Losing my religion

 

“Life is bigger / It’s bigger than you / And you are not me / The lengths that I will go to / The distance in your eyes / Oh no I’ve said too much / I set it up / That’s me in the corner / That’s me in the spotlight / Losing my religion / Trying to keep up with you / And I don’t know if I can do it / Oh no I’ve said too much / I haven’t said enough / I thought that I heard you laughing / I thought that I heard you sing / I think I thought I saw you try / Every whisper / Of every waking hour / I’m choosing my confessions / Trying to keep an eye on you / Like a hurt lost and blinded fool / Oh no I’ve said too much / I set it up / Consider this / The hint of the century / Consider this / The slip that brought me / To my knees failed / What if all these fantasies / Come flailing around / Now I’ve said too much / I thought that I heard you laughing / I thought that I heard you sing / I think I thought I saw you try / But that was just a dream / That was just a dream”.

R.E.M.

A realidade à volta, parece nos mergulhar em inumeráveis conflitos de guerra, alguns originados por uma certa intolerância religiosa, que nos lança para uma nova idade média, obscurantista no seu carácter impiedoso. “Como “falar de religião”? Da religião? E da religião, hoje, singularmente? Como ousar falar dela no singular sem temor e tremor neste dia? E tão pouco e tão depressa? Quem teria o impudor de pretender que se trata de um tema ao mesmo tempo identificável e novo? Quem teria a presunção de lhe ajustar alguns aforismos? Para nos darmos a coragem, a arrogância ou a serenidade necessárias, talvez devamos fingir fazer por um instante abstracção, abstracção de tudo, ou de quase tudo, uma certa abstracção. Talvez devamos recorrer à mais concreta e mais acessível, mas também mais desértica das abstracções”, questiona Jacques Derrida, para concluir com uma outra indagação: “Deveremos salvar-nos pela abstracção ou salvar-nos da abstracção? Onde está a salvação? (Em 1807, Hegel escreve: “Wer denkt abstrakt?”: Denken? Abstrakt? – Sauve qui peut!” salve-se quem puder, começa ele por dizer, e justamente em francês, para traduzir o grito – “rette sich, wer kann!” – do traidor que queria pois fugir, com um só movimento, tanto do pensamento como da abstracção e da metafísica: como da “peste)”[i] .

No seminário em Capri, que resultou no livro A Religião, filósofos Maurizio Ferraris, Hans-Georg Gadamer, Aldo Gargani, Eugenio Trías e Vicenzo Vitiello, dirigidos por Jacques Derrida e Gianni Vattimo, discutiram a importância, ainda hoje, na sociedade pós-industrial da sua pertinência e do “fenómeno, a que erradamente se chama “renascimento da religião” (no interior dos parlamentos, do terrorismo e dos media, mas ainda do que nas igrejas, cada vez mais vazias), será na realidade outra coisa que não a “morte de deus”? [ii] Mantidos em territórios intramuros, os conflitos étnicos – religiosos acirram-se nas últimas três décadas, resultando em imagens espectaculares, transmitidas em directo. Os conflitos da Bósnia, da Croácia, da Albânia, da Sérvia, de Israel-Palestina, da Cachemira, etc… O mundo assiste a uma nova cruzada, opondo de um lado legiões de refugiados, degredados, deserdados, sem pátrias, sem origens, com a morte a espreitar em estado permanente, e do outro lado, os senhores da guerra. Os conflitos acirram-se sobretudo após o evento do 11 de Setembro, polarizando ainda mais a divisão Ocidente X Oriente. A religião ocupa hoje um papel central quer nas querelas geopolíticas, quer nas especulações filosóficas e artísticas. Quando escritores como Salman Rushdie e Michel Houellebecq se preocupam com o poder dado à religião e sua permanente disposição para conflitos, é vital perguntar-se por quê e para quê? Dois dos mais importantes autores ocidentais contemporâneos – um de origem muçulmana e outro de origem protestante – criticam a religião, ou a importância dada a esta no seio da sociedade, evocando a ira de todos os lados. Sobre Rushdie pesou-lhe uma fatwa por longos anos por apenas ter escrito uma obra de arte que contrariava alguns dogmas. Houellebecq, um ferrenho opositor das religiões, propõe o seu fim afirmando que a única saída socialmente aceitável é a arte.

No território da historiografia da arte, será talvez o desafio maior para um historiador, lidar com o peso do poder da fé sobre o imenso tesouro artístico, propondo uma análise sem conflitos deontológicos? Poderíamos pressupor que já não se está diante de uma ética normativa, mas sim descritiva e inclusive prescritiva, i.e. uma deontologia profissional. A deontologia fundamentada por Kant[iii] necessita de dois conceitos que lhe dão sustentação: primeiramente a razão prática e a seguir, a liberdade. Agir por dever é o modo de conferir à acção o valor moral; por sua vez, a perfeição moral só pode ser atingida por uma vontade livre. O imperativo categórico no domínio da moralidade é a forma racional do binómio ser-dever, ao submeter a vontade à obrigação, o predicado obrigatório da perspectiva deontológica designa, na visão moral, o respeito de si. Pois a deontologia refere-se ao conjunto de princípios e regras de conduta, ou deveres inerentes a uma profissão. Neste caso, o conjunto codificado das obrigações impostas, aos profissionais de uma determinada área, no exercício de sua profissão. São normas estabelecidas pelos próprios profissionais tendo em vista, não exactamente a qualidade moral mas, a correcção de suas intenções e acções, em relação a direitos, deveres ou princípios, nas relações entre a profissão e a sociedade.

