o narrador autobiográfico de Proust no início da sua busca, trata-se da firmeza do que a coisa é, imposta pela constância do modo em que a coisa é pensada, quando, em sobressalto, desperta do sonho que a adultera.

No acto de ver de Nuno Sousa Vieira importa e impera o sobressalto do ver. Com pungência e sabedoria assinaláveis, porque convoca e adere a uma magnitude interdisciplinar que, entre outras, intersecta, com requinte, a história e a teoria da arte, a ontologia, a hermenêutica, a estética, a cultura visual, no fazer artístico de Nuno Sousa Vieira, o sobressalto do ver alvoroça a trama historicamente tecida entre o existir e o ser.

Isoladas em postura algo dadaísta e, ou, compostas em modo algo construtivista, sem inibir, ainda uma vez mais, o re-conhecimento do como existiram e do que foram, a obra criada apropria-se de, e incorpora, com frequência, coisas de uso mundano, cuja escala e ergonomia, declarando presença humana e carácter terreno, acentuam a sua existência visível em matéria e forma no mundo exterior e a sua essência visível no mundo interior, determinadas pela função convencionada. Coisas quotidianas, coisas úteis.

Em mão contrária, Nuno Sousa Vieira enviesa o ver. Com elegante insurgência, impõe a interrogação: o objecto é obra?; ver é imagem, ver é palavra?; e, de imediato, desfaz o imbróglio: o objecto, decididamente tomado e artesanado enquanto obra de arte, é linguagem. Linguagem que ilumina a sombra, como o faz toda a poesia. É linguagem exterior, antes do discurso interior. O discurso interior, a poesia da imagem ou da palavra, e o significado aberto no invisível iluminado que a linguagem da arte traz à luz, que vem dela, vem depois.

Com efeito, o princípio de Nuno Sousa Vieira é a variação do acto de ver, prenunciando e confirmando o seu interesse pela alteridade entre a mera coisa, ou apetrecho, e a obra de arte. Entre complexo imagem-palavra poético e construído mentalmente, ou imaginação, e conhecimento. Pressente-se, segundo tais referências, um confronto saudável, um precioso esvanecimento da fronteira. Anuncia-se, de imediato, uma decisão de contestatação e insubordinação perante a musculada robustez do que separa, que só na arte acontece e só a arte derruba. O fazer artístico de Nuno Sousa Vieira é interrogação, eliminação, acumulação, deformação, suplementação, e síntese na obra de arte criada. É a ruptura perturbadora do laço hirto entre o existir e o ser do objecto estável nos mundos triviais do ver. É o ver na arte. E os mundos espantosos que assim são iluminados e tornados visíveis, são-no no lastro da arte.

Enquanto criador, o interesse de Nuno Sousa Vieira pelas modalidades da alteridade estende-se àquele que é o outro do artista. Prelúdio em “Oculto”, e conduzindo com mestria o seu olhar, primeiro fechando-o subjugado no baixo e depois levantando-o livre ao alto, o visitante é, também ele, desde logo, estimulado e desafiado a mexer os olhos, e sublevar o acto de ver, e o pensar, ao des-pregar os olhos da forma e matéria que revestem o plano da parede e a escavar além da opacidade de um olhar voltado ao chão (De olhos pregados além-chão), ou ao des-cortinar uma tridimensionalidade invisível perante o manto do plano de papel, insinuada pela ilusão, pelas dobras vincadas que o avançam e um reflexo espelhado que o recua (Interior / Exterior).

O trabalho de Nuno Sousa Vieira é o desvendar no mundo interior do desconhecido velado, que já era no mundo exterior mas, até então, permanece oculto nas profundidades do objecto conhecido (“No princípio, era o exterior” / “Antes do princípio, era o interior”, Nuno Sousa Vieira). É a contenda com o familiar, o desocultar de um outro ser do objecto que acontece na criação (“O princípio contém já, oculto, o fim”, Martin Heidegger). É na instância do que existe e é ordinário que está o princípio que, já antes, contém o fim de Nuno Sousa Vieira. É neste plano que, diante do habitual, o seu ver e a sua arte abrem o invisível, escavando aqui até mais fundo que o mais entranhado abismo, elevando ali até mais alto que o mais saliente céu, rasgando a opacidade e penetrando o embrechado, trazendo o oculto à luz.

