O pão e a alma

De que fome se está a falar com este título — Fome? E quem pode falar da fome, e a que título?

Há pelo menos duas fomes, a do animal físico e a do animal metafísico. O humano, se não vir saciada a primeira fome, não pode experienciar a insaciabilidade da segunda. Leio Pascoaes:

Viver é ter fome! A vida é fome: fome de alma e de pão! Fome negra!

Seja de alma ou de pão, a fome é negra. E tal é a primeira experiência de Fome — que nos convida a entrar e a atravessar um negrume. Travessia da qual não sairemos intactos: seremos expulsos para ver, a outra luz, a noite. Para rever a noite à luz da arte.

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Com o título desta exposição não se pretende nem estetizar a miséria, nem politizar a arte. Perante a «fome de pão», esta exposição começa por, humildemente, aceitar: a arte nada pode.

Mas a existência da arte confunde-se, imemorialmente, com a «fome de alma» — muito antes de haver nomes para designar o facto artístico e a força anímica. Se a «fome de pão» é saciável, já a «fome de alma» expõe-nos a uma insaciabilidade inata. Melhor: expõe-nos a algo cujo fito não é a satisfação (nem o seu contrário). Talvez possamos mesmo dizer que a arte se distingue da religião porque não pretende saciar essa fome — e isto, não porque a alma seja uma entidade impossível de satisfazer, ou uma plenitude impossível de alcançar, mas porque é o trespasse do que excede a vida individual. Tal é a experiência da arte — ou do amor. Releio Pascoaes:

O amor é fome de outra vida, desejo de transitar. Quando dois amantes se abraçam e se beijam, entredevoram-se, morrem um no outro, de algum modo, e transitam para um novo ser. A vida não pode ficar em nós, a repetir-se, que repetir é estar parado, é ocupar o mesmo lugar. (São Paulo)

Assim a arte: um estranho alimento que aviva a «fome de alma». Com a arte, tornamo-nos mais famintos, sim, mas porque ela nos dispõe à descoberta mais vital: habita-nos um excesso — e não uma falta ou uma escassez. Habita-nos um excesso de vida que temos de tirar de nós e de passar a um outro corpo, vivo ou morto. Vivo, um corpo amado; morto-imortal, a obra ou o corpo divino.

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O que Pascoaes afirma acerca do amor, pode, portanto, ser dito sobre a arte como fome de outra vida: não de uma Vida para além da vida, mas da vida que nos trespassa como excesso da mesma vida. Essa fome é a de dar ou de passar o excesso — dádiva que nos torna vívidos e, justamente por isso, mais famintos! Quanto mais vivos, mais excesso teremos para dar; quanto mais (nos) damos, mais seremos pura dádiva.

De certo modo, esta exposição apresenta da forma mais elementar a «fome de alma»; para isso, com efeito, basta apresentar dois elementos separados pelo negro que nenhuma dádiva, nem mesmo um contacto, poderá anular. E, como não há obra sem um mínimo de figurabilidade (mesmo na dita arte «abstracta»), vemos figurados o amante e a amada, o artista e a sua alma: de um lado, a representação reduzida de um atelier, do outro, uma ancestral figura da vida («Eva» em hebraico — hawwāh — significa a vivificadora, termo que deriva possivelmente do verbo «viver», hāyāh). De um lado, vemos a maquete de um atelier, do outro, uma tela à escala dita «real» — mas que, coabitando com aquela no mesmo espaço, e tendo realmente saído do atelier também dito «real», apresenta-se então como algo colossal (para além de estar suspensa num plano superior, inclinada para nós que transitamos — e transimos — no negro…). Há sempre uma desproporção entre o corpo e a sua fome (de alma): o dom da vida é literalmente incomensurável.

É difícil recuar mais na figuração — na condição de figurabilidade da arte. O atelier é o lugar onde o autor, como pessoa, desaparece para reaparecer como artista (como persona); o atelier é a representação humana da cripta (da natureza) onde se morre e se renasce. Daí a indeterminação desta maquete: estará a ser puxada para os subterrâneos ou a ser levantada pela força da vida? Estará a ser enterrada no passado ou a ser desenterrada para o futuro? É indecidível. O atelier — e esta maquete (des)enterrada figura a ideia de atelier — é o lugar dessa indeterminação, ainda que o autor possa dizer que, ao entrarmos nele, acedemos ao ano de 2070, isto é, ao ano em que passarão cem anos sobre a data do seu nascimento. Mas, apesar de algumas aparências, não se pratica aqui o género da ficção científica: esse futuro não é objecto de qualquer previsão. Ele assinala o tempo da não-existência (ou da eternidade) que atravessa cegamente cada existência: o tempo em que o autor nunca foi, ou — mas vai dar ao mesmo — o tempo em que ele nunca será ou ficará sem anos. Enterrado/desenterrado, cem/sem anos: no atelier, figura-se a eternidade para o artista (experiência do im-possível através da qual o tempo nos é dado).

A obra curto-circuita o passado e o futuro num perpétuo presente, quer dizer, no contínuo e diferido apresentar-se que é o próprio tempo.

Também por isso é difícil recuar mais na figurabilidade da arte: o atelier é-nos apresentado como um filho, e a tela como a sua mãe (aliás, esta maquete intitula-se «A Minha Espada»: à semelhança de Cristo, não indicia tanto uma violência quanto uma separação; Mateus 10:34). Ora, a relação entre filho e mãe é a matriz — sem dúvida, a mais arcaica para cada existência — da relação entre corpo e alma: dois corpos num só, em fluxo contínuo, ou um corpo e uma alma em continuum. O útero não é nem a morte nem a vida: é a sua absoluta indistinção. A mãe não nos fornece um alimento: ela é o nosso alimento. A nossa fome, como animais metafísicos, é ontológica. O nosso profundo desejo (a nossa mais profunda fome ou sede) não é desejo de ter, mas de ser — e o nosso ser, jamais “nosso”, é um trânsito ou um transir para o outro. Mas é precisamente por isto que essa relação — que é a relação absoluta — oferece também a matriz da separação que constitui a possibilidade de uma nova vida. Para podermos viver, separámo-nos do corpo que nos deu a vida. O Absoluto — como aprenderemos mais tarde — ou é passageiro ou é mortífero.

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Viver é ter fome! — de pão e de alma, porque viemos de um lugar onde o pão era a nossa alma. Da memória imemorial dessa relação, da memória desse alimento substancial, resta para o filho uma gota branca num magma escuro (resta a mira que tanto atrai como repulsa a nossa atenção); para a mãe, desde a hora da separação — e, sobretudo, desde o fim da amamentação —, resta-lhe um filho que será sempre um faminto.

Fomos alimentados na noite, e podemos alimentar essa mesma noite passando a ser mães de filhos que representam a mãe antiquíssima. É essa a estranha inversão temporal e alteração sexual que permite a criação artística. É esse o volte-face trágico: fazer de um filho lançado à noite (à morte) uma mulher que pode dar à luz.

Tomás Maia

Fome

  • Rui Serra
  • 28 Outubro 2019 - 30 Novembro 2019
  • maquete, pintura em tinta acrílica sobre tela
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