Pelo Avesso das Teias

“The history of our attention, in other words, is one of the stories of our lives.” (Adam Phillips, Attention Seeking!)

Talvez as meias distâncias do nosso olhar, que ocupam uma extensão que vai da visão de conjunto às imediações tácteis do contacto, não pertençam ao espaço natural do desenho. Para cobrir esse intervalo é preciso, geralmente, um plano, um programa, e quando o desenho a tal não é obrigado, tende a prescindir dele, desse intervalo — possivelmente por considerá-lo distrativo… As atitudes na abordagem de qualquer assunto são, no fundo, duas, como lembra François Jullien: (…) ou construímos uma forma modelo que projetamos sobre a situação, o que implica imobilizá-la momentaneamente; ou nos apoiamos na situação como numa disposição que sabemos não cessar de evoluir” [i]. Mas ao desenho são geralmente estranhas as aproximações estratégicas, excessivamente estruturadas, faseadas [ii]. É que o desenho não é uma imagem como as outras: ele assenta no contacto, na dobra criada sobre o fazer, na consciência e duração das escolhas e procedimentos que o constituem. “O desenho é”, como diz o antropólogo Tim Ingold, “o registo gráfico do gesto observacional que segue o que está a acontecer”.

O trabalho de Cristina Lamas incide, precisamente, sobre esse singular modo de perceção do desenho que prescinde das distâncias intermédias, centrando-se integralmente sobre as suas extremidades: o longe e o muito perto. De um lado, na distância, estão as imagens que do mundo o desenho se permite evocar, recuperar, (re)avivar. Integrante, este é um espaço que pressupõe operações de externalização da imagem, geradoras de eco, mas ainda capazes de convocar a materialidade que está no mundo. Do outro lado, numa atenção que está nos antípodas da primeira, está a dimensão do contacto que caracteriza o próprio fazer do desenho, um olhar próximo e minucioso sobre as coisas ínfimas, a vibração das superfícies. É um fazer que elimina e exclui as outras distâncias, obriga a uma perceção fina, que toca e faz eco do que vem dos lados do mundo, uma perceção que acompanha o ritmo do próprio desenhar — uma perceção que é, ao mesmo tempo, artesanal e ritual, quase litúrgica.

A ponte que une estes dois modos extremos de perceção é, aqui, uma grelha regular, geométrica, que permite neutralizar os ruídos inoportunos das zonas intermédias da perceção — onde espreitam, latentes, as armadilhas, as interpretações, os comentários. Porém, a geometria que regra esta superfície não é a mesma do matemático. Ela está mais próxima da geometria que define a teia da aranha, com as suas interrupções, alterações, acidentes e rasuras. A sua eficácia não depende do rigor modular da medida, é antes um dispositivo regulador do fazer, uma matriz silenciosa que permite ao desenhador habitar a dobra do fazer, com a consciência do procedimento que sustenta esse mesmo fazer. Através dela, o desenho pode seguir as coisas ao mesmo tempo que as precede.

Tradicionalmente, no pensamento ocidental, a operação da rasura opõe-se sempre à perfeição, ao domínio, à mestria. Noutras culturas não é, todavia, assim. É interessante notar que a tradição clássica oriental, nomeadamente a chinesa, admite a rasura nas suas mais evidentes manifestações. Como observa Yolaine Escande[iii], a ética e a estética chinesas valorizaram sempre as qualidades como a simplicidade, a rasura, a inaptidão, o singelo, o bizarro, o grotesco e mesmo o feio – como reação a uma procura demasiado formal. (…) A rasura parcial é tradicionalmente aceite; por exemplo a maior obra-prima de todos os tempos na China, o ‘Prefácio à coleção do Pavilhão das Orquídeas, de Wang Xizhi (303-361d.C.), contém rasuras. Segundo a tradição, a rasura é considerada como um vetor de expressão e de verdade. É apreciada, em primeiro lugar, a força, a potência e o traçado que parece atravessar o papel.”