O campo de combate de Nuno Sousa Vieira é o seu espaço de trabalho, a fábrica abandonada em Leiria, que é espaço-outro enquanto atelier, e o atelier em Lisboa. São espaços habitados pelo artista, que os ocupa e frequenta, onde o corpo está, rotineiramente, ritualmente, como que na circunferência do regresso. Afrontanto o significado do nome que converge etimologicamente com o verbo, Nuno Sousa Vieira exerce a insubmissão do acto do ver sobre a autoridade do próprio habitar, e, sem des-habitar, antes pelo contrário, descose o hábito. É nestes espaços que o familiar é abandonado (Deixar para trás). Tal como a reiteração do corpo celeste sob a sua órbita não acarreta, em cada período, a repetição do que nele existe e é, o acto de ver assume um percurso circular, que destaca o objecto da sua existência e essência, que o re-genera em obra de arte, ao criar uma outra imagem mental que não mais o re-presenta, mas representa, e introduz no processo criativo a questão e o efeito do próprio tempo da criação, no qual o princípio recua em direcção ao fim, e o fim avança sobre o princípio. Ou no qual o avançar ou recuar sobre a circunferência eterna cessam de existir, e importa apenas o movimento constante do ver que renova.

Destes espaços, e neste movimento, são arrancados e saem, ao e do seu existir e ser enquanto tal, o aro de uma porta de homem, um martelo, uma cadeira de escritório, o revestimento de uma parede, a secção de um silo industrial (como o são, na consistência do percurso artístico de Nuno Sousa Vieira, outros objectos), e, no arrancar e no sair, o ser até então não mais o é, por não mais existir conforme até então existe.

A invisibilidade oculta do objecto, que se esvaece e extingue na mera forma e matéria determinadas pela condição útil e funcional, e que Nuno Sousa Vieira traz à luz, consiste no seu testemunho histórico. Tornado arte, o objecto é guardião de uma memória, impede o esquecimento, ao dar a conhecer, e assim projectar para o visível, desde os indícios preservados do uso e do desgaste, aqueles a quem prestou serviço. A imagem mental é não a de um objecto perdido na generalidade, mas a do objecto histórico que reverbera uma vida particular. O acto de ver de Nuno Sousa Vieira é um recomeçar que já existe, que o é antes do começar, por já lá estar. Em todo o seu trabalho, o ocultado é um estado, não a condição do oculto, e o seu acto de ver é um gesto de libertação. A obra de arte desoculta a verdadeira existência e essência do objecto, até então encobertas na sua serventia, que estão nas especificadades da sua história.

Ao mesmo tempo, esta preservação da memória, esta negação do esquecimento, que revoga o descarte e protesta contra os seus impactos, são estendidas por Nuno Sousa Vieira à fábrica enquanto objecto ela-própria, às suas paredes desgastadas, às suas salas esvaziadas, perante o abandono quando não mais útil enquanto tal. No seu emprego poético de objectos banais e destroçados, fragmentos recolhidos e próprios do desperdício da realidade industrial e urbana, conservados e protegidos dela, assumidos com os seus vestígios e cicatrizes apesar dela, encontram-se ecos conceptuais do Nouveau Réalisme, da fusão entre arte e vida, entre imaginação e realidade, e do manifesto estético de Pierre Restany, da visão analítica e crítica da ascendência económica após a década de ’60 do século passado, ou, num âmbito histórico mais vasto até, das diversas intensidades e tipologias que, quando extremada, a ideologia capitalista manifesta desde a Revolução Industrial, e dos seus despejos tóxicos sobre as dimensões sociológicas, urbanísticas, ecológicas da sociedade. Não limitada à política, a interpelação do objecto-obra de Nuno Sousa Vieira ascende à moral dos valores e ideais da cultura ocidental moderna e contemporânea.

