Aqueles-que-caem

“A luz de Damasco golpeia. É circuncisão

Que abre, limpa, a luz de Damasco 

É dura. Da dureza

Das pedras que um mártir junta com as mãos

Com que empedra o caminho para a morte.”

                                  Daniel Faria, Dos líquidos

1.

Aquele-que-cai. Poucas definições assentam melhor ao humano do que esta. Antes ainda de se compreender como “ser-para-a-morte”, irremediavelmente apreende-se como ser-para-a-queda. Talvez essas cadências nos permitam a consciência da mortalidade: dos joelhos esfolados e do braço partido à finitude mortal que já somos, mais do que seremos. Dos limites do corpo, ao limite último do eu. A morte surge então como uma derradeira queda adiada, mas já de algum modo experimentada por antecipação – e este salto que somos capazes de dar pela consciência é de uma subversão ímpar. Percebermo-nos finitos implica tomarmo-nos como uma totalidade: com princípio e fim. Inteiros. Antecipadamente. Nós que somos sempre incompletos. Em vertigem. 

 

2.

Porque os símbolos têm um enraízamento existencial, para além da experiência quotidiana – e das múltiplas memórias infantis -, a queda surge na História da humanidade como metáfora ou símbolo em vários mitos das origens, de proveniências culturais e geográficas distantes. A queda é, nessas narrativas míticas, constitutiva da originalidade humana. Explicação para a sua fragilidade e falibilidade. Para a diferença de condição em relação aos deuses. Da alma que “cai” num corpo, aos pais da humanidade que “caíram” em pecado – e, fisicamente, ninguém cai aí onde o livro do Génesis diz, segundo a leitura de S. Paulo, que todos “caímos”. Mas, como veremos, sobre quedas Paulo sabia muito.

 

3.

A queda está antes e diante de nós. Termo-nos levantado do chão, procurando progressivamente a verticalidade do equilíbrio bípede de cabeça erguida, é o percurso da evolução do hominídeo, mas também o indicador de onde se vem e para onde se vai. A face encostada ao pó, depois da queda, é a face que é já pó. A queda é o movimento em direção ao que somos. Pó. Passado e futuro.

 

4.

De profundis. Caímos: na armadilha, no engano, no erro, na miséria, em tentação, em desgraça… Na linguagem comum a queda é metáfora de inclinação para o pior, para o mal, para a destruição. Do Altíssimo ao mais fundo dos Infernos. Topografia e movimento simbólicos, que se encontra ainda nessa palavra repetida na análise cultural: decadência – e as civilizações e os impérios caem como os indivíduos. Porque “abismo atrai abismo”…

Mas há, ainda na linguagem comum, modos mais “felizes” associados ao cair: como o “ter queda para” – que implica uma “inclinação” de gosto, capacidade ou habilidade; ou uma outra utilização que se aproxima dessa, e se apresenta na expressão fall in love. O gosto português pelo diminutivo transformou-a no terno, mas esvaziado de movimento, “estar caídinho/a”. Um estar parado, não um ser-queda, em acontecimento como no Inglês. 

Ainda que esta queda-amorosa seja tantas vezes mortal, como o narram a tradição literária e a História, mesmo no aspecto mais positivo é, ainda, paixão: um padecer-sofrer a influência de. Passividade. Marca da nossa fragilidade: somos seres afectáveis. A queda revela essa nossa impotência. Como na paixão, situa fora de nós o que nos determina. Seres marcados pela alteridade – a gravidade influente do outro -, mas capazes de agir sobre ela. Ou melhor, de a integrar em si: transportamos a alteridade em nós. Por isso, o final, ou o contrário, da queda da paixão amorosa (o “fora de si” de todos as paixões) é ainda um outro modo de queda: um “cair em si”. Deixar de estar “fora de si” e reencontrar-se. Perceber-se, assim, a si-mesmo como um outro.

 

5.

Ascenção e queda. A primeira é acção, voluntária; a segunda é paixão, involuntária. A ascenção é movimento activamente procurado, a queda é passividade que nos acontece e determina. 