O tema afinal tem consonância com muitas temáticas no contexto internacional, onde os artistas se lançam às categorias anteriormente consideradas minoritárias, e naturalmente excluídas do campo da arte nas palavras de Douglas Crimp[iv]. Foi a partir de alguns ensaios de Criselda Pollock – e posteriormente nas mostras Masculin & Feminan; In, of, and from the feminine; Les Immatériaus; Magiciens de la terre e Cosido y Crudo, onde temáticas como género, sociedades autóctones, religião e sexo foram abordados. As imagens religiosas no entanto não são novidades na arte, são o seu próprio fundamento e iniciação, pois é inegável a contribuição das religiões na formação daquilo que se convencionou a chamar de Arte Ocidental[v]. E neste momento em que muitos artistas se voltam para o passado e criam obras cujo repertório visual, convencionamos a denominar de pós-modernidade. As imagens religiosas constituem  um arcaboiço e um alento espiritual, idem.

 

Essa mesma contribuição é dada pelo artista Albano Afonso ao centrar a sua produção referenciada nas imagens e nos autores ícones da história da arte. Como astuto codificador, Albano procura arrancar do espectador a (sua) visão e o (seu) conhecimento de arte, sendo esta a maneira que torna possível o compartilhar do (seu) jogo visual. O código para a compreensão de sua obra está então no conhecimento antecipado da arte, reconhecimento num a priori, reconhece-se e integra-se ao jogo, ou desconhece-se e fica-se fora. Albano resgata grandes jogadores visuais da história da arte ocidental – Durer, Caravaggio, La Tour, Vermeer, Velásquez, outros menos mas de igual valor. Para além da apropriação das cenas destes trapaceiros visuais, Albano cria obras espaciais a combinar a fotografia, a instalação, o vídeo e a luz para uma representação que demonstra a eficácia do meio. A auto-representação, ou a reencenação de alguns quadros míticos da história da arte ocidental, é sua resposta para saber como e porquê alguns artistas acabaram por se tornar paradigmas absolutos da visualidade. No seu repertório de criações – citações, seus auto-retratos são entremeados com retratos de Durer, de Degas, de Delacroix, de Courbert, de Picasso, de van Gogh, de Mondrian, de Rubens, entre outros, em séries onde mistura duas imagens diferentes, gerando outra através de recursos como cortes, incisões, espelhos; ou então (re)cria obras incontornáveis de autores renascentistas e barrocos. Destas séries (Pictogramas Iluminados) destacam-se as imagens de Adão e Eva; a Anunciação, o Batismo de Cristo; o Martírio São Pedro, a Conversão de São Paulo e Lucrécia. O sentido transcendente apropriativo e reverente ao passado é o dogma de criação artística para Albano Afonso pois a Arte é sua religião[vi].

A história é o maior argumento para compreender a motivação de um artista como Daniel Blaufuks. Suas pequenas narrativas, circunscritas às histórias pessoais, que no fundo são colectivas, abordam a estranha tautologia do esquecimento, do forçoso esquecer para poder lembrar. Memória e esquecimento vêm à superfície exalando o odor dos testemunhos e das narrativas anónimas que carregam suas histórias, dos seus antepassados, os êxodos de algumas civilizações, cujo elo perdido assenta na língua e na religião como cultura, num palimpsesto. Feita de repetições e gestos, que se repetem por séculos sem começo nem fim. Um dos mais influentes pensadores sobre religião, Károlyn Kerényi diz que “as ideias religiosas não estão aí, com mais razão, para responder a perguntas. As religiões não são soluções para problemas antiquíssimos. Elas aumentam, antes, o número de problemas de uma forma considerável. Primeiramente, de tal modo que as ideias religiosas e seus desenvolvimentos mitológicos se tornam pressuposições do perguntar e do responder”[vii]. Daniel Blaufuks não é religioso strictu senso porém a sua obra é uma indagação sobre razão e fé, sobre pertencer a uma cultura que é determinada por uma religião ou por um acto de crença! Daniel parece perguntar como me reconheço, nos reconhecemos? O que é ser judeu, ou ser católico, ou ser muçulmano, ou ser protestante; ou ainda branco, negro ou mestiço; ser heterossexual, bissexual ou homossexual, ser homem ou ser mulher? Como posso me reconhecer? Devo, antes de tudo crer que pertenço a alguma raça ou religião e como tal (não) terei salvação? “ O enigma é decifrado, pois existem muitas maneiras de se narrar uma história, seja pela investigação científica, procurando ater-se aos factos, seja pela interpretação, defendendo uma abordagem particular. A arte que se pretende verdadeira procura unir as duas pontas do fio. Penso ser assim que Daniel Blaufuks aborda seus temas e personagens – retirando da investigação minuciosa, científica e filosófica as razões interpretativas de sua exibição violenta. Antes prefere a abordagem fenomenológica husserliana, incitando o espectador a construir sua própria narrativa, a partir de fragmentos e indícios que o artista oferece. Seu papel é de intérprete, ou se quisermos um lugar mais propício, de mediador dialéctico de uma história que não lhe pertence / lhe pertence[viii]”.

