O rumor da Sibila

A dança, forma de expressão ancestral que cruza relações entre humanos e destes com a transcendência, reside ainda nesta performance como arquétipo dessa memória física e da higiene espiritual que recupera e reencontra formas diversas de expressão da identidade e do imaginário psicológico e ficcional. A dança, que transforma o corpo numa substância quase volátil, está na formação iniciática de Alice Joana Gonçalves e contribui para a sua prática artística no sentido em que desconstrói o protagonismo do corpo, tornando-o permeável às tensões que a artista desenvolve, recontextualizando o movimento desse corpo na integração do espaço em que se desenha. O corpo, enquanto ideia, encontra-se no lugar da reinterpretação das emoções e das capacidades que essa corporalidade possui para experienciar e transmitir uma simbiose física e emocional, constituindo-se como acção e atitude redentoras que projectam sobre o espectador uma aura densa e catártica que resiste à prática celebratória, mas que para esta artista procura a epifania.

Por outro lado, o trabalho de Alice Joana Gonçalves atravessa diversas filiações artísticas, não se detendo em nenhuma delas sob a égide de um estilo ou de um refúgio formal. A performance irrompe como uma necessidade coeva de ultrapassar limites entre as disciplinas e regras que incorpora nas suas obras, sejam estas últimas criadas em colaboração com outros artistas ou exclusivamente da sua autoria. Notre Dame inscreve-se nesta categoria autónoma e singular que define uma linguagem e uma forma de fazer.

Ao procurar auscultar a arqueologia simbólica e imagética da Catedral de Notre Dame de Paris, monumento milenar que evoca e reifica um importante momento do cristianismo na Europa, a artista convoca simultaneamente todo o correlato histórico que se expande para além do monumento, entre a literatura, a arquitectura, o cinema e o imaginário fantástico e místico que esta construção arquitectónica do gótico francês também presentifica.

A escolha de uma capela do século XVIII, a Ermida de Nossa Senhora da Conceição, hoje vocacionada para apresentar projectos artísticos sob a designação “Projecto Travessa da Ermida”, reforça a ideia central deste projecto performativo, no sentido em que o posiciona perante o público numa esfera relacional mais íntima e mais imersiva.

Contudo, a presente obra inscreve-se numa acção colaborativa com outro artista, projectando o trabalho de ambos numa segunda fase que nos dará a conhecer o olhar do outro. A colaboração com Julião Sarmento traz consigo uma repetição no tempo ancorada pelo registo fotográfico da performance Notre Dame. O mesmo que se repete é sempre o outro do que se quer repetir e fixar. Ou seja, uma outra performance terá lugar por entre imagens que surgirão como depósitos retinianos que perscrutam a aparente transparência do que se vê e a polifonia que lhe restar na memória. O tempo, tão presente nesta obra, constituirá para todos um intervalo espesso e denso, como uma construção que se edifica em cada momento da ausência.

Sobre esta dúplice esteira criativa, Alice Joana Gonçalves concebe uma obra que accciona diversos dispositivos ancorados por uma pesquisa específica em torno de Notre Dame. O canto polifónico, de autores como Perotin ou Leonin, estreitamente ligados à história da Catedral, forma a base para a construção sonora que envolve toda a acção. Também a arquitectura tem aqui uma contribuição na transformação do interior da ermida, elevando a posição das performers que se libertam do solo e precipitam os seus corpos nus – cobertos por um véu diáfano que, como uma segunda pele, apela à sua corrupção – sobre a exígua nave, dividida em dois planos. É importante referir que a nudez representada não pretende referir o corpo esteticizado: ao invés, é a nudez da pedra que a pele aparentemente coberta convoca. Estes corpos pétreos agem sob uma pulsão interior, quais gárgulas animadas por uma tensão dialéctica entre o corpo que irrompe de si mesmo e o torpor emocional que o liberta.

Nesta acção não encontramos personagens, caracteres definidos ou alegorias históricas. Porém, cada uma das figuras desvela uma empatia, uma particular singularidade pontuada em cada movimento, em cada corpo despojado. Seja este, singular, único e irrepetível, ou compósito, amplexo de si mesmo num outro que ainda se detém.

Notre Dame expõe-nos perante um embuste que se desenvolve em redor do corpo que fala sem voz. Do corpo que se transmuta pelo gesto numa linguagem por todos reconhecida na surdez da sua memória. Talvez Notre Dame nos chegue como um apelo que este quinteto feminino reclama à Sibila, figura de uma profecia apocalíptica cantada nos mosteiros da idade média, que nos conduz, ainda que por instantes, a deslocar o olhar que trocamos entre nós perante essa condição ambígua e refulgente entre o que se apresenta como profano mas é o domicílio reincarnado, humano e por isso mesmo sagrado.

João Silvério

Notre Dame

  • Alice Joana Gonçalves, Julião Sarmento
  • 28 Dezembro 2013 - 29 Dezembro 2013
  • Performance
  • Curadoria:João Silvério

  

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