Mas: e se a queda for, mais do que um padecimento, uma verdadeira acção? E se procurarmos activamente o desequilíbrio da queda, em vez da segurança das alturas ou do chão? E se for uma decisão, a capacidade de escolhermos deliberadamente estar em queda? Uma forma de suícidio do ideal, da perfeição, da pureza celeste sobrehumana, e por isso desumana. Diz-se, em português do Brasil, “cair na real”, ou por cá, “descer à realidade”… ao duro chão concreto. Este cair no real, enquanto movimento activo, é a verdadeira ascenção humana. Difícil ascenção. Pode a arte ajudar a este declive em segundo grau? Já não apenas à força gravitacional experimentada como passividade, mas a uma cadência activa? Um “descer num movimento onde a gravidade não tem lugar…”, escreveria Simone Weil. Esse seria, para ela, o movimento superior de incarnação a que a Graça poderia ajudar o humano. 

Já não no campo teológico, interrogo-me sobre esta outra possibilidade de queda: não como destino inexurável, mas como escolha. Uma herança transformada em decisão?

 

6.

 

A história da arte mostra como, durante os séculos, artistas, arquitectos, bailarinos,  procuraram recusar a gravidade. Lutaram contra ela. Projectaram corpos sem peso. Maria Pia Oliveira já o fez tantas vezes: para outras exposições criou nuvens brancas, ilusoriamente etéreas, suspendeu-as, elevou-as. Agora a nuvem deixou de ser branca, parece ser uma expelência de cinzas; o material que a constitui, a malha de aço, é mais agressivo, áspero e rugoso – e propriamente usado para limpeza, que tem aqui uma conotação sacrificial; e não se dirige para o alto, mas para o chão. Mantém-se paradoxalmente a dimensão de leveza, mas agora já consciente da gravitas que nos marca. O peso

Na exposição Gravidade, de Maria Pia Oliveira, para além da representação da queda, é a experimentação dela que é também proposta. Um dispositivo de desequilíbrio: a capela em vez de lugar de refúgio e segurança manifesta-se instância de inquietante estranheza. O chão desloca-se com o peso do nosso corpo. Instável. A gravidade ensina-nos o sentido que habitualmente lhe recusamos. 

 

7.

A artista ensina-nos a cair, e a aprender com a queda: permite-nos que a surpresa do desequilíbrio seja também o da surpresa do ponto de vista insuspeito. 

Do ponto de vista daquele que cai, o mundo altera-se. Imprevisivelmente. O horizonte modifica-se. E é isso que nos transforma. Numa deslocação que não é simplesmente física, mas total. Não tanto uma mudança simples de objecto, mas do lugar, da perspectiva de onde o vemos. E uma queda assim, tornada carne da nossa carne, transforma-se em pensamento do nosso pensamento, alterando o modo como se forma o mundo pela atenção. Todos os músculos estão envolvidos nesse modo de pensar, ou melhor, modo de ser: a queda transforma-nos no que somos.

Em vez de viver, sentir e pensar “com a cabeça nas nuvens”, experimentar rente ao chão da realidade. E a voz de Jim Morrison repete parte da sua “Oração americana”: “Don´t chase the clouds”. Eco de uma sabedoria que vem do princípio dos tempos, e que o Livro do Eclesiastes tantas vezes repete assim: “tudo é vaidade e correr atrás do vento!”

 

8.

Aprender a aproximar a nuvem de que somos feitos – a shakespeareana “matéria dos sonhos” – do solo que os pés pisam. Caminhar como homens, e não pairar à superfície como semi-deuses que nos julgamos. 

Foi um destes semi-deuses guerreiros, cheio de si mesmo e de ideais certos, que Caravaggio pintou entre 1600 e 1601: Saulo, já caído aos pés do seu cavalo, na Estrada de Damasco. Inesperadamente cego pela luz, de costas no chão vermelho-sangue da sua capa, e braços levantados como se continuasse a cair, para sempre; como se os braços quisessem abraçar essa luz dura que golpeia, mas que já não pode ver – ou seria para mantê-la à distância? 