Pátria e a religião conjugam-se na obra de João Pedro Vale, para ele é a possibilidade de desmontar os mitos. Sua observação de valores bafientos é tratar com a mais fina ironia o passado que enche de orgulho. João Pedro Vale vê a religião como a camada mais fina desta pele, que recobre o chamado nacionalismo pátrio – português. Sua Passarola é a resposta iconoclasta à do sacerdote luso-brasileiro Bartolomeu de Gusmão, inventor da passarola. O escritor José Saramago (símbolo da portugalidade – depois de Camões e Eça), em seu livro “O Memorial do Convento” localiza a construção secreta da Passarola de Gusmão dentro de uma igreja, quiçá, para realçar o facto de ser sacerdote ou deixar uma história em aberto para criar novas histórias! Com efeito, a Passarola de João Pedro Vale tem a mesma verve histriónica de Fortuna, uma escultura feita de falsas moedas de ouro, de jóias e de pedras preciosas. O tema religioso permeia ainda a instalação Misericórdia, um conjunto de esculturas feitas a partir da ideia do tesouro nacional, desde a Custódia de Belém, a Cruz de Sancho, o Relicário de D. Leonor, a Custódia da Bemposta, entre outros tesouros religiosos históricos lusos. As peças originais são gloriosas jóias, feitas com o ouro d´além mar, fundidas sob o sangue dos negros escravos. As reluzentes, esfuziantes e sarcásticas peças históricas de João Pedro Vale, são fakes, produzidas com pratas de chocolates, papéis de rebuçado, penas, ceras, caricas, maços de tabacos, entre outros materiais vulgares, cuja alegoria coquete é evocada com cortante humor. Evitando a citação óbvia e a simples deslocalização contextual, João Pedro Vale recupera a magia das obras originais, perseguindo sempre uma prática transgressiva de experimentação através de uma estratégia em que testa e trabalha as formas, referências e características de identidade, utilizando operações de adição, subtracção, ou conversão de um significado em outro. A obra de João Pedro Vale conjuga história, arte, cultura, sexualidade, mitos e ritos locais para alçar a imortalidade que somente a obra de arte é capaz. Irónicas e bem-humoradas, faz-nos rir das nossas pequenezas, salientando que tudo é ilusório neste mundo de aparências, de simulacros.[ix]

Losing my religion é um contraponto sobre a perda da fé do homem na sua capacidade de diálogo, de através da sabedoria, da cultura e da arte, se regenerar. Era nisso que acreditavam os filósofos do encontro de Capri; era nisso que acreditavam Edward Said e Daniel Barenboim ao criarem a sua escola de música unindo palestinianos e israelitas pela arte; É nisto que temos que acreditar: no poder da arte como árbitro da fé no Homem.

Paulo Reis

Notas:

[i] Derrida, Jacques; Vattimo, Gianni e outros; A religião; – Lisboa: Relógio D´Água, 1997.

[ii] Vattimo, Gianni, Idem.

[iii] Kant, Immanuel; Crítica da razão prática; – Lisboa: Edições 70.

[iv] Críticas – Ensayos sobre las políticas de arte y la identidad,-  uma selecção de ensaios de Douglas Crimp; – Madrid: Akal, 2005.

[v] Gombrich, E. H.; A História da Arte; – Lisboa: LTC editora, 1999.

[vi] Reis, Paulo, Criação e revelação in Albano Afonso; – Santiago de Compostela: Dardo ds, Casa Triângulo Galeria de Arte, Galeria Fernando Pradilla e Galeria Graça Brandão, 2006.

[vii] Kerényi, Károly,  ideia religiosa do Não-Ser, in Estudos do Labirinto; – Lisboa: Assírio & Alvin, 2008.

[viii] Reis, Paulo, Escavando e recordando, in O ArquivoUm álbum de texto – Daniel Blaufuks; – Lisboa: Vera Cortês Agência de Arte, 2008.

[ix] Reis, Paulo, João Pedro Vale; – Santiago de Compostela: Dardo ds, MACUF e Galeria Filomena Soares, 2007.

 

 

Losing my religion

  • Albano Afonso; Daniel Blaufuks; João Pedro Vale
  • 31 Janeiro 2009 - 31 Março 2009
  • Instalação
  • Curadoria:Paulo Reis
  • Ver Publicação

  

Projecto Travessa da Ermida © 2020. Todos os direitos reservados