Mist

A falta de concentração é uma das maiores patologias do nosso século.

Desde o momento em que a atenção se tornou numa preciosa moeda de troca para as multinacionais, o seu poder sedutor tem vindo a aperfeiçoar cada vez mais as técnicas que, gradualmente, esvaziam qualquer ação ou intenções pessoais. Uma das ferramentas mais eficazmente utilizada para captar a nossa atenção é o caos: imagens após imagens, vídeos silenciados que sucedem a vídeos com som, e qualquer outro tipo de informação não solicitada  é-nos rapidamente servido, com o principal objetivo de criar confusão.

Num cenário tão intempestivo, criar imagens que contenham significado e que sejam capazes de o manter é uma raridade.
E, se nesta extrema produção de símbolos desperdiçados, não formos capazes de relembrar o que outrora caracterizou o nosso ambiente?

O trabalho de Andreia Santana revela uma forma diferente de interpretar o mundo que nos rodeia.

Através da sua contínua investigação e prática artística incidindo sobre as histórias de alienação e agenciamento em arqueologia – iniciada por William Corliss -, e através da recolha de uma grande variedade de material de arquivo de diferentes períodos históricos, esta compilação denuncia os modos típicos de organização laboral em arqueologia – que conduziram à invisibilidade das contribuições dos trabalhadores de campo e, consequentemente, a objetos esquecidos.

O poder destes objetos reside no seu estatuto inclassificado. Neste caso, foram recolhidos mas nunca equiparados ao estatuto museológico de artefactos e, subsequentemente, negligenciados ao longo do tempo. São objetos, desenhos arqueológicos, descrições de campo, relatórios de escavadores ou, até mesmo, inscrições desconhecidas ou não identificáveis, e símbolos provenientes de diferentes períodos históricos.

Ao reunir estes documentos, a artista responde ao impulso humano de recolher vestígios do passado com a finalidade de construir novas hipóteses, novas interpretações e outras narrativas possíveis que possibilitam relações inesperadas entre diferentes objetos gerando novas vidas, ligações e pontos de vista.

Mais do que um convite, as obras de Andreia Santana são uma recordação. “Remember to remember” parecem estar a dizer. Mas também “do not give any aesthetic for granted”; “do not crystallize meanings”; “be a researcher”.

Atualmente, a única arma que podemos usar contra a furtiva falta de conhecimento é a investigação.

Mas como pode uma simples ação impedir a cristalização de significados?

Ao rejeitar qualquer forma de categorização tradicional, a sua investigação e prática visa questionar os métodos de ensino e aprendizagem, a fim de os repensar em termos de fluidez e passagem contínua entre fases, significados e períodos históricos. A abordagem horizontal desenvolve a ideia de uma estrutura que evita hierarquias e que, acima de tudo, não concebe o estudo como uma forma de controlo capaz de excluir algo ou alguém.

Assim sendo, o repensar a investigação como uma ação isenta de passividade e cristalização pode tornar-se uma escolha frutuosa na interpretação do nosso passado e, aventurosamente, o nosso futuro. “Só a partir da des-identificação pode surgir uma comunidade não opressiva. Uma sociedade não autoritária não pode basear-se na comunidade de ser, mas apenas na comunidade de se tornar; não na comunidade de memória, mas apenas na comunidade de experiência; não na comunidade territorial, mas na comunidade de pessoas nómadas que se encontram provisoriamente algures, e que a voltarem a dispersar-se, encontrar-se-ão quando quiserem”.[1]

Para a exposição “Mist”, foram concebidas duas obras inéditas especificamente para o espaço e arquitetura da Ermida. Numa tentativa de serem assimiladas enquanto “seres vivos”, são passíveis de serem tocadas, rodadas e manipuladas, permitindo mudar a sua disposição, ao mesmo tempo que a sua paleta cromática se transforma incessantemente. A luz viva realça as esculturas, abrindo caminho a uma seleção caleidoscópica de tonalidades, dando a possibilidade às suas formas para se fundirem com as qualidades intrínsecas do espaço de exposição.

A maior ambição destas “esculturas vivas” de Andreia Santana é absorver qualidades vivas tanto quanto o possível, a fim de reforçar o seu poder que as faz perdurar no tempo.

Além disso, livres para serem interpretadas e associadas entre si, estas esculturas representam a luta contra qualquer forma de categorização que, ainda hoje, as renova evitando o universo estagnado das coleções e arquivos museológicos.

Alberta Romano

[1] Bifo Berardi, Breathing: Chaos and Poetry. 2019

Mist

  • Andreia Santana
  • 12 Setembro 2020 - 17 Outubro 2020
  • Instalação
  • Curadoria:Alberta Romano
  • Localização:Ermida N. Senhora da Conceição
  • Ver Publicação

  

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