… espírito forte

«Quando voltou para junto dos discípulos, encontrou-os dormindo. Disse então a Pedro: “Não fostes capazes de ficar vigiando uma só hora comigo? Vigiai e orai, para não cairdes em tentação; pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca.”»
(Mt 26:40-41)

Incessantemente entretendo o olhar, do golo que outorga o rei da jornada à visita documental ao esqueleto de um protomamífero, do clip lascivo da pop-star à violenta normalização da agressão violenta, da pornografia que é catastrófica à catástrofe que é pornográfica, o errante compulsivo deambula – onde? – sem rumo pelos paradoxos da simultaneidade. Tão acompanhado quão solitário, tão disperso quão próximo, tão estranho quão familiar, e, sobretudo, tão dormente quão ofuscado perante a luz feiticeira do ecrã, refastela-se como um bruto nos minutos do ciclo alternado da lua e do sol na viagem incerta, empaturrado e alienado com a abundância babélica da imagem contemporânea que produz uma constelação de novas estrelas virtuais. Gestos, hábitos, rituais, relações, valores, ideais, a identidade desviada – uma máscara aqui, outra ali, esquecidas, e outra que paira, é todas e nenhuma, corpo esvaziado de carne –; os efeitos inumanos da dependência existencial do humano nativo do quotidiano público e privado da cultura digital mediada pelo ecrã omnipresente no fulcro da esfera tecno-digital.

“carne fraca” importa-se com as relações entre sujeito e objecto, aquelas do homem-eu e da imagem: campo fértil para a criação e reflexão. Historicamente mediada pela matéria da pintura, escultura, fotografia, vídeo – e outros, tantos –, a imagem é, contudo, inevitavelmente, imaterial e virtual, porque plausivelmente mental, atributo não da essência do objecto mas do sujeito – eu, contexto e cognição. Assim, por um lado, utópica, enquanto espaço de representação desprovido de lugar material, mas, porque apensa àqueles media materiais, ou à coisa palpável – tal como o espelho que reflecte a imagem apenas do objecto que se lhe apresenta, diz Foucault – por outro lado, também heterotópica, porque espaço palpável de representação.

Na contemporaneidade em que o medium abandona a tradição dos espaços palpáveis e torna-se tecno-virtual, é o próprio meio digital que emerge como terceira parte na relação com a imagem, porém agora tão dominante e determinante que transforma culturalmente o homem-eu e modela o nativo da cultura digital e da hiperesfera.

A carne, que é fraca no vício e no hábito, e que esvazia o corpo, é a que cede na acção aos desejo e paixões que não são os seus reais, mas os do nativo digital. Imagem virtual ela própria, “carne fraca” é a representação de uma reflexão introspectiva sobre a indução e, porventura, a imposição, pelos meios tecnológicos em que se manifesta a cultura visual contemporânea, de uma condição pessoal efémera – um eu liminar, ou melhor, os «eus» liminares. Da proliferação digital massiva da imagem virtual emerge o questionamento das sucessivas transformações que contagiam o próprio eu real viciado neste consumo incessante.

Mas – há salvação, “carne fraca” afirma sofisticadamente codificada – «o espírito está pronto» (Mt 26: 41). Inspirada pela história do espaço expositivo enquanto local de culto do sagrado, a introspecção em que, vigilante e atento, João Timóteo se questiona é a confissão subtil, a esperança pela remissão, dos seus pecados digitais.

No percurso de João Timóteo predomina a imagem em movimento híbrida e equidistante entre o teatro e o cinema. A imagem imaterial filmada e mediada pelo vídeo nasce da autoria dramatúrgica invocando uma memória implícita algo Proustiana de um real perdido e um imaginário pessoal e da sua posição enquanto performer. Agora, despe-se. Despoja-se de alguns destes elementos artísticos tanto quanto acolhe outros não habituais, ou mesmo inéditos. Despudorada perante o imaterial, “carne fraca” resgata e funda-se na matéria como medium da imagem mental e virtual.

Face à autoridade da memória e ao imaginário que validam o símbolo artístico na sugestão da imagem, eis agora a centelha dos pecados digitais a confessar na precaridade de uma colecção de objectos, uma constelação de estrelas materiais do presente fugaz que referenciam as experiências da cultura digital, cuja efemeridade não outorga às respectivas imagens mentais a autoridade de ícone, e, sem pedestal, deixa ambíguo o estatuto escultórico destes objectos. De escalas e proporções peculiares e cores vivas evocando algo de naïf, a estas quase-esculturas figurativas é apenas intencionalmente concedido o chão, dispostas em desalinho como que acidentes circunstanciais e arbitrários, por um lado, insinuando relações narratológicas das experiências digitais que tenuamente representam, enquanto, por outro lado, sublinhando a espacialidade horizontal onde a matéria do objecto naturalmente encontra o sujeito do homem. Notoriamente moldados pela mão do autor porém aparentemente inacabados, parecem toscos, ironicamente condenados à antecipada imposição tecnológica da scannerização tridimensional necessária para encontrarem o seu destino. Contrastando esta horizontalidade, a imagem em movimento surge na instalação abrindo a verticalidade da dimensão virtual a que está imposta, porém aspirando uma condição material na presença da projecção que ocupa espaço, ainda que inantingível e inevitavelmente frustrada. Não mais captada pela câmara diante da qual também se ausenta o performer, a imagem em movimento surge composta por vídeos gerados digitalmente e sons ambientes, animando a estaticidade material dos objectos agora actores imateriais, apresentados aleatoriamente ao espectador que os consome, conduzido e submetido a essa indeterminação não fosse, afinal, perante um ecrã que está. Nesta reflexão circula a referência a pele, não como fronteira permeável entre o domínio do imaterial quando oposto ao palpável, mas enquanto invólucro e contentor – uma máscara, ou conjunto de máscaras, um mutante desfigurado pela cultura digital de que não restam mais que as peles esvaziadas de carne –, frágil presença corpórea do nativo digital que, vigilante perante o vício da carne fraca perdida e, afinal, de espírito forte, em surdina, confessa: “Perdoa-me por tudo o que eu vi.”.

