Para uma contemplação carinhosa da angústia

O título acima é citado de uma dessas enigmáticas expressões de Agustina Bessa-Luís cuja significação paira por sobre a expectável nitidez do sentido para se suspender num plano paradoxal tão ao gosto da escritora. Ela diz, por outro lado, essa paradoxalidade própria do discurso feminino que, tantas vezes, contém termos que julgaríamos aparentemente opostos, abrindo infinitamente a ordem do sentido aos múltiplos desdobramentos livres da linguagem. 

A contemplação, sendo carinhosa, aparentemente não deveria sê-lo da angústia. Mas é afinal esse mesmo paradoxo que, subitamente, parece gerar uma espécie de dissociação entre o sentido e a expressão, entre o dizer e o dito que, ferindo o tecido do dizer, em vez de a ofuscar ou obscurecer, pelo contrário ilumina a linguagem por dentro, forçando-a a dizer aquilo que, nela, é da ordem do inconsciente (Lacan dizia que o inconsciente se organiza como linguagem) ao pronunciar, no próprio interior dessa suspensão, qualquer coisa que inscreve a autenticidade dos sentimentos e que prescreve os termos de uma razão outra, menos presa da razão do que de outras forças que nela também agem.

Com efeito, um sentimento não se diz: balbucia-se, quando muito. O sentimento procura a linguagem mas inevitavelmente esbarra nela, tropeça nela, incapaz de a dominar e de se dizer totalmente nela e por ela, já que um sentimento, na sua complexidade de forças e de vontades múltiplas, todas verdadeiras ao mesmo tempo, não pode resumir-se num único plano do dizer e do sentido. Os sentimentos, saindo inevitavelmente feridos do seu embate com a linguagem que os não diz, deverão por seu turno ferir o sentido para, nesse abismo assim aberto, em que o sentido momentaneamente se suspende, dizer a sua multiplicidade, tantas vezes contraditória nos termos. 

Assim também nas imagens da arte que, rasurando constantemente as dimensões do já visto, ou do representado, precisam de ferir esse sentido do representável e do reconhecível, para dar a ver alguma coisa que é, em si mesma, da ordem do irrepresentável, mas que no entanto, na suspensão, breve seja ela, do representado, podem aflorar como outras formas subitamente tornadas visíveis. Outras formas do comportamento, dos sentimentos, das afecções, dos desejos, em suma, do imaginário.

Sara Maia, em conversa com Anabela Mota Ribeiro, esclarece-o completamente: “E o que seríamos sem nenhuma censura interior? Seria impossível a convivência, se fôssemos totalmente honestos; e, sublinho o “totalmente”, corre-se o risco de ser cruel. Todos já usámos a “mentira piedosa”. Então, estamos a ser verdadeiros ou humanos? Qual é o meio termo entre a transparência e a crueldade?

A questão coloca-se precisamente neste plano em que a artista lucidamente a enunciou. Não haverá, nem poderá haver, um meio termo entre transparência e crueldade? Ou a transparência é a própria crueldade já que, tal como nas narrativas infantis dos contos tradicionais, em que ascende uma estranheza profunda alojada no próprio interior do que nos é mais familiar (Freud chamou-lhe uneimliche), há uma explicitação do não-dito, do obscuro, do inimaginável, sempre que se torna transparente a intenção que moveu um determinado gesto ou um determinado comportamento? 

Ser humano, então, e por paradoxal que pareça, precisamente não é o natural. Ao contrário, o ser-se humano é antes da ordem de um tornar-se, é uma conquista permanente de um meio termo (imaginário) que não há (enquanto real). É um esforço, cultural, voluntário, racional até, para se desviar do instintivo, do imprevisível, do que seria verdadeiramente o natural. Porque, enquanto tal, o humano é propriamente o território de uma intempestiva convulsionalidade, em que os sentimentos contraditoriamente ditam comportamentos que se desajustam de qualquer razoabilidade. Seja no que figuramos como da ordem do negativo, seja do positivo. 

É tão pouco humano, nesse sentido, o comportamento do santo como o do delinquente, já que ambos se movem num limiar da sua humanidade, um do lado ascendente, outro do descendente, face aos valores, mas um e outro fora de qualquer suposta “normalidade”. Ser humano, ou antes: tornar-se humano, é pois um incansável esforço de (re)construção e de normalização de si-mesmo, que cada um se impõe introjectando uma ficção de humanidade em função de valores e de normas sociais e culturais que se vão apreendendo, nomeadamente através da educação e dos exemplos múltiplos que a integração social, familiar, etc., cuidadosamente veiculam. Fora dela, dessa permanente e firme construção de si no âmbito da vida social, se o humano vai ao reencontro apaixonado do seu fundo eco animal, livre da norma, terá que fazê-lo à custa de sofrer  ilimitadamente. 

Um sofrimento cego, sem consciencia, que se volta contra o próprio, e que configura em grande parte aquilo que costumamos chamar alienação. Já que esse abandono do campo social, pelo afastamento, ao mesmo tempo, da norma e do valor social que cada um introjecta para se integrar na comunidade, e ao contrário do que pensou Freud – que entendia que era pelo livre exercício dos seus impulsos que o humano se reaproximava das forças originais da vida – não é um movimento de libertação da ordem do que também Freud designou como “o princípio do prazer” mas, ao contrário, do foro da “pulsão de morte”, para retomar os seus termos. Assim, ao libertar em si esse eco obscuro do animal primário, o humano vê-se irremediavelmente preso das teias do não-sentido em que prazer e sofrimento se confundem num estreito fio que poderíamos designar como do in-humano.