O trabalho da rasura equivale ao da inscrição. É um labor semelhante ao trabalho das tecedeiras, que ocorre na frente, como no avesso do pano. Chegam-nos, destes desenhos, ecos de um ritmo artesanal antigo, o fazer demorado e paciente das tecedeiras. Mas trata-se de uma tecelagem mais próxima daquela que nos conta Ovídio, o poeta que fixou a mais elaborada versão do mito grego — onde as transformações, o fazer e o desfazer, a metamorfose, tomavam conta do mundo dos deuses e dos homens.

Ou, talvez, no desenho a rasura, o erro, o acidente corresponda, mais precisamente, ao movimento vibratório da aranha na sua teia, a ressoar a cadência da brisa ou os movimentos do inseto… nela aprisionado. Um trabalho que é tão acústico quanto é visual. Tal como acontece com as operações de manutenção que a aranha faz na geometria da sua teia, as rasuras dos desenhos de Cristina Lamas, ocupando o mesmo plano das demais inscrições, testemunham uma fluidez que persegue, demoradamente, o caminho da maior disponibilidade, da menor resistência. Nestes desenhos a representação reside essencialmente na relação que eles estabelecem com a materialidade da qual são ecos, ou ressonâncias. Excluídas as distâncias intermédias, os desenhos de Cristina Lamas tendem para uma invisibilidade silenciosa, um ritmo que tudo absorve: os referentes, os desenhos… e a própria desenhadora. Ritmos que sugerem os cânticos [iv] que, por sua vez, sustentavam histórias e narrativas a cujo significado não é já possível aceder ou decifrar — mas que os desenhos ainda intentam alcançar… ou, pelo menos, através dessa mesma impossibilidade, identificar o lugar desse fantasma perdido.

A própria viagem ao longo do rio Amazonas, que está na origem do trabalho do qual estes desenhos são o primeiro momento de uma “marginália”, incorpora esta mesma conceção das extremidades da perceção. Com efeito, um modo de viagem corresponde sempre a uma disposição, a um modo de atenção. “Aquilo que estamos à procura, são oportunidades com desenlaces incertos”, lembra Adam Phillips. “É disso que trata a nossa atenção — quando não está a ser convocada, em contracorrente, para nos proteger de um futuro desconhecido. Há uma atenção que serve para nos tranquilizar e uma atenção que serve para outras coisas [v]”.

No espaço desta exposição na antiga capela da Travessa da Ermida, as manifestações paralelas — a inscrição na parede, a pequena pintura trazida da viagem amazónica (da autoria de um artista local), a samambaia e as fotografias extraídas dos registos da viagem não estão lá para complementar significados ou para encerrar um círculo de imagens. Elas cumprem apenas uma função elementar: confirmar que a materialidade das coisas existe — aquela mesma que permitiu ao desenho emergir.

Philip Cabau

[i] François Jullien, in Tratado da Eficácia, Lisboa: Edições Piaget.

[ii] Referimo-nos, evidentemente, ao desenho nas artes plásticas, uma vez que nos espaços projetuais da arquitetura ou do design o uso do desenho segue o desenvolvimento necessário ao trabalho profissional dessas áreas.

[iii] Iolaine Escande e Yolaine Escande, in Résonance Intérieur, Langres: Klincksieck (p.166)

[iv] As tapeçarias de motivos geométricos dos Shipibo Konibo, uma etnia da Amazónia peruana que integrou os lugares da viagem de Cristina Lamas, são o registo de histórias cantadas que as bordadeiras emitem enquanto executam e que conseguem voltar a “ler” a qualquer momento.

[v] Adam Phillips, Attention Seeking!. London: Penguin (p.23)

 

Marginália P.21

  • Cristina Lamas
  • 20 Julho 2019 - 24 Agosto 2019
  • Desenho, técnica mista de guache, caneta, grafite e lápis de cor sobre papel de algodão

  

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