“carne fraca” organiza estratos da sua própria experiência: a obra visual e os seus processos de representação, uma história ficcionada por ela criada e nela contida, e o discurso verdadeiramente intencional do autor. A instalação expositiva transforma-se em ocorrência teatral, um palco onde os actores e espectadores se encontram através da narrativa. A confissão de João Timóteo não persegue a via religiosa da resignação inspirada pela história do espaço, antes o apelo melancólico mas não nostálgico dos paradoxos da arte, algo do drama da tragédia e da comédia, cujos incidentes narratológico despertam e libertam a emoção que clarificada à luz da experiência do real, tal como uma catarse Aristotélica, aspira resgate e redenção.

Ricardo Escarduça

– Hey!… andamos desencontrados.
-Tenho saudades do teu sistema auricular.
– Já passou um tempo desde a minha última confissão; desleixei-me…
– Contas feitas, já sou uma criança evoluída.
– Tento seguir os teus conselhos à risca, mas as tuas rezas parecem ao mesmo tempo obscenas.
– Sou tão confuso!
– Nada é palpável mas tudo é violento; tipo half-life.
– Ontem à noite deitei-me ao lado da linguagem; palavras a cambalear – pecados luminosos.
– Para que serve um guião se não há palavras que nos guiam.
– Se estavas à minha espera, sinto muito, e sinto até algum gozo em vacilar.
– Podes ficar com os louros só para ti, na tua cloud.
– Não me julgues se nunca instalaste o software dos lugares comuns.
– A minha boca saciada, os teus olhos saciados, eternamente, por eventos instantâneos.
– Não me julgues se não queres ser julgado, e nem te atrevas a interromper-me com aforismos de S.Mateus.
– Já me extraviei o suficiente por ouro, por prata… por pirataria; mas um dia dar-me-ei ao luxo de acreditar em sinais divinos.
– Eu juro pelo que habita neste templo que estou a fazer um esforço para ser breve. Espero a tua compreensão, pois quando transmito coisas, ora no texto, ora no subtexto, apresento-me sempre mais eloquente do que aquilo que sou na realidade.
– Fui enfeitiçado à nascença; para os enfeitiçados a vida é fodida, a vida é bela demais.
– Há sempre uma mulher lá ao fundo que te chama, e a chama dissipa-se por aí fora entre coordenadas de x, y e z..
– Bate forte.
– Aguenta-te à bronca e à pornografia.
– Fuck!
– Consegues explicar ao mundo o factor anímico dos corpos?
– Esquece.
– Não há tempo para limpar as armas.
– O tiro é seco.
– Há que celebrar o nascimento, mas o menino mal nasceu e começaram logo a fazer-lhe psicanálise.
– Jesus loves me!
– Mais um conto natalício: o puto André aprendeu a escrever e enviou uma carta ao pai natal… ahahah… há pouco tempo cheguei à conclusão que o natal é o ritual da repetição; as crianças evoluídas ensinam as crianças a esbanjar repetição.
– O desconforto contemporâneo na casa do senhor!
– O senhor comeu bem e foi dormir; carne fraca, fibra desfiada, mioleira guisada.
– Não sei onde mora o Sol; dia sim dia não, é demasiado pontual.
– O techno ainda agora começou, o tráfico humano está fluido no mercado de transferências.
– Ouve-se a bruxa cantando ao amanhecer enquanto a lucidez arde no cinzeiro.
– Está na hora! Já cometi todos os pecados da lista de preferências.
– Nunca é tarde para sair do purgatório, já do carnaval não diria o mesmo.
– Perdoa-me por tudo o que eu vi.

João Timóteo

Carne Fraca

  • João Timóteo
  • 14 Março 2020 - 6 Setembro 2020
  • Animação digital: projecção vídeo 6’ loop, HD, cor, 1 canal de som; Máscara (suspensa): texto, altifalante e latex; Máscaras (chão): latex e tinta acrílica; Objectos: argila branca, plasticina e tinta acrílica; Moedas: bronze
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