A crueldade (ou a in-humanidade) de que fala Sara Maia, então, é o desocultar dessa cortina atrás da qual se abrigam os convulsivos sentimentos em que emergem, com igual valor, prazer e morte, afirmação de vida e pulsão do horror, vontade de libertação e queda na perda de sentido. A crueldade é, no caso da criação artística, que é o que aqui importa, a capacidade de pôr à vista essa infinita convivência com o in-humano da vida e do humano. O/a artista é, desse modo, precisamente aquele/a que se entregou a uma contemplação carinhosa da angústia, sendo capaz de a enfrentar em si e nos outros. Porque no território desta arte não há vítimas nem agressores, todos são ao mesmo tempo um e outro, já que a estas personagens pedem clamorosamente afecto mesmo se a sua é uma linguagem pouco mais que balbuciada, feita no extremo se não mesmo na margem de toda a linguagem.

O artista é então aquele que o contempla em si, já que no processo do seu conhecimento faz o re-conhecimento e o enfrentamento em si de toda essa massa irracional que percorre as pulsões. Nos outros, já que os outros se vão transfigurando em matéria da sua própria adivinhação. De um ponto de vista antropológico, o papel da arte – foi Antonin Artaud quem, nos tempos recentes, talvez melhor o compreendeu, no seu magnífico O teatro e o seu duplo – pode ser (e é-o, de facto, muitas vezes) o de operar uma catarse. 

A contemplação da angústia, portanto, sendo o carinhoso descerrar dessa cortina que esconde a multiplicidade das pulsões, é então a abertura para esse ecrã do fantasma que cada arte minuciosamente revisita nos seus termos (veja-se o cinema de Lynch ou o de Almodovar), e ela, como se disse já, pressupõe o afrontamento de toda a massa informe do imaginário e da produção de inconsciente (nos termos de Deleuze). A própria artista o referiu quando disse: “a outra parte é inconsciente e nem eu domino totalmente. Isso é o que pode dar lugar a uma coisa mais interessante: a surpresa. Eu olho para o que faço e penso: “Que engraçado, fui eu que fiz isto?, do que é que estou a falar?, de quem?”. Essa é a parte que mais me diverte.” A dimensão da surpresa ou, dito de outro modo, do jogo, do inesperado que aos poucos se revela, é o traço de união que faz a ligação entre o princípio do prazer (o que diverte) e a pulsão de morte (a violência das imagens).

O strip-tease de uma octogenária abandonada à sua sorte e ao seu sono num berço, que assim se metamorfoseia em bébé, qual personagem kafkiana em que coincidem origem e fim, na sua enorme crueldade expressiva, visualmente sobrecarregada, exprime o desejo de uma sexualidade imaginária, fantasmática, que a velhice não descarta, e que a religa às imagens da infância onde a vida se inicia como potência, em paradoxal coincidência com o seu fim. Em outra obra, um homem adulto de olhar perdido e melancólico senta no colo uma mulher-criança cujas mãos decepadas e pousadas sobre uma mesa tosca acusam a sua situação indefesa. Mas também o homem parece indiferente à cena, já que, estático, deixa o olhar perder-se num lugar qualquer fora do quadro.

Os dois habitam um território de fantasmas, que nenhuma realidade anima, indiferentes a si e ao seu destino, aparentemente ligado por invisíveis fios. Os olhos de ambos, inexpressivos, fixam-se num vazio que a sombra em torno das figuras já prepara. Um lado da sombra que se apossa lentamente de tudo.

Noutra obra ainda, há uma mulher debruçada sobre uma banheira onde jaze um homem, não sabemos se vivo ou se morto, que se entregou a uma espécie de coma alcoólico. Uma vez mais as figuras parecem habitar um universo de indiferença ao que as rodeia, fechadas no seu próprio ensimesmamento, que as faz pairar num plano puramente imaginário. O que se reforça quando, em outro quadro de Sara Maia, um homem encapuzado transporta uma mulher cujo escafandro contrasta com a situação de abandono em que se encontra. Lentamente nestas imagens tudo parece deslizar para o lado de um clima sufocante, de quase pesadelo, em que as figuras se abandonam a um destino que lhes está marcado para além de qualquer vontade ou arbítrio próprios. Ao contrário, elas são os sujeitos de pequenos dramas em cuja acção não tiveram qualquer papel e a que se abandonam sem remédio, deixando-se deslizar para esse destino sem qualquer hipótese de se redimirem do que nele as lançou. Não são personagens em busca de um autor, se não aquelas que foram abandonadas de qualquer autor. Como num mundo sem deus, elas caminham, erráticas, ao sabor de circunstâncias que parecem forjadas no mais profundo dos seus próprios sonhos.

E carinhosamente a artista as contempla, e lhes dá vida, arrancando-as por um breve instante à sua condição de fantasmas que pairam algures entre a vida e a morte.

Bernardo Pinto de Almeida

Setembro 2009

 

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