A mudança de ponto de vista é radical na cegueira a que a queda, (aqui sinónimo de luz), remete Saulo. Não é tanto a inexistência dessa visão, mas o deslocamento para o interior da noite. Para a escuridão onde tudo é redimensionado. A conversão, a metanoia, é a mudança de consciência do mundo e de si. O que implica uma passagem pela noite, pela perda, pela queda. Cair é, aqui, atravessar a cegueira. E depois de três solitários dias sem ver, nem comer nem beber, a mudança de nome é a atestação da diferença: de Saulo para Paulo de Tarso. Um jejum de imagens e de luz que é purificação para encontrar um outro olhar sobre o horizonte. Um mundo que nasce do chão onde caiu.

 

9.

Na tela de Caravaggio, preenchendo grande parte da sua superfície, surge a pujante animalidade do cavalo de onde terá caído Saulo. Estranha presença e tão central, num acontecimento em que outros pintores introduziram nuvens e anjos, Cristo nos céus, os companheiros de Paulo assustados, ou a paisagem iluminada por essa luz divina. Caravaggio exclui tudo isso e força no nosso horizonte o corpo impositivo do cavalo – (que não aparece sequer referido na passagem bíblica que narra o acontecimento). 

É a essa condição que a queda também nos remete: ao corpo na sua verdade animal. À realidade do sermos corpo. Orgãos, vísceras, músculos, sangue, segregações, dejectos. A queda é o tremendo movimento da incarnação. Não por acaso, a tradição indica que na subida com a cruz para o calvário, a Via Crucis, Cristo terá caído por três vezes. Indício da sua humana carnalidade, e prenúncios da morte. Somos aqueles-que-caem. E podemos encontrar nesse chão a que se encosta o rosto caído, uma verdade que nos falta. O choque do “princípio da realidade”. O “princípio do chão”.

 

Esta exposição de Maria Pia Oliveira remete para uma ferida que transportamos. Para uma falha. Essa onde a “fecunda ausência excede”, como escreveu Luiza Neto Jorge. É nesse vazio em nós que caimos quando caimos, como num abismo interior que já não podemos contornar. E serão vários os novos solos que poderemos vir a conhecer pela queda, como múltiplos serão os “chãos” pretensamente seguros que temos de perder para continuar a cadência: é preciso “perder o chão repentino sobre os pés” para cair em si. 

A queda é uma aprendizagem da perda. De se perder. De cair do lugar já certo e habitual, para encontrar um si mais vasto. Perder significa, então, a possibilidade da hospitalidade: ficar aberto, livre, despojado para poder acolher o que vem. Mesmo um outro-eu. A queda é, neste sentido, catártica. Morte de um, inicio de um outro-si-mesmo. Esse novo que se levanta é sempre uma “homenagem póstuma” àquele que antes era. 

 

11.

A volúpia da queda, a “lenta volúpia de cair” do poema de Luiza Neto Jorge, está então relacionada com o esforço para perseverar na vida. Essa tácita afirmação permanente, que é o desejo de vida da nossa existência, exige a aprendizagem do cair, aprender a morrer, e a ter prazer nessa frágil libertação criadora. Por isso escreveu Clarice Lispector: “Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair”

Este pôr-a-nu a condição que nos é própria, é forma de instaurar uma noite, que é outro nome para a impotência. Ou melhor, para a consciência da imperfeição, da falha, do inacabamento: mas capaz. E esta fragilidade capacitada, esta falibilidade, esta cegueira que a queda nos ajuda a compreender, é o centro aberto mais aberto que nos permitirá acolher o que vem. A continuar, porque somos seres inacabados. O chão onde se cai é sempre e apenas um prelúdio.

 

Paulo Pires do Vale

Gravidade

  • Maria Pia Oliveira
  • 24 Setembro 2010 - 24 Outubro 2010
  • Instalação

  

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