Nuno Sousa Vieira exalta aquela dimensão histórica não apenas no tempo, mas no espaço. No contexto uterino do atelier-fábrica, onde o mundo interior do objecto histórico é desvelado na criação da obra de arte. Onde a obra é ela-própria, onde repousa no que é, onde a sua essência é resguardada do que é exógeno à história do objecto. Não obstante, a realização completa da obra requer a existência. O espaço expositivo, o mundo exterior à criação, onde só aí existe. Onde só então adquire existência no dar ao ver da sua essência, e o seu mundo interior é trazido à luz e ao conhecimento. Além da riqueza conceptual, material e formal transversal a todo o trabalho de Nuno Sousa Vieira, o seu acto de ver é, assim, também dirigido ao espaço expositivo.

Nuno Sousa Vieira amplifica a importância do espaço expositivo no seu trabalho, por não o constranger ao contexto de circulação e possibilidade da existência da obra, mas antes por o constituir agente interventivo na criação e na essência da obra. Nesta exposição, esta intervenção é enfatizada pela analogia entre ambos os espaços, lugares cuja utilização original foi abandonada (estratégia também evidente na exposição “X-Office for a Sculpture”, e, de modo mais ou menos latente, em outras). No presente, secularizada para o culto da arte, a faceta interventiva da Ermida N. Senhora da Conceição na criação da obra desperta o olhar de Nuno Sousa Vieira para os objectos históricos associados ao uso e função passados.

Da parede histórica, Nuno Sousa Vieira arranca, faz sair de detrás das trevas impostas pela parede trivial, o nicho paralelipipédico invisível, o vazio utilitário que está sob a cortina, que albergou e foi preenchido por utensílios litúrgicos. É o nicho que testemunha e guarda a sua história e a das pessoas que, fazendo-a, a viveram, no serviço. Fatalmente distorcendo a forma geométrica no e pelo ver enviesado, em Ícone – ícone do espaço expositivo, ícone da intervenção sobre o espaço –, Nuno Sousa Vieira não só o des-cobre, iluminando-o no seu traço histórico, como o enche de luz, torna-o fonte e nascente da criação desta exposição, ocupando o lugar mais digno e distinto do espaço, subtilmente expressando, através da individualidade das furações discretas e singulares, que diluem a fronteira entre as materialidades exteriores e interiores da obra (referência sugerida pela enunciação da obra Two Together, de 2017), cujo minúsculo desenvolvimento cónico, de viés, demonstra como o aberto no interior supera o cerrado no exterior, que o chegar da luz, que o chegar à luz, acarretam a excentricidade do acto de ver,

Inspirando o título da exposição, Ícone é capital nesta exposição. Não deixa de assinalar-se que o díptico Interior / Exterior, a outra obra apresentada cuja materialidade é sua análoga no processo escultórico de composição tridimensional sem apropriação, incorporação e reutilização de algum objecto histórico, é disposto na parede que lhe é mais oposta, segundo o diâmetro de um movimento circular – e nele, a indeterminação entre início e fim, avanço e recuo – que o visitante é induzido a percorrer no espaço expositivo, ademais seguindo a mão contrária segundo o arranjo do conjunto das obras apresentadas.

Sublinhando o refinado zelo e minúncia do trabalho de Nuno Sousa Vieira, a atencão ao espaço expositivo estende-se também aos diálogos com as obras que empregam materiais recolhidos no seu atelier-fábrica. O seu olhar sagaz retém os anéis metálicos cravados na pedra do arco da capela, e os entortecimentos e ferrugens da sua história, os quais, outrora, suportaram um portão metálico, e de que se apropria na obra que os incorpora como elementos da composição (Porta de Homem). Provocador nato, tão dado à convivialidade entre contrapostos, face ao des-cobrir da parede interna da ermida em Ícone, o revestimento mural arrancado da parede do atelier-fábrica re-cobre a parede externa daquela, não sem abdicar da referência cromática à proveniência (De olhos pregados além-chão). Provocação menos notória talvez, porém sublinhando a imprescindibilidade do espaço expositivo ao ser e existir da obra, é a íntrinseca insuficiência estática da obra que requer um suporte adicional que não lhe pertence (Deixar para trás).

As analogias e diálogos entre o atelier-fábrica e a Ermida N. Senhora da Conceição enfatizam uma mais omnipresença em todo o trabalho de Nuno Sousa Vieira, emoldurável por abordagens dimensionais e adimensionais, materiais e imateriais, à ideia de escala, confrontando o humano e o sobre-humano.

Habitando um espaço cuja amplidão o supera, Nuno Sousa Vieira cria a obra com escala determinada pelo alcance óptico do seu olhar e mão humanos. Nesta consciência, em que o Homem-humano se conhece segundo o limite da sua condição, a altura de 1,85m determina a dimensão de Olhar para trás. Em sentido outro, esta obra faz ressoar a valorização renascentista do Homem-criador e exalta a dignificação humana, através da referência vitruviana na exacta e rigorosa sustentação do aro circular à mesma altura pela composição-construção escultórica criada pelo artista. Igualmente, de um portão de camiões imensurável provém o aro de uma porta-de-homem alcançável, que levita como se imaterial mas é suportada no apoio auxiliar com a precisa e criteriosa dimensão do braço do artista (Porta de Homem”).

Tais como Ícone, na concepção e disposição destas duas obras, Nuno Sousa Vieira procura mais uma faceta do diálogo com a história do espaço expositivo, entre o mundo tangível e visível do terreno e o oculto adimensional e imaterial do sagrado e do divino. Respeitando, sem deixar de perturbar. Sem pudor, Deixar para trás implanta-se em plena sala do altar, ocupando-a, porém suporta a forma redonda, símbolo do universal e do absoluto. Com astúcia, na fronteira da capela entre o céu e a terra, Porta de Homem revela uma escolha, e inclina-se no espaço, porém abrindo-se à abóbada e ao cosmos.

Colocar-se em relação com o mundo que habita e conhecê-lo em toda a profundidade são interesses e inquietações sempre presentes em Nuno Sousa Vieira, suscitando uma meditação e problematização em torno do seu ver, que provocam permanentemente o sobressalto entre modos de olhar e pensar, uma insatisfação que persegue sempre o invisível e o desconhecido. Do excesso que acontece na desocultação poética do invisível que o seu trabalho cria e abre no mundo emerge uma espiritualidade, uma constante procura humanista de superação. Desassossegando o existir e ser do objecto, o revelar que acontece na obra de arte realiza a plenitude daquele, que tende para uma sublimação enquanto modalidade do belo. Enviesando o ver na criação agitadora da arte, o artista persegue o acontecer da elevação do seu próprio existir e ser, e convida o outro à individualidade do seu acto de ver, e da sua existência e essência no seu mundo que habita (“Há tantas perfeições quanto há homens imperfeitos”, Oscar Wilde). Em “Oculto”, e em todo a arte de Nuno Sousa Vieira, o acto de ver que desoculta é um farol, é a estrela luminosa, que guia o olhar através das opacidades do mundo exterior e das imensurabilidades dos mundos cósmicos, que abre no mundo interior uma contemplação do transcendente, uma concentração na totalidade, o pensar as coisas e o Homem, e indica que é lá onde cada invisível e desconhecido devem ser procurados, pois é lá que já estão, antes de cada princípio.

Ricardo Escarduça

Oculto

  • Nuno Sousa Vieira
  • 22 Maio 2021 - 17 Julho 2021
  • Instalação
  • Curadoria:Isabella Lenzi